October 10, 2024

O absurdo de se considerar que a parentalidade deve ser uma submissão ao hedonismo dos filhos

 


E o absurdo ainda maior de isso ser levado a sério. Há pouco tempo li, num grupo de professores de filosofia universitários americanos, que sigo numa rede social, que cada vez há mais alunos a dizer que escolheriam a máquina de prazer da experiência mental de Nozick, em vez da realidade. Algo que nos anos 70 ou 80 do século passado nos pareceria evidente -por muito prazer que possamos sentir numa máquina de felicidade, nada substitui a liberdade e a consciência da realidade- deixou de o ser e nos dias de hoje há muita gente que considera que as pessoas devem ser poupadas a qualquer desconforto psicológico ou emocional que lhes cause o mínimo desprazer. Uma maioria também crescente desses alunos citados, gostaria que aplicações de IA escolhessem por si, os seus parceiros para a vida. Tudo para evitar o desconforto da escolha, da responsabilidade pela escolha e da possibilidade do erro e suas consequências de desprazer psicológico e emocional. Ora, não há educação sem desconforto psicológico e emocional, pois educar implica escolher e de cada vez que se escolhe um caminho fecha-se outro(s), que poderiam ser mais aprazíveis. Por isso, cade vez é mais difícil ser professor: os alunos, os pais e a sociedade em geral cada vez mais exigem que a educação escolar seja uma espécie de experiência constante da máquina do prazer. Talvez por isso os jovens de hoje, quando querem lutar contra este modelo económico que nos mantém agarrados aos combustíveis fósseis, não tenham nenhuma resistência à frustração, nenhum recurso interno para ultrapassar obstáculos ou propor caminhos diferentes e não saibam definir estratégias de pressão para a mudança sem ser a recorrência à violência.


A minha criança em risco

Escrevi uma crónica sobre a ida do meu filho para um campo de férias e acabamos na CPCJ arrastados por uma denúncia anónima. O caso seguiu para o MP. E o mundo pula e avança.

Inês Teotónio Pereira

O meu filho não queria ir a um campo de férias no Verão. Um campo onde esteve seis dias com adultos e animadores entre rios e serras, sem telemóveis ou videojogos e com miúdos da idade dele. O meu filho detesta dormir fora de casa. Por isso, e por todas as razões ligadas ao conforto e receio do desconhecido, fez tudo o que estava ao seu alcance para não ir. Como este é o sexto filho e o filme é repetido, garanti que ia com a certeza de que o fazia para o seu bem, crescimento, etc. Custou-me. Queixou-se e resistiu durante os primeiros dias, mas ambientou-se e chegou contente. Por se ter divertido, por se ter superado e por regressar a casa. Relatei tudo isto numa crónica escrita na altura. Usei alguma ironia e exagero para tentar mostrar que nós, pais, sofremos bastante quando decidimos fazer aquilo que achamos ser o mais certo que vai contra a vontade dos nossos filhos. E, quando cedemos, somos nós os mimados e não eles.

Dois dias depois desta crónica ter sido publicada, a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) recebeu uma denúncia anónima, online. Diz o queixoso sem nome ou rosto que o “Filho de Inês” teria sido sujeito a uma situação de “violência emocional e psicológica” e podia estar em risco. Pedia-se uma intervenção. Uma queixa anónima para ser aceite requer apenas um nome e uma narrativa. Ponto. Mas o denunciante também tinha a morada. Pais e filho apresentaram-se, assim, na CPCJ mais próxima para serem notificados da denúncia. A queixa foi lida enquanto a criança esperava na sala ao lado. Explicamos o que tínhamos a explicar, o que foi escrito e assinado.

No entanto, o procedimento obriga a ir mais longe. Contactar a escola, conversar com a criança e fazer uma visita surpresa à morada de família. Caso os pais não autorizem, o processo é arquivado na CPCJ e segue caminho para o Ministério Público. Depois logo se vê qual o entendimento dos magistrados. O caso seguiu para o MP: os pais não autorizaram. Por várias razões: porque explicámos o que aconteceu, porque a CPCJ deve ter mais que fazer do que perder tempo e dispersar recursos com o relato da ida de um menino contrariado para um campo de férias, porque há nisto qualquer coisa de censura ao que se escreve (e não apenas ao que se fez) e porque quem não se sente não é filho de boa gente.

Passando por cima da questão mais do que consensual de que a proteção de menores passa pelas denúncias anónimas, o que está certo, este caso revela várias questões graves. Será que não há processos urgentes que exijam a atenção dos escassos meios disponíveis das CPCJ? Desde que passou a ser possível denúncias anónimas online, o número disparou e a triagem entre o importante e o que é só estúpido deixou de existir. O Estado disponibiliza aos cidadãos um mecanismo para poderem exercer os seus ódios, perseguir, etc. Um mecanismo que existe para proteger crianças em risco ou perigo eminente de maus tratos. Outro ponto, menos importante, é a liberdade de expressão e a confidencialidade dos dados pessoais. Sobre a primeira ficamos a saber que o espaço público é perigoso e assombroso. Sobre a segunda, ficamos a saber que não existe. Está a chegar o dia em que os “procedimentos” vão condicionar decisões como seja ter filhos. Para já é só como os educar. E ninguém vai reparar.

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