Para além da causalidade
Para colmatar o abismo entre as humanidades e as ciências, talvez tenhamos de recorrer a um domínio inesperado: a matemática
por Gordon Gillespie - atuário, gestor de riscos quantitativos e cientista de dados. Doutorado em filosofia, é autor do livro em língua alemã 'The Oracle of Numbers: Uma Breve Filosofia da Matemática' (2023). Vive na Alemanha.
Editado porSam Dresser
Em 1959, o escritor e físico inglês C.P. Snow proferiu a conceituada Rede Lecture na Universidade de Cambridge. Regalados com champanhe, os presentes não faziam ideia de que estavam prestes a ser alvo de um acto de desordem.
Snow diagnosticou uma fractura de ignorância mútua no mundo intelectual do Ocidente. De um lado estavam os “intelectuais literários” (das humanidades) e do outro os “cientistas” (da natureza): as tão faladas “duas culturas”.
Snow fundamentou o seu diagnóstico com episódios de intelectuais literários respeitados que se queixavam da iliteracia dos cientistas, mas que, por sua vez, nunca tinham ouvido falar de uma afirmação tão fundamental como a segunda lei da termodinâmica. E falou de mentes científicas brilhantes que podiam saber muito sobre a segunda lei, mas que estavam no limite de não conseguirem ler Charles Dickens, quanto mais um “escritor esotérico, emaranhado e duvidosamente gratificante (...) como Rainer Maria Rilke”.
Mais de sessenta anos depois da diatribe de Snow, a clivagem quase não diminuiu. Para não variar, a maioria dos cientistas naturais continua a considerar as humanidades como uma pseudociência que carece de normas epistémicas elementares. Numa conferência de 2016, o famoso físico teórico Carlo Rovelli lamentou “a atual ideologia anti-filosófica”.
E citou colegas eminentes, como o Prémio Nobel Steven Weinberg, Stephen Hawking e Neil deGrasse Tyson, que diziam que “a filosofia está morta” e que só as ciências naturais podem explicar como o mundo funciona, e não “o que se pode deduzir da poltrona”. Entretanto, muitos académicos de humanidades vêem os cientistas como investigadores pedantes da natureza, que podem produzir resultados práticos e úteis, mas que são cegos para as ideias verdadeiramente profundas sobre o funcionamento do mundo (cultural).
Mais de sessenta anos depois da diatribe de Snow, a clivagem quase não diminuiu. Para não variar, a maioria dos cientistas naturais continua a considerar as humanidades como uma pseudociência que carece de normas epistémicas elementares. Numa conferência de 2016, o famoso físico teórico Carlo Rovelli lamentou “a atual ideologia anti-filosófica”.
E citou colegas eminentes, como o Prémio Nobel Steven Weinberg, Stephen Hawking e Neil deGrasse Tyson, que diziam que “a filosofia está morta” e que só as ciências naturais podem explicar como o mundo funciona, e não “o que se pode deduzir da poltrona”. Entretanto, muitos académicos de humanidades vêem os cientistas como investigadores pedantes da natureza, que podem produzir resultados práticos e úteis, mas que são cegos para as ideias verdadeiramente profundas sobre o funcionamento do mundo (cultural).
No seu livro best-seller The Fate of Rome (2017), Kyle Harper mostrou de forma convincente que as alterações climáticas e as doenças foram factores capitais que contribuíram para a queda final do Império Romano. A maioria dos colegas historiadores de Harper tinha simplesmente negligenciado esses factores; em vez disso, tinham-se concentrado apenas nos factores culturais, políticos e socio-económicos.
No meu próprio livro, The Oracle of Numbers: Uma Breve Filosofia da Matemática (2023), actualmente apenas disponível no original alemão, tentei contrariar este paroquialismo intelectual. Durante a minha formação académica em matemática, física e filosofia, assisti a muitos casos desta estreiteza de espírito e sempre me perguntei porque é que pessoas altamente inteligentes nestes campos se resguardavam de grandes conhecimentos dos outros campos. Quis motivá-los, e ao público curioso em geral, a abrirem as suas mentes e a verem que a busca interminável de uma melhor compreensão do mundo segue muitos caminhos.
Ludwig Wittgenstein disse um dia: “Quero mostrar o colorido da matemática”. Neste espírito, coloquei a matemática no centro do meu projetco porque, na minha opinião, a matemática procura mais destes muitos caminhos do que qualquer outra disciplina intelectual. Está profundamente ligada tanto às ciências naturais como às ciências humanas. Faz a ponte entre elas, e fá-lo pondo em causa certos dogmas metafísicos e epistemológicos, como se verá a seguir.
A divisão entre as duas culturas não é apenas uma questão académica. Trata-se, acima de tudo, de dois pontos de vista opostos sobre a ligação fundamental entre a mente e a natureza.
No meu próprio livro, The Oracle of Numbers: Uma Breve Filosofia da Matemática (2023), actualmente apenas disponível no original alemão, tentei contrariar este paroquialismo intelectual. Durante a minha formação académica em matemática, física e filosofia, assisti a muitos casos desta estreiteza de espírito e sempre me perguntei porque é que pessoas altamente inteligentes nestes campos se resguardavam de grandes conhecimentos dos outros campos. Quis motivá-los, e ao público curioso em geral, a abrirem as suas mentes e a verem que a busca interminável de uma melhor compreensão do mundo segue muitos caminhos.
Ludwig Wittgenstein disse um dia: “Quero mostrar o colorido da matemática”. Neste espírito, coloquei a matemática no centro do meu projetco porque, na minha opinião, a matemática procura mais destes muitos caminhos do que qualquer outra disciplina intelectual. Está profundamente ligada tanto às ciências naturais como às ciências humanas. Faz a ponte entre elas, e fá-lo pondo em causa certos dogmas metafísicos e epistemológicos, como se verá a seguir.
A divisão entre as duas culturas não é apenas uma questão académica. Trata-se, acima de tudo, de dois pontos de vista opostos sobre a ligação fundamental entre a mente e a natureza.
Segundo um dos pontos de vista, a natureza é regida por um sistema de leis abrangente. Esta imagem está subjacente ao paradigma explicativo da determinação causal por forças elementares. À medida que a física se tornava a principal ciência no século XIX, o paradigma causal era cada vez mais visto como a forma universal de explicação. Nada do que é real fica fora do seu alcance. De acordo com este ponto de vista, todos os fenómenos podem ser explicados por uma cadeia (ou teia) causal mais ou menos complexa, cujos elos podem, por sua vez, ser rastreados, em princípio, até às forças naturais básicas. Qualquer coisa - incluindo qualquer aspeto da mente humana - que escape a este paradigma explicativo simplesmente não faz parte do mundo real, tal como os “presságios” da superstição ou as “projecções astrais” da astrologia.
Do ponto de vista oposto, a mente humana - seja ela individual ou colectiva - pode muito bem ser considerada separadamente dos seus fundamentos físicos. É claro que se admite que a mente não pode funcionar sem o cérebro, pelo que não é totalmente independente das forças naturais e da sua dinâmica. Mas os acontecimentos de significado cultural podem ser explicados como efeitos de tipos muito diferentes de causas, nomeadamente psicológicas e sociais, que operam numa esfera completamente distinta da das forças naturais.
Estes entendimentos divergentes estão na base das visões do mundo de cada cultura. Os realistas ingénuos - principalmente os cientistas naturais - gostam de salientar que a natureza já existia muito antes da humanidade. A natureza está ordenada de acordo com leis que funcionam independentemente da presença ou não de seres humanos para a observar. Assim, a ordem natural do mundo deve ser predeterminada independentemente da mente humana.
Do ponto de vista oposto, a mente humana - seja ela individual ou colectiva - pode muito bem ser considerada separadamente dos seus fundamentos físicos. É claro que se admite que a mente não pode funcionar sem o cérebro, pelo que não é totalmente independente das forças naturais e da sua dinâmica. Mas os acontecimentos de significado cultural podem ser explicados como efeitos de tipos muito diferentes de causas, nomeadamente psicológicas e sociais, que operam numa esfera completamente distinta da das forças naturais.
Estes entendimentos divergentes estão na base das visões do mundo de cada cultura. Os realistas ingénuos - principalmente os cientistas naturais - gostam de salientar que a natureza já existia muito antes da humanidade. A natureza está ordenada de acordo com leis que funcionam independentemente da presença ou não de seres humanos para a observar. Assim, a ordem natural do mundo deve ser predeterminada independentemente da mente humana.
Por outro lado, os idealistas ingénuos - incluindo os construtivistas sociais, que se encontram sobretudo nas ciências humanas - insistem que toda a ordem é uma ordem conceptual, que se baseia apenas no pensamento individual ou colectivo. Como tal, a ordem não é independente da mente humana e é ambígua, tal como a mente humana é ambígua nas suas diversas manifestações culturais.
A matemática é mediadora de uma visão conciliatória que evita o erro do realista ingénuo e do idealista ingénuo.
O choque de culturas entre as ciências humanas e as ciências naturais reacende-se constantemente devido a duas imagens que retratam de forma muito diferente a inter-relação entre a mente e a natureza. Para conseguir a paz entre as duas culturas, é necessário ultrapassar as duas visões. Temos de reconhecer que a ordem natural e a ordem mental das coisas andam de mãos dadas. Nenhuma delas pode ser totalmente compreendida sem a outra. E que nenhuma delas pode ser rastreada até à outra.
O realista ingénuo e o idealista ingénuo caem no mesmo erro, embora em direcções opostas - o que nos leva de certa forma à essência do desacordo entre as duas culturas. Ambos confundem determinação com explicação.
A matemática é mediadora de uma visão conciliatória que evita o erro do realista ingénuo e do idealista ingénuo.
O choque de culturas entre as ciências humanas e as ciências naturais reacende-se constantemente devido a duas imagens que retratam de forma muito diferente a inter-relação entre a mente e a natureza. Para conseguir a paz entre as duas culturas, é necessário ultrapassar as duas visões. Temos de reconhecer que a ordem natural e a ordem mental das coisas andam de mãos dadas. Nenhuma delas pode ser totalmente compreendida sem a outra. E que nenhuma delas pode ser rastreada até à outra.
O realista ingénuo e o idealista ingénuo caem no mesmo erro, embora em direcções opostas - o que nos leva de certa forma à essência do desacordo entre as duas culturas. Ambos confundem determinação com explicação.
A “determinação” refere-se ao aparecimento de um fenómeno do mundo real através de uma rede mais ou menos complexa de relações de causa e efeito. Por exemplo, quando a física das partículas nos diz que a aurora boreal resulta da colisão de ventos solares com a atmosfera terrestre, obtemos uma explicação do fenómeno luminoso ao ser-nos apontado o seu principal factor causal determinante.
Do mesmo modo, quando a investigação psicológica nos informa sobre os efeitos potencialmente duradouros dos traumas, podemos explicar o comportamento das vítimas de abusos na infância, em certa medida, como resultado da influência das memórias reprimidas nas suas acções.
Ora, o realista e o idealista - o cientista e o intelectual literário - concordam que explicar um fenómeno significa sempre, no fundo, revelar essas relações causais determinantes. Os seus pontos de vista diferem apenas no facto de, para o realista, a rede causal estar enraizada numa base natural sólida, enquanto para o idealista a base é conceptual e, portanto, dependente de uma incorporação cultural contingente.
O melhor mediador de uma visão conciliatória que evite o erro do realista ingénuo e do idealista ingénuo é a matemática. A matemática dá-nos uma prova brilhante de que a compreensão de um determinado aspecto do mundo nem sempre se resume à descoberta de uma intrincada rede causal, nem mesmo em princípio. Determinação não é explicação. E a matemática, correctamente compreendida, demonstra-o de uma forma que nos permite ver claramente a dependência mútua da mente e da natureza.
Porque as explicações matemáticas são estruturais, não causais. A matemática permite-nos compreender aspectos do mundo que são tão reais como a aurora boreal ou o comportamento das pessoas, mas que não são efeitos de quaisquer causas. A distinção entre formas de explicação causais e estruturais tornar-se-á mais clara a seu tempo.
O melhor mediador de uma visão conciliatória que evite o erro do realista ingénuo e do idealista ingénuo é a matemática. A matemática dá-nos uma prova brilhante de que a compreensão de um determinado aspecto do mundo nem sempre se resume à descoberta de uma intrincada rede causal, nem mesmo em princípio. Determinação não é explicação. E a matemática, correctamente compreendida, demonstra-o de uma forma que nos permite ver claramente a dependência mútua da mente e da natureza.
Porque as explicações matemáticas são estruturais, não causais. A matemática permite-nos compreender aspectos do mundo que são tão reais como a aurora boreal ou o comportamento das pessoas, mas que não são efeitos de quaisquer causas. A distinção entre formas de explicação causais e estruturais tornar-se-á mais clara a seu tempo.
Para começar, veja-se este exemplo. Pensemos num pai moribundo que quer transmitir o seu único bem, um rebanho de 17 cabras, aos seus três filhos. Não o pode fazer. Não é porque haja forças físicas ou psicológicas ocultas que impeçam tal acção. A razão é simplesmente o facto de 17 ser um número primo, logo não divisível por três.
Aqueles que se lembram da matemática apenas como uma disciplina escolar aborrecida, que consiste sobretudo em aplicar fórmulas desmotivadas no contexto de exercícios sem inspiração, serão naturalmente cépticos quanto à minha afirmação de que a matemática pode colmatar o fosso entre as duas culturas. A apresentação habitual da matemática ao grande público fá-la aparecer, na melhor das hipóteses, como uma disciplina auxiliar útil para as ciências naturais e tecnológicas ou, na pior, como uma curiosa colecção de truques lógicos engraçados. Como é que uma tal disciplina pode contribuir para uma melhor compreensão da inter-relação entre a mente e a natureza?
Uma primeira ideia é dada pela geometria Riemanniana, cujos fundamentos foram lançados em meados do século XIX por Bernhard Riemann, com base no trabalho do seu professor Carl Friedrich Gauss. Gauss estava fascinado com a curvatura intrínseca em qualquer ponto do interior de uma superfície lisa e isto mantém-se mesmo depois de ser enrolada num telescópio de brincar; a curvatura aparente é meramente extrínseca, existe apenas em relação ao espaço tridimensional circundante. Em contrapartida, a superfície de uma esfera tem uma curvatura intrínseca diferente de zero em todo o lado. A superfície não parece apenas torta, ela é realmente torta - em si mesma, por assim dizer.
Riemann elevou o conceito de curvatura intrínseca de Gauss a mais do que duas dimensões. Desde então, é possível perguntar de forma significativa e precisa se o “espaço à nossa volta é curvo em si mesmo”. Antes de Riemann, isto teria sido uma sequência de palavras sem sentido, na melhor das hipóteses com alguma força associativa nas mãos de um poeta talentoso. A geometria de Riemann tornou concebível o que antes era não só inimaginável, mas impensável no verdadeiro sentido da palavra.
O exemplo da geometria Riemanniana não só demonstra a capacidade da matemática para alargar os nossos horizontes intelectuais com novas perspectivas. Mostra também como esta vantagem intelectual-estética pode produzir benefícios científicos e até práticos inesperados: forneceu os recursos conceptuais de que Albert Einstein precisava para desenvolver a sua teoria geral da relatividade. Assim, Einstein foi capaz de ver a gravidade não como uma força que faz com que os objectos materiais se atraiam uns aos outros, mas como um elemento puramente geométrico, ou seja, estrutural, do Universo. O Universo é curvo em si mesmo. E, desde o Big Bang, tem-se expandido, mas não para um espaço circundante pré-existente. O Big Bang não foi uma explosão que ejectou matéria para o exterior (causal); simplesmente não havia e não há “exterior”. Em vez disso, o Universo está a expandir-se no sentido de uma certa mudança contínua da sua curvatura intrínseca (estrutural).
É graças a Einstein e a Edwin Hubble que o sabemos e o podemos utilizar para coisas úteis como o GPS. Mas é apenas graças a Riemann que podemos pensar nisso.
A diferença entre explicações causais e estruturais torna-se mais clara no que diz respeito à concepção de “idealismo transcendental” de Immanuel Kant, tal como foi apresentada na sua Crítica da Razão Pura (1781).
Aqueles que se lembram da matemática apenas como uma disciplina escolar aborrecida, que consiste sobretudo em aplicar fórmulas desmotivadas no contexto de exercícios sem inspiração, serão naturalmente cépticos quanto à minha afirmação de que a matemática pode colmatar o fosso entre as duas culturas. A apresentação habitual da matemática ao grande público fá-la aparecer, na melhor das hipóteses, como uma disciplina auxiliar útil para as ciências naturais e tecnológicas ou, na pior, como uma curiosa colecção de truques lógicos engraçados. Como é que uma tal disciplina pode contribuir para uma melhor compreensão da inter-relação entre a mente e a natureza?
Uma primeira ideia é dada pela geometria Riemanniana, cujos fundamentos foram lançados em meados do século XIX por Bernhard Riemann, com base no trabalho do seu professor Carl Friedrich Gauss. Gauss estava fascinado com a curvatura intrínseca em qualquer ponto do interior de uma superfície lisa e isto mantém-se mesmo depois de ser enrolada num telescópio de brincar; a curvatura aparente é meramente extrínseca, existe apenas em relação ao espaço tridimensional circundante. Em contrapartida, a superfície de uma esfera tem uma curvatura intrínseca diferente de zero em todo o lado. A superfície não parece apenas torta, ela é realmente torta - em si mesma, por assim dizer.
Riemann elevou o conceito de curvatura intrínseca de Gauss a mais do que duas dimensões. Desde então, é possível perguntar de forma significativa e precisa se o “espaço à nossa volta é curvo em si mesmo”. Antes de Riemann, isto teria sido uma sequência de palavras sem sentido, na melhor das hipóteses com alguma força associativa nas mãos de um poeta talentoso. A geometria de Riemann tornou concebível o que antes era não só inimaginável, mas impensável no verdadeiro sentido da palavra.
O exemplo da geometria Riemanniana não só demonstra a capacidade da matemática para alargar os nossos horizontes intelectuais com novas perspectivas. Mostra também como esta vantagem intelectual-estética pode produzir benefícios científicos e até práticos inesperados: forneceu os recursos conceptuais de que Albert Einstein precisava para desenvolver a sua teoria geral da relatividade. Assim, Einstein foi capaz de ver a gravidade não como uma força que faz com que os objectos materiais se atraiam uns aos outros, mas como um elemento puramente geométrico, ou seja, estrutural, do Universo. O Universo é curvo em si mesmo. E, desde o Big Bang, tem-se expandido, mas não para um espaço circundante pré-existente. O Big Bang não foi uma explosão que ejectou matéria para o exterior (causal); simplesmente não havia e não há “exterior”. Em vez disso, o Universo está a expandir-se no sentido de uma certa mudança contínua da sua curvatura intrínseca (estrutural).
É graças a Einstein e a Edwin Hubble que o sabemos e o podemos utilizar para coisas úteis como o GPS. Mas é apenas graças a Riemann que podemos pensar nisso.
A diferença entre explicações causais e estruturais torna-se mais clara no que diz respeito à concepção de “idealismo transcendental” de Immanuel Kant, tal como foi apresentada na sua Crítica da Razão Pura (1781).
Para Kant, a experiência empírica só é possível dentro de um determinado quadro conceptual, que, por sua vez, não surge da experiência empírica, mas constitui a mente humana. E uma parte crucial desta estrutura é a geometria euclidiana. O mundo não é “em si” povoado por objectos delimitados espacial e temporalmente que interagem uns com os outros de várias maneiras. Segundo Kant, o mundo está estruturado desta forma porque a mente humana só é capaz de o apreender desta forma, e apenas desta forma. A geometria euclidiana, como ele acreditava (ainda não conhecia a geometria Riemanniana), determina as dimensões espaciais desta ordem. Assim, a geometria é tanto um estudo de uma característica elementar da nossa mente como do espaço que nos rodeia.
O idealismo transcendental de Kant não sofre apenas do facto de a geometria euclidiana não ser tão constitutiva como ele pensava. Mais grave ainda, a sua concepção do conhecimento empírico, como um acto de compreensão através do qual “juízos” conceptualmente formados emergem miraculosamente de meras “sensações”, permanece completamente obscura, como até os leitores bem intencionados da Crítica têm de admitir.
Mas podemos atribuir a Kant pelo menos uma ideia fundamental: a mente e o mundo não são esferas separadas que devam primeiro ser ligadas, pelo que se coloca a questão de saber como é que isso pode ser conseguido exatamente. Pelo contrário, ambos dependem um do outro.
Tal como o mundo não prescreve simplesmente estruturas espaciais, temporais e outras que a nossa mente tem depois de decifrar, a mente não é livre de impor qualquer estrutura ao mundo à sua vontade. Isto é demonstrado de forma impressionante pela matemática, que, apesar da falta de restrições empíricas, não cai na especulação selvagem.
A matemática escapa ao paradigma causal da explicação. As suas explicações são de um tipo muito diferente das explicações em termos de causa e efeito, como mostra um outro olhar sobre a relação entre a geometria e a física.
O idealismo transcendental de Kant não sofre apenas do facto de a geometria euclidiana não ser tão constitutiva como ele pensava. Mais grave ainda, a sua concepção do conhecimento empírico, como um acto de compreensão através do qual “juízos” conceptualmente formados emergem miraculosamente de meras “sensações”, permanece completamente obscura, como até os leitores bem intencionados da Crítica têm de admitir.
Mas podemos atribuir a Kant pelo menos uma ideia fundamental: a mente e o mundo não são esferas separadas que devam primeiro ser ligadas, pelo que se coloca a questão de saber como é que isso pode ser conseguido exatamente. Pelo contrário, ambos dependem um do outro.
Tal como o mundo não prescreve simplesmente estruturas espaciais, temporais e outras que a nossa mente tem depois de decifrar, a mente não é livre de impor qualquer estrutura ao mundo à sua vontade. Isto é demonstrado de forma impressionante pela matemática, que, apesar da falta de restrições empíricas, não cai na especulação selvagem.
A matemática escapa ao paradigma causal da explicação. As suas explicações são de um tipo muito diferente das explicações em termos de causa e efeito, como mostra um outro olhar sobre a relação entre a geometria e a física.
Dez anos antes da sua teoria geral da relatividade, Einstein tinha, em 1905, apresentado a um mundo estupefacto a sua forma preliminar, a teoria especial da relatividade. E nesta teoria, uma forma especial de geometria Riemanniana concebida por Hermann Minkowski desempenha um papel fundamental, com consequências bastante peculiares. A mais notória é o chamado “paradoxo dos gémeos”. Um par de irmãos gémeos candidatou-se a participar numa missão espacial, mas apenas um deles foi seleccionado. O objectivo da missão é viajar até às regiões mais longínquas do espaço, graças à mais recente tecnologia de foguetões, quase à velocidade da luz. Quando o irmão selecionado regressa à Terra, ainda jovem, vai visitar o irmão e reencontra um homem velho.
É bastante comum explicar este “paradoxo” como uma consequência das forças de aceleração que actuam sobre o irmão viajante no seu foguetão. (Ver, por exemplo, as Lectures on Physics de Richard Feynman.) E, de facto, parece muito plausível, e mesmo inevitável, assumir que alguma causa física deve ser responsável pela diferença de idades. Mas isso é falso, a verdadeira razão reside no quadro estrutural em que as forças ocorrem: a geometria do espaço-tempo. O espaço e o tempo não podem ser considerados separadamente, antes estão interligados numa estrutura comum abrangente. E dentro desta estrutura, o caminho, ou “linha do mundo”, do astronauta na missão é simplesmente mais curto do que o do seu irmão na Terra. Isto não é uma causa, mas - nos termos de Kant - um aspecto básico da nossa estrutura explicativa transcendental.
A matemática põe em evidência os limites da explicação científica natural. Isto torna-se ainda mais claro quando pensamos como surgiu a ideia de uma teoria física totalmente explicativa ou de uma “fórmula do mundo”. Por outras palavras, como é que os cientistas chegaram a acreditar, ou pelo menos a esperar, que existe uma descrição matemática da natureza ao nível mais fundamental, com a qual todos os fenómenos do mundo são explicáveis, no sentido em que toda a sua história causal pode ser derivada de leis básicas, pelo menos em princípio?
O ponto de partida foi a visão mecanicista do mundo, segundo a qual todos os sistemas físicos são constituídos por partículas minúsculas e indivisíveis que interagem entre si, como bolas de bilhar, por colisão direta ou através de forças remotas. Foi o modelo matemático da mecânica clássica de Isaac Newton que deu a esta ideia o seu lugar, em conjunto com a sua lei da gravidade. O modelo de Newton permitiu-lhe explicar de forma uniforme uma espantosa riqueza de fenómenos muito diferentes, como os movimentos dos planetas em torno do Sol e a queda das maçãs das árvores.
Antes de Newton, ninguém pensava numa teoria física “que explicasse tudo”. Havia vários fenómenos naturais para os quais se procuravam explicações individuais. Por exemplo, a “teoria do epiciclo” de Ptolomeu, que se baseava em movimentos circulares complexos e aninhados, era responsável pelos movimentos dos planetas em torno da Terra. Foram dadas explicações completamente diferentes para a queda de objectos na Terra. Mas foi então que Newton entrou em cena com o seu modelo - e com ele o “demónio de Laplace”. Esta figura, apresentada por Pierre-Simon Laplace em 1814, não só conhecia as leis de Newton, como também a localização e a velocidade de todas as partículas do Universo num dado momento, bem como as forças que sobre elas actuavam. Segundo Laplace, isto permitia ao demónio calcular o estado exacto de todo o Universo em qualquer momento do tempo, fosse no futuro ou no passado.
É claro que, para Laplace e os seus contemporâneos, o demónio era uma mera figura de ficção, mas com um núcleo verdadeiro. Se um sistema físico puder ser considerado como “fechado”, ou seja, como um sistema cujas interacções com o seu ambiente são negligenciáveis, um cientista pode, em princípio, prever o comportamento do sistema com uma precisão arbitrária. Tudo o que tem de saber com precisão suficiente são as forças que actuam no sistema, bem como a distribuição espacial inicial dos componentes elementares do sistema e as suas velocidades no momento relevante. Um tal cientista demoníaco possuiria aquilo com que o Dr. Frankenstein sonhou: controlo “absoluto” e penetração do funcionamento de qualquer sistema físico, incluindo os seres humanos e os seus processos de vida e pensamento.
É o que parece, mas é uma falácia. O demónio de Laplace pode prever com exactidão o comportamento de qualquer sistema físico e pode também deduzir em pormenor o estado do sistema em qualquer momento do passado. Mas mesmo o demónio não compreende todos os aspectos do comportamento do sistema. Mais uma vez, determinação não é explicação.
Tomemos, por exemplo, a altura de cada adulto em Paris. O demónio de Laplace pode calcular o comprimento exacto do corpo de todos os parisienses adultos. E pode explicar, para cada um deles, exactamente como os seus genes, dieta e outras influências ambientais os levaram a atingir as suas respectivas alturas. Outro exemplo: se atirarmos muitas moedas para o ar de uma só vez e observarmos o número de moedas que mostram cara depois de caírem no chão, e se repetirmos isto muitas vezes, o demónio pode prever, para cada iteração e para cada moeda, se vai dar cara ou coroa. E o demónio pode explicar em pormenor como cada resultado foi determinado causalmente.
Mas há um facto que o demónio não consegue explicar. Se traçarmos num diagrama as frequências com que ocorrem os diferentes comprimentos de corpo ou contagens de caras, o resultado é, em ambos os casos, uma curva em forma de sino aproximada. Porquê? As forças que actuam em ambos os casos são obviamente muito diferentes. No entanto, as distribuições globais das alturas e das contagens de cabeças são muito semelhantes. O demónio de Laplace não pode explicar este facto, pelo menos se o seu conhecimento teórico se limitar às leis da natureza causalmente determinantes.
A chave para uma explicação é o teorema do limite central, um resultado fundamental da teoria matemática das probabilidades. O teorema afirma que, sob condições apropriadas, uma certa versão da média de uma amostra converge para a chamada distribuição normal padrão (visualmente, a curva em forma de sino). Mas a teoria das probabilidades não está vinculada a essas leis naturais. Em particular, o teorema do limite central não decorre delas. O demónio de Laplace nem sequer conseguiu formular o teorema.
Para enunciar o teorema, são necessários conceitos muito diferentes dos do cálculo diferencial, que são essencialmente suficientes para as leis da natureza, pelo menos na sua forma newtoniana.
A física sofreu muitas alterações desde Laplace, nomeadamente o aparecimento da teoria da relatividade e da mecânica quântica.
Mas há um facto que o demónio não consegue explicar. Se traçarmos num diagrama as frequências com que ocorrem os diferentes comprimentos de corpo ou contagens de caras, o resultado é, em ambos os casos, uma curva em forma de sino aproximada. Porquê? As forças que actuam em ambos os casos são obviamente muito diferentes. No entanto, as distribuições globais das alturas e das contagens de cabeças são muito semelhantes. O demónio de Laplace não pode explicar este facto, pelo menos se o seu conhecimento teórico se limitar às leis da natureza causalmente determinantes.
A chave para uma explicação é o teorema do limite central, um resultado fundamental da teoria matemática das probabilidades. O teorema afirma que, sob condições apropriadas, uma certa versão da média de uma amostra converge para a chamada distribuição normal padrão (visualmente, a curva em forma de sino). Mas a teoria das probabilidades não está vinculada a essas leis naturais. Em particular, o teorema do limite central não decorre delas. O demónio de Laplace nem sequer conseguiu formular o teorema.
Para enunciar o teorema, são necessários conceitos muito diferentes dos do cálculo diferencial, que são essencialmente suficientes para as leis da natureza, pelo menos na sua forma newtoniana.
A física sofreu muitas alterações desde Laplace, nomeadamente o aparecimento da teoria da relatividade e da mecânica quântica.
Hoje sabemos que o mundo não é povoado por pequenas bolas de bilhar indivisíveis, das quais todos os objectos materiais são compostos de forma mais ou menos complexa. E o modelo de Newton é falho apenas na sua base geométrica. Mas isso não altera o argumento. Mesmo que estes dois pilares actualmente incompatíveis da física - a relatividade e a física quântica - possam um dia ser reunidos numa teoria unificada, continuará a haver explicações matemáticas para fenómenos físicos (por exemplo, a distribuição normal aproximada dos comprimentos dos corpos numa população ou a contagem de caras em lançamentos repetidos de uma moeda) que não decorrem da teoria unificada.
No seu discurso sobre as “duas culturas”, Snow colocou a matemática claramente no campo das ciências. Mas, como vimos, a matemática não adere ao paradigma explicativo da determinação causal. Este facto distingue-a das ciências naturais. No entanto, a matemática diz-nos muito sobre a natureza. Segundo Kant, fá-lo porque nos diz muito sobre a mente humana. A mente e a natureza são facetas inseparáveis do mundo que habitamos e concebemos. Então, porque é que as humanidades não hão-de ser também consideradas uma ciência? Podem dizer-nos tanto sobre esse mundo, a um nível fundamental, como as ciências naturais. A matemática demonstra-o claramente.
Alguns realistas ingénuos gostam de fazer uma jogada inteligente. Como adeptos persistentes do cientismo - ou seja, da doutrina metafísica segundo a qual apenas os conceitos e métodos de investigação utilizados pelas ciências naturais, ou mais especificamente pela física, podem explicar o que é real - atribuem simplesmente à teoria unificada tudo o que poderia eventualmente revelar-se uma parte “útil” da matemática, actualmente ou no futuro.
No seu discurso sobre as “duas culturas”, Snow colocou a matemática claramente no campo das ciências. Mas, como vimos, a matemática não adere ao paradigma explicativo da determinação causal. Este facto distingue-a das ciências naturais. No entanto, a matemática diz-nos muito sobre a natureza. Segundo Kant, fá-lo porque nos diz muito sobre a mente humana. A mente e a natureza são facetas inseparáveis do mundo que habitamos e concebemos. Então, porque é que as humanidades não hão-de ser também consideradas uma ciência? Podem dizer-nos tanto sobre esse mundo, a um nível fundamental, como as ciências naturais. A matemática demonstra-o claramente.
Alguns realistas ingénuos gostam de fazer uma jogada inteligente. Como adeptos persistentes do cientismo - ou seja, da doutrina metafísica segundo a qual apenas os conceitos e métodos de investigação utilizados pelas ciências naturais, ou mais especificamente pela física, podem explicar o que é real - atribuem simplesmente à teoria unificada tudo o que poderia eventualmente revelar-se uma parte “útil” da matemática, actualmente ou no futuro.
Porém, este truque semântico não resolve o problema básico do cientismo: o mundo está estruturado de diversas formas e em muitos graus diferentes de abstracção. No nível mais fundamental estão as relações que determinam a ordem espacial e temporal dos acontecimentos. Dentro desta estrutura geométrica, surgem intrincadas e diversas estruturas causais que nos permitem, se suficientemente bem compreendidas, explicar muitos dos fenómenos que delas emergem. Mas há também estruturas mais abstractas, por exemplo, as da teoria das probabilidades, ou da psicologia, da sociologia, da linguística, etc. E não há nenhum critério científico, entendido no sentido restrito de cientismo, que nos possa dizer quais destas estruturas moldam efetivamente o mundo e quais são as que apenas escolhemos para ver o mundo através delas.
Os realistas ingénuos que afirmam que só as ciências naturais podem captar a estrutura do mundo enfrentam um dilema. Ou reduzem o papel da matemática a um mínimo e afirmam que só são admissíveis os modelos matemáticos que se referem a estruturas previamente determinadas pelas ciências naturais. Nesse caso, porém, estão comprometidos com uma posição implausível, segundo a qual as relações abstractas de nível superior, tal como são estabelecidas, por exemplo, pelo teorema do limite central, são meras “projecções” sobre o mundo - não uma parte essencial dele. Ou então também reconhecem essas relações como “científicas”. Mas então têm de apresentar um argumento convincente sobre a razão pela qual, de todas as disciplinas não empíricas, conceptuais e analíticas, cujos padrões de validade são fundamentalmente diferentes dos das ciências naturais, apenas a matemática deve ser admitida no ilustre círculo das “verdadeiras ciências”.
Não tenho conhecimento de nenhum argumento deste género. Existem, de facto, padrões racionais pelos quais podemos distinguir estruturas verdadeiras de estruturas meramente imaginárias; padrões sobre o que constitui uma medida objectiva, uma observação fiável, uma dedução válida ou um argumento convincente. No entanto, estes padrões são muito mais complexos e discursivos do que os proponentes do cientismo querem admitir.
Afirmar simplesmente do púlpito que só são verdadeiras as estruturas que têm de aceitar como verdadeiras para evitar a primeira alternativa do dilema, a redução do papel da matemática a um mínimo completamente implausível, não é muito convincente.
A matemática mina o paradigma explicativo causal não só nas suas manifestações científicas naturais, mas também nos seus usos nas humanidades.
Os realistas ingénuos que afirmam que só as ciências naturais podem captar a estrutura do mundo enfrentam um dilema. Ou reduzem o papel da matemática a um mínimo e afirmam que só são admissíveis os modelos matemáticos que se referem a estruturas previamente determinadas pelas ciências naturais. Nesse caso, porém, estão comprometidos com uma posição implausível, segundo a qual as relações abstractas de nível superior, tal como são estabelecidas, por exemplo, pelo teorema do limite central, são meras “projecções” sobre o mundo - não uma parte essencial dele. Ou então também reconhecem essas relações como “científicas”. Mas então têm de apresentar um argumento convincente sobre a razão pela qual, de todas as disciplinas não empíricas, conceptuais e analíticas, cujos padrões de validade são fundamentalmente diferentes dos das ciências naturais, apenas a matemática deve ser admitida no ilustre círculo das “verdadeiras ciências”.
Não tenho conhecimento de nenhum argumento deste género. Existem, de facto, padrões racionais pelos quais podemos distinguir estruturas verdadeiras de estruturas meramente imaginárias; padrões sobre o que constitui uma medida objectiva, uma observação fiável, uma dedução válida ou um argumento convincente. No entanto, estes padrões são muito mais complexos e discursivos do que os proponentes do cientismo querem admitir.
Afirmar simplesmente do púlpito que só são verdadeiras as estruturas que têm de aceitar como verdadeiras para evitar a primeira alternativa do dilema, a redução do papel da matemática a um mínimo completamente implausível, não é muito convincente.
A matemática mina o paradigma explicativo causal não só nas suas manifestações científicas naturais, mas também nos seus usos nas humanidades.
Damos explicações para uma grande variedade de fenómenos através de causas ocultas com demasiada frequência e rapidez, quando a simples admissão de que não há explicação seria não só mais honesta, mas também mais sensata.
Wittgenstein falou da doença de querer explicar. Esta doença manifesta-se não só nas nossas trocas privadas quotidianas e nos habituais debates públicos, mas também no discurso académico das ciências humanas. Quando confrontados com o pensamento e o comportamento humano individual ou coletivo, é tentador assumir apenas alguns factores subjacentes responsáveis pelo pensamento e pelo comportamento. Mas, na maior parte das vezes, não existe um conjunto de factores tão simples e analisável. Em vez disso, existe um vasto número de factores naturais, psicológicos e sociais que são todos igualmente relevantes para o aparecimento do fenómeno que se pretende explicar. Talvez um computador topo de gama possa incorporar todos estes factores numa grande simulação. Mas uma simulação não é uma explicação. Uma simulação permite-nos prever, mas não nos permite compreender.
O objetivo das ciências humanas não deve ser o de identificar as causas de todos os fenómenos que investigam. A ascensão e queda de impérios, as ramificações económicas e sociais de inovações tecnológicas significativas, o impacto cultural de grandes obras de arte são frequentemente produtos de processos irredutivelmente complexos e caóticos. Nestes casos, tentar imitar as ciências naturais, estipulando alguns factores determinantes principais, é um esforço fútil e enganador.
Mas a matemática mostra que, para além do caos causal, pode haver ordem de um tipo diferente. O teorema do limite central permite-nos ver e explicar uma regularidade comum num vasto leque de processos naturais causalmente muito diferentes, mas igualmente complexos. Tendo em mente este e muitos outros exemplos de explicações matemáticas estruturais de fenómenos no domínio das ciências naturais, parece plausível que a abstração matemática, ou matematicamente inspirada, possa também ter aplicações frutuosas nas ciências humanas.
Não se pretende, de modo algum, promover uma imitação acrítica da matemática nas ciências humanas e sociais. (A superabundância de modelos econométricos simplistas, por exemplo, é um enorme sinal de alerta). Pelo contrário, pretende-se motivar os académicos destas áreas a refletir mais sobre onde e quando as explicações causais fazem sentido. A complexidade nem sempre pode ser reduzida a uma explicação causal ou narrativa compreensível.
Pelo contrário, muitas vezes as investigações mais esclarecedoras não são as que propõem novos factores como os verdadeiros explicadores, mas as que mostram, através de uma análise meticulosa, que estão em jogo muito mais factores do que se pensava anteriormente. Isto, por sua vez, deve motivar os académicos a procurar aspectos do seu tema de interesse para além da causalidade que sejam relevantes e passíveis de formas estruturais de explicação. Para além da teoria das probabilidades, os métodos teóricos do caos e a teoria dos jogos vêm à mente como subdisciplinas matemáticas com aplicações potencialmente frutuosas a este respeito.
No entanto, o ponto principal da nossa discussão não é o facto de as aplicações matemáticas nas ciências humanas poderem colmatar o fosso entre as ciências naturais e as ciências humanas. O que está em causa é que a matemática, não pertencendo de facto a nenhum dos dois campos, mostra-os desde logo em pé de igualdade. O paradigma científico natural de explicação não é o modelo que qualquer forma respeitável de investigação tem de seguir. A matemática mostra que as causas naturais não podem explicar todos os fenómenos, nem mesmo todos os fenómenos naturais e nem mesmo em princípio. Por isso, não é necessário que as ciências humanas, as “ciências do espírito”, procurem sempre explicações através de causas que possam ser “reduzidas” a forças naturais mais elementares.
Além disso, a matemática mostra que a causalidade, seja de que tipo for, não é a única base possível sobre a qual qualquer forma de explicação tem de assentar. Tomemos como exemplo as relações semânticas entre muitos dos nossos enunciados. Não é de todo claro que estas possam ser explicadas em termos de causas psicológicas ou de quaisquer outras causas. Não é irracional acreditar que o mundo é irredutivelmente estruturado, em parte, por relações semânticas, tal como é estruturado por relações probabilísticas.
Esta visão indica uma possível reconciliação entre as ciências naturais e as ciências humanas. Refere-se implicitamente a algo que Richard Rorty exprime explicitamente em Philosophy and the Mirror of Nature (1979) da seguinte forma:
A matemática fornece a prova mais impressionante de que uma verdadeira compreensão do mundo vai para além da descoberta de relações causais - sejam elas constituídas por forças naturais ou culturais. Vale a pena olhar mais de perto para esta prova. Com efeito, ela descreve em cores particularmente vivas o laço que liga o espírito à natureza. Kant entendeu esta ligação como “transcendental”. O falecido Wittgenstein, por outro lado, demonstrou a sua ancoragem na linguagem - não no sentido de uma prática puramente verbal e escrita, mas no sentido de uma prática abrangente de acções cujos elementos mentais e corporais não podem ser separados de forma clara. Nas palavras de Wittgenstein, “comandar, interrogar, contar, conversar fazem tanto parte da nossa história natural como andar, comer, beber e brincar”.
A matemática também faz parte desta prática. Assim, como qualquer ciência, está inseparavelmente enraizada tanto na natureza como no espírito humano. Ao contrário das outras ciências, este duplo enraizamento é evidente no caso da matemática. Basta ver onde reside: para além da causalidade.
https://aeon.co/essays/to-better-understand-the-world-follow-the-paths-of-mathematics
O objetivo das ciências humanas não deve ser o de identificar as causas de todos os fenómenos que investigam. A ascensão e queda de impérios, as ramificações económicas e sociais de inovações tecnológicas significativas, o impacto cultural de grandes obras de arte são frequentemente produtos de processos irredutivelmente complexos e caóticos. Nestes casos, tentar imitar as ciências naturais, estipulando alguns factores determinantes principais, é um esforço fútil e enganador.
Mas a matemática mostra que, para além do caos causal, pode haver ordem de um tipo diferente. O teorema do limite central permite-nos ver e explicar uma regularidade comum num vasto leque de processos naturais causalmente muito diferentes, mas igualmente complexos. Tendo em mente este e muitos outros exemplos de explicações matemáticas estruturais de fenómenos no domínio das ciências naturais, parece plausível que a abstração matemática, ou matematicamente inspirada, possa também ter aplicações frutuosas nas ciências humanas.
Não se pretende, de modo algum, promover uma imitação acrítica da matemática nas ciências humanas e sociais. (A superabundância de modelos econométricos simplistas, por exemplo, é um enorme sinal de alerta). Pelo contrário, pretende-se motivar os académicos destas áreas a refletir mais sobre onde e quando as explicações causais fazem sentido. A complexidade nem sempre pode ser reduzida a uma explicação causal ou narrativa compreensível.
Pelo contrário, muitas vezes as investigações mais esclarecedoras não são as que propõem novos factores como os verdadeiros explicadores, mas as que mostram, através de uma análise meticulosa, que estão em jogo muito mais factores do que se pensava anteriormente. Isto, por sua vez, deve motivar os académicos a procurar aspectos do seu tema de interesse para além da causalidade que sejam relevantes e passíveis de formas estruturais de explicação. Para além da teoria das probabilidades, os métodos teóricos do caos e a teoria dos jogos vêm à mente como subdisciplinas matemáticas com aplicações potencialmente frutuosas a este respeito.
No entanto, o ponto principal da nossa discussão não é o facto de as aplicações matemáticas nas ciências humanas poderem colmatar o fosso entre as ciências naturais e as ciências humanas. O que está em causa é que a matemática, não pertencendo de facto a nenhum dos dois campos, mostra-os desde logo em pé de igualdade. O paradigma científico natural de explicação não é o modelo que qualquer forma respeitável de investigação tem de seguir. A matemática mostra que as causas naturais não podem explicar todos os fenómenos, nem mesmo todos os fenómenos naturais e nem mesmo em princípio. Por isso, não é necessário que as ciências humanas, as “ciências do espírito”, procurem sempre explicações através de causas que possam ser “reduzidas” a forças naturais mais elementares.
Além disso, a matemática mostra que a causalidade, seja de que tipo for, não é a única base possível sobre a qual qualquer forma de explicação tem de assentar. Tomemos como exemplo as relações semânticas entre muitos dos nossos enunciados. Não é de todo claro que estas possam ser explicadas em termos de causas psicológicas ou de quaisquer outras causas. Não é irracional acreditar que o mundo é irredutivelmente estruturado, em parte, por relações semânticas, tal como é estruturado por relações probabilísticas.
Esta visão indica uma possível reconciliação entre as ciências naturais e as ciências humanas. Refere-se implicitamente a algo que Richard Rorty exprime explicitamente em Philosophy and the Mirror of Nature (1979) da seguinte forma:
A intuição por detrás da distinção tradicional entre natureza e espírito, e por detrás do romantismo, é que podemos prever os ruídos que sairão da boca de alguém sem saber o que significam... Esta intuição é bastante correcta... [Mas] isto não se deve ao facto de qualquer coisa ser, em princípio, imprevisível, e muito menos a uma divisão ontológica entre natureza e espírito, mas simplesmente à diferença entre uma linguagem adequada para lidar com neurónios e uma adequada para lidar com pessoas.A divisão entre as ciências naturais e as humanidades não resulta do suposto facto de apenas serem reais os fenómenos mentais explicáveis em termos científicos naturais. A divisão também não se deve a uma ordem mental extra-natural, determinada por relações causais de um tipo muito diferente das estudadas nas ciências naturais. O mundo mental e o mundo físico são um e o mesmo mundo, e as respectivas ciências lidam com diferentes aspectos deste mundo. Se bem compreendidas, na medida em que tratam dos mesmos fenómenos, não fornecem descrições concorrentes mas complementares desses fenómenos.
A matemática fornece a prova mais impressionante de que uma verdadeira compreensão do mundo vai para além da descoberta de relações causais - sejam elas constituídas por forças naturais ou culturais. Vale a pena olhar mais de perto para esta prova. Com efeito, ela descreve em cores particularmente vivas o laço que liga o espírito à natureza. Kant entendeu esta ligação como “transcendental”. O falecido Wittgenstein, por outro lado, demonstrou a sua ancoragem na linguagem - não no sentido de uma prática puramente verbal e escrita, mas no sentido de uma prática abrangente de acções cujos elementos mentais e corporais não podem ser separados de forma clara. Nas palavras de Wittgenstein, “comandar, interrogar, contar, conversar fazem tanto parte da nossa história natural como andar, comer, beber e brincar”.
A matemática também faz parte desta prática. Assim, como qualquer ciência, está inseparavelmente enraizada tanto na natureza como no espírito humano. Ao contrário das outras ciências, este duplo enraizamento é evidente no caso da matemática. Basta ver onde reside: para além da causalidade.
https://aeon.co/essays/to-better-understand-the-world-follow-the-paths-of-mathematics
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