Na semana passada fui à Gulbenkian ouvir Michael Spyres, um tenore assoluto, que é uma tipo de voz com uma grande abrangência -de várias oitavas- que vai do tom mais agudo ao barítono-baixo, como foi costume na era do Barroco. Quanto a mim teve momentos excelentes (Euridice, no encore), outros muito bons (Alexandre em Itália) e outros... menos bons. É natural. A voz é um instrumento muito delicado e que é afectado por pequenas coisas. Uma voz operática leva muitos anos a treinar exaustivamente e sai caríssima, desde as aulas, aos professores, aos promotores, às viagens e inscrições em concursos, treinadores vocais, médicos especialistas, etc.
Imagine-se que um programa de IA tem acesso online, o que é fácil, à voz deste tenor e põe o programa a gerar concertos com a sua voz, mas corrigida artificialmente para ser sempre excelente. Porque é que alguém iria ouvi-lo ao vivo, podendo ouvir a sua versão perfeita em formato digital, por um preço irrisório? E porque iria ele gastar a sua vida e o seu dinheiro a desenvolver uma arte que um programa de IA faz em três tempos e lhe rouba a audiência?
Podemos dizer que ouvir uma voz ao vivo (ou uma orquestra) é completamente diferente do que ouvi-la num formato digital. Pois claro que é, mas já agora muitas salas pelo mundo fora estão vazias e só se aguentam com patrocínios e investimentos do Estado, dado o preço dos bilhetes. Isto, apesar de não ser possível ouvir em discos ou plataformas certas interpretações porque não estão gravadas. O preço dos bilhetes é caro, o que se percebe porque implica o trabalho de um cantor, uma série de músicos, instrumentos e todos os anos que levam de estudo e trabalho para chegar àquele ponto - mais a sala de espectáculos e mil e uma coisas. Mas é caro. Imagine-se se se puder pôr qualquer músico da nossa preferência a cantar qualquer coisa no estilo que quisermos recorrendo à IA...
Quem diz o cantor diz os músicos. Michael Spyres foi cantar acompanhado do ensemble, Il Pomo d’Oro, um grupo (aqui com seis instrumentistas) extraordinário, especializado no Barroco e Bel Canto, usando instrumentos de época. A educação musical destas pessoas mais a pesquisa de músicas, instrumentos e estilos da época custa uma fortuna, para não falar do treino em conjunto, os ensaios, as viagens, etc. Quem terá dinheiro para uma formação destas se tiver de concorrer com uma aplicação digital que lhes rouba o talento e a criatividade e depois gera música de Il Pomo d’Oro, por meia dúzia de tostões?
E quem diz a música diz todas as artes. Um artista passa por muito anos e crises pessoais para criar. Quem quererá financiar isso podendo substitui-los por um programa de IA que não dá trabalho nem inconveniente nenhum?
Estamos a ser transformados em coisas consumistas pelos gigantes das tecnológicas por ganância de acumulação de dinheiro e parece que os governos não vêem nada.
Quem dizia, há uma décadas, que a automação do trabalho e os computadores mais a IA iriam ser excelente para a humanidade porque nos libertavam do trabalho para criar, enganou-se redondamente. Escravizou-nos ao trabalho e rouba-nos a possibilidade de criar.
Por momentos, assustei-me, pois pensei que estava a sustentar a ideia da IA substituir o talento humano.
ReplyDeleteJustamente o contrário. A questão é que, como diz Brian May, quando a IA puder ir tirar online a voz e o estilo dos músicos e produzir digitalmente músicas com esses dados (o que já faz na música e no cinema), nenhum artista terá dinheiro para construir uma carreira que compita com isso e encolhe-se quase ao zero a criação humana.
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