February 19, 2025

A Batalha Contra o Cancro

 


A Batalha Contra o Cancro (outra vez)


Inês Cardoso

A linguagem bélica repete-se sempre que alguém com notoriedade pública sofre uma doença oncológica. Várias intervenções sobre a morte de Pinto da Costa deram conta de que o histórico presidente do F.C. Porto “perdeu a batalha” contra o cancro. Em 2018 escrevi sobre a visão estigmatizante para as próprias vítimas que a expressão encerra, mas há temas a que vale a pena voltar, já que anos de notícias e maior abertura sobre a doença não mudaram significativamente o discurso público.

A incidência de cancro, dizem-nos os especialistas, vai subir 20% em Portugal até 2040. E têm sido insistentes os alertas relativos ao aumento de casos em pessoas com menos de 50 anos. Este é um desafio coletivo, na prevenção da doença como no tratamento. Da investigação à mudança de estilos de vida, dos fatores ambientais à eliminação de mitos e sombras que fomos construindo, são muitas as frentes de trabalho.

Num tempo de marcado individualismo, é ainda mais importante recordar que ninguém deseja um combate corpo a corpo com o cancro e não está, nem pode estar, sozinho nele. Quem morre devido a uma doença oncológica não luta menos do que quem sobrevive, nem ama menos a vida. Não se diz que alguém perdeu a batalha contra a diabetes ou o enfarte, mas por qualquer razão retrata-se uma vítima de cancro como alguém a quem faltou força ou vontade suficiente para sobreviver.

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A linguagem contra o cancro é bélica porque o cancro é uma doença que te quer matar. a maioria das doenças não te querem matar, são apenas um mau funcionamento do sistema, mas que controlamos com medicação. O enfarte não é uma doença, é um episódio. No momento em que tens um enfarte não podes lutar contra ele. Só pedir ajuda e ter a sorte de chegar rápido. A diabetes é uma doença em grande parte evitável, nos casos em que resulta de excesso de peso e, em outros casos é controlável com medicação. Vives com algumas limitações mas vives uma vida normal com com a doença. 

O cancro, em parte é evitável, com o estilo de vida, mas em uma grande parte não é: podes ter pre-disposição genética, ou estar exposto a elementos como amianto, poluição excessiva, poeiras finas, metais pesados e outros elementos ou, só azar... 

E, tal como a SIDA, uma vez que surge faz tudo para te matar e mesmo quando é descoberto no início podes ter o azar de te matar logo ali. Ou podes fazer tratamentos e passados dois anos ou três ou quatro, de repente, quando dás por ti, voltou e espalhou-se. Basta ter lá ficado uma só célula escondida, emboscada que resolve atacar e começar a multiplicar-se. 

Portanto, quando se diz que é uma guerra e que o doente oncológico é um combatente, não se está a dizer que quem morre não amava a vida ou que não foi bom soldado. Às vezes isso acontece e as pessoas desistem de lutar - porque é muito difícil, sobretudo quando os casos são complicados e avançados. Porém, há imensos casos em que, infelizmente,  têm azar. Podem ter lutado e mantido um espírito positivo e ter muito amor à vida e mesmo assim, o cancro não ceder e matar. De maneira que é uma guerra, sim, com um inimigo que se arma para te matar. Muitas vezes é silencioso e não tens sintomas e isso é uma estratégia para te matar. E mesmo quando pensas que o venceste ele pode voltar mais forte e mais perigoso. As células cancerígenas estão vivas, são seres vivos e têm o propósito de te comer viva.

Portanto, sim, é uma guerra e somos combatentes que temos de aprender a viver na ansiedade dessa guerra.

2 comments:

  1. As metáforas guerreiras ou bélicas deixaram o campo da oncologia de adultos (foi onde nasceram, nos EUA) para se instalarem na oncologia pediátrica (tema que conheço relativamente bem ): as crianças travam guerras, têm inimigos, perdem batalhas, são heróis. Isto está profundamente errado. Quem trava guerras é a ciência, quem perde batalhas (mas que batalha é que uma criança perde?) é a ciência, e não há heróis; quem é que quer ser herói com 7 anos ou com meses de idade? Se os que sobreviveram são heróis, o que são os que não sobreviveram? Perdedores? Falhados?
    Há um movimento internacional para acabar com estas metáforas bélicas; não podemos viver sem metáforas, mas temos de escolhê-las bem, e há metáforas que têm o efeito contrário que pretendem ter. Por isso não, as crianças não são combatentes.

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    1. Mas a linguagem bélica é uma linguagem que não convém a crianças em nenhum âmbito e não apenas neste da doença.
      Nesta metáfora de guerra, que é adequada para adultos, não há heróis, mas há inimigo, há combate e há estratégia.
      E há médicos que são muito bons a perceber o inimigo e definir estratégia e quando conseguem destruí-lo, são vencedores. Nós doentes somos só combatentes ou resistentes. Nada mais.

      Há muitos anos era dessa opinião e defendia que era errado falar do cancro e de outras doenças com metáforas bélicas , mas há um par de anos mudei de opinião.
      Tenho sido e sinto-me uma combatente ou resistente. Têm sido levas, umas a seguir às outras de complicações e problemas e tenho feito a minha parte de ajudar os médicos e os medicamentos com disciplina e espírito positivo, com resistência estóica. É uma luta. como a minha situação é complexa, falo muitos exames para não ser surpreendida pelo inimigo - é assim que o vejo.

      Não sinto nem penso que quem tem o azar de não sobreviver à doença seja um perdedor, assim como não penso que quem lhe sobrevive seja um vencedor. É um sobrevivente.

      Fazendo uma analogia, quem sobreviveu à devastação dos campos nazis não foi um herói ou um vencedor, mas foi um combatente e um resistente. Quem não sobreviveu não foi um perdedor, foi uma vítima. Mas havia uma guerra e um inimigo que queria a morte e não me parece que se deva fingir que não.

      Não estou de acordo em esconder a realidade com uma linguagem enganosa. Como chamar conflito à guerra da Rússia na Ucrânia. Dou muita importância às palavras descreverem a realidade que se quer significar.

      Enquanto o cancro for um inimigo devastador a necessitar de estratégia e armas, a metáfora da guerra é adequada. Quando for só um incómodo que se trata como uma constipação ou que se evita com uma vacina, como o sarampo, então muda-se a linguagem.

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