September 07, 2024

Leituras de fim-de-semana - Doom scrolling

 

(não sei como traduzir esta expressão que é um trocadilho da expressão em língua inglesa do hábito negativo de deslizar continuamente o ecrã -scrolling- a ler notícias de desgraças e a referência aos pergaminhos antigos -scrolls- perdidos nos labirintos da História - é sobre este últimos que fala este ensaio)


Doom scrolling

por Justin Germain

Podemos estar perto de redescobrir milhares de textos que se perderam durante milénios. O seu conteúdo pode alterar a forma como compreendemos o Mundo Antigo.

Costumávamos jogar este jogo na pós-graduação: 'encontrar um, perder um'. 'Encontrar um' referia-se a encontrar um texto antigo perdido, algo que sabemos que existiu numa determinada altura porque outras fontes antigas falam dele, mas que se perdeu nos tempos. E se alguém estivesse a escavar algures no Egipto e encontrasse uma antiga lixeira greco-romana com uma cópia completa de um texto precioso - qual deles desejaríamos que sobrevivesse? 'Perder um' referia-se a termos um texto antigo e trocá-lo, num qualquer negócio faustiano para ressuscitar o tal texto antigo. 

É claro que há um pouco de efeito borboleta; foi isso que tornou tudo divertido. Como classicistas em início de carreira, crescemos num mundo académico onde não tínhamos A, mas tínhamos B. Quão diferente seria a erudição clássica se isso mudasse? Se tivéssemos tido sempre A, mas nunca B? Para mim, o texto que sempre escolhi encontrar foi um panfleto pouco conhecido que circulou no final do século IV por um rei espartano deposto chamado Pausânias. É um dos poucos textos sobre Esparta escritos por um espartano quando Esparta ainda era hegemónica. Perdi sempre o Evangelho de Mateus. É basicamente uma cópia de Marcos, até na gramática e na sintaxe. Precisamos mesmo de dois?

O que é que você escolheria? Imagine que a Ilíada e a Odisseia de Homero são apenas dois dos poemas que compõem o ciclo épico de oito partes; ou que Aristóteles escreveu um tratado perdido sobre a comédia, para não falar dos seus próprios diálogos socráticos, que Cícero descreveu como um “rio de ouro”; ou que apenas oito das cerca de 70 peças de Ésquilo sobreviveram. Até o Antigo Testamento hebraico faz referência a 20 textos antigos que já não existem. Há textos literalmente perdidos que, se os tivéssemos, teriam muito provavelmente entrado no cânone bíblico.
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Pode encontrar uma lista de textos que sabemos terem sido perdidos na página da Wikipédia, "Lost_literary_work"
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O problema é mais complexo do que o facto de muitos textos se terem perdido nos anais da história. A maioria das pessoas vê a tradução mais recente da Ilíada ou as obras de Cícero na prateleira de uma livraria e assume que estes textos foram transmitidos de uma forma bastante previsível, geração após geração: os escribas fizeram cópias, fielmente, desde a Grécia antiga até à Idade Média e, finalmente, com o advento da imprensa, foram disponibilizadas versões fiáveis destes textos no vernáculo da época e do lugar a todos os que os quisessem. O arco intelectual da história avança e sobe! Era o que eu também pensava.

Porém, o facto é que muitas das obras da Antiguidade, mesmo as mais famosas, têm uma história longa e complicada. Quase nenhum texto é descodificado facilmente; o processo de trazer traduções legíveis de textos antigos para as mãos dos leitores modernos requer a cooperação de académicos de várias disciplinas. Isto significa horas de trabalho árduo por parte daqueles que encontram os textos, daqueles que os preservam e daqueles que os traduzem, para mencionar apenas alguns. Mesmo com este empenho, muitos textos perderam-se - a estimativa habitual é de 99% - pelo que não temos cópias da maior parte das obras da Antiguidade. 

Apesar desta estatística preocupante, de vez em quando, descobre-se algo de novo. Essa promessa, de que algum texto proeminente do mundo antigo pode estar mesmo debaixo da próxima duna de areia, é o que tem preservado a paixão dos académicos em continuar a procurar na esperança de encontrar novas fontes que resolvam mistérios do passado.

O sofrimento dos estudiosos vtem alido a pena! Consideremos a Villa dos Papiros, onde no século XVIII foram descobertos centenas, se não milhares, de pergaminhos carbonizados nos destroços da erupção do Monte Vesúvio (79 d.C.), numa cidade chamada Herculano, perto de Pompeia. 

Durante mais de um século, os académicos esperaram que a ciência futura os ajudasse a ler estes pergaminhos. Só nos últimos meses - através de avanços na imagem computorizada e na revelação digital - conseguimos ler as primeiras linhas. Isto deveu-se, em grande parte, ao trabalho árduo do Dr. Brent Seales, ao apoio do Vesuvius Challenge e aos académicos que responderam ao apelo. Estamos agora preparados para ler milhares de novos textos antigos nos próximos anos.

Primeiro, um pouco de informação sobre a proveniência dos textos antigos. Não temos cópias originais de nada, nem da Ilíada, nem da Eneida, nem de Heródoto, nem da Bíblia. Em vez de originais, estamos a lidar com cópias. Estas foram escritas primeiro em rolos de pergaminho, mas depois em livros - os romanos chamavam aos livros códices - a partir do século I d.C.

Eu disse cópias? Na verdade, isso também não é correto. Não temos primeiras cópias de nada. O que temos são cópias de cópias, a maior parte das quais datam de centenas de anos depois de o original ter sido escrito. Mesmo muitas das nossas cópias não são cópias completas. 

Tomemos, por exemplo, a mais antiga peça sobrevivente do Novo Testamento: um fragmento do Evangelho de João conhecido como P52. Longe de ser uma cópia completa do livro, este fragmento tem aproximadamente o tamanho de um cartão de crédito e, data de 125 d.C., segundo as primeiras estimativas. Isto é, mais de 100 anos depois de Cristo ter sido crucificado. O fragmento é, sem dúvida, pelo menos uma cópia de uma cópia, porque a sua datação é demasiado tardia para ser um original ou uma primeira cópia. Além disso, foi encontrado no Egito, longe tanto da Judeia como da Síria, de onde se pensa que João é originário. Encontrar uma cópia completa de um texto - quanto mais de uma Bíblia cristã primitiva - é um feito inédito. Só encontrámos duas Bíblias deste tipo, o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus, ambos datados de meados do século IV.

Mais frequentemente do que encontrar essas cópias completas, os académicos compilam os vários fragmentos de cópias e tentam reconstruir a obra original. Quando chegam a acordo sobre o texto original - e, nalguns casos, nunca chegam a acordo -, o texto está pronto para ser publicado na língua original. 

Quando ainda existem variantes no texto, os académicos incluem um apparatus criticus, citando o manuscrito a partir do qual o texto é publicado e listando os manuscritos com leituras variantes. O último passo é acrescentar uma tradução em vernáculo, e há edições bilingues e até poliglotas. Estas podem ir desde a Bíblia Poliglota Complutense, uma magnífica obra de seis volumes impressa em Madrid em 1519, que apresenta o texto das escrituras em nada menos do que quatro línguas - grego, hebraico, latim e aramaico - até às populares edições Loeb, impressas com o texto antigo e uma tradução inglesa, para quem tem um conhecimento limitado das línguas antigas.

Para que o leitor se familiarize da melhor forma com o carácter ténue deste processo, este ensaio centrar-se-á em três textos diferentes. O primeiro será uma obra muito conhecida que nunca se perdeu. No entanto, quase ninguém a leu a sério até ao século XIX. Em seguida, abordarei um texto que se perdeu na história, mas que conseguimos recuperar dos anais do tempo. Estes exemplos são fortuitos. O nosso terceiro exemplo será um texto que sabemos ter existido, mas do qual não dispomos de cópias, e analisaremos as importantes ramificações que a sua descoberta poderá ter. Finalmente, voltaremos a nossa atenção para a Vila dos Papiros e para a mina de ouro de textos aí descobertos que as novas tecnologias estão actualmente a pôr à disposição dos classicistas. Ao examinar a história dos três primeiros textos, espero esboçar uma imagem de como as novas descobertas da villa poderão mudar a nossa compreensão do mundo antigo.

O primeiro texto que vamos analisar é a Política de Aristóteles. A Política é o tratado de Aristóteles sobre as várias estruturas de governo da Grécia dos séculos V e IV a.C. Na obra, Aristóteles analisa não só as constituições actuais, mas também as hipotéticas, como o Estado ideal de Platão, descrito na República (de que não era fã). A Política é um texto famoso e célebre, não só entre os classicistas, mas também entre o público culto. É onde se originam frases famosas como “O homem é por natureza um animal político”. É um texto cuja história é mais ou menos completa, contendo muito poucos buracos. Poder-se-ia pensar que um texto antigo tão famoso actualmente teria sido ainda mais famoso no passado. Mas a Política de Aristóteles é um contraponto clássico a essa suposição. Embora não seja exacto dizer que a Política, sendo uma das obras inéditas de Aristóteles, se perdeu, foi certamente redescoberta.

Em primeiro lugar, os escritos de Aristóteles dividem-se em dois grupos: obras publicadas e obras não publicadas. As primeiras são obras que Aristóteles escreveu para o público grego em geral e que foram distribuídas por esse público. As segundas são obras que foram escritas e restritas aos estudantes do Liceu, sede da escola peripatética que Aristóteles fundou em Atenas no final do século IV a.C.2 

Os escritos de Aristóteles eram limitados apenas pelos seus interesses e ele interessava-se por tudo: ciência, matemática, metafísica, biologia, política, lógica, música e astronomia. A Política foi uma das obras inéditas de Aristóteles. Plutarco e Estrabão testemunham que as obras inéditas de Aristóteles foram passando de director em director do Liceu até chegarem às mãos de um colecionador privado, Neleu de Scepsis. Foi aí que a biblioteca inédita de Aristóteles permaneceu, fechada numa cave, até que Apelicon de Teos descobriu os textos e os trouxe de volta a Atenas, onde Andrónico de Rodes os publicou em meados do século I a.C.3

No caso da Política, o conteúdo vinha das notas que os alunos tiravam nas aula de Aristóteles, ou das notas de um único aluno brilhante ou talvez de um livro de textos que Aristóteles escreveu sobre a disciplina e que se encontrava na biblioteca do Liceu. A obra só foi disponibilizada ao grande público grego com a publicação de Andrónico, por volta de 60-50 a.C.. 

Foi durante o chamado período helenístico, depois de o mundo se ter tornado pequeno na sequência das conquistas de Alexandre, o Grande. O grego era a língua franca de grande parte do mundo, o que significa que textos gregos como os de Aristóteles podiam ser apreciados por um vasto público. Foi também o início da era da ocupação romana da Grécia e da maior parte do Norte do Mediterrâneo. Os romanos da classe alta estavam desesperados por se familiarizarem com tudo o que era grego. A maioria dos patrícios falava e sabia ler grego e latim.

De um modo geral, o mundo grego e romano antigo eram platonistas e não aristotélicos. Isso significa que a teoria das formas de Platão, bem como a sua ênfase geral no metafísico e no eterno, tinha muito mais valor social e cultural, por oposição à filosofia muito fundamentada de Aristóteles, que lidava com o mecânico, mesmo quando abordava o metafísico. 

Por outras palavras, a cabeça de Platão estava sempre nas nuvens. Questões como “O que é o amor?”, “Existe vida após a morte?” e “O que é a vida boa?” dominavam a filosofia de Platão. Aristóteles preocupava-se mais com a forma como se escreve uma boa tragédia ou como as lulas se reproduzem. Essa é a grande diferença entre os dois filósofos. Platão preocupava-se sobretudo com o porquê, Aristóteles com o como. 

É sempre possível saber qual é qual quando se olha para a famosa Escola de Atenas de Rafael no Museu do Vaticano. Os dois filósofos estão lado a lado: Platão aponta para cima, para onde pensa que a humanidade deve concentrar a sua atenção, Aristóteles aponta para baixo, para a Terra. 

O domínio intelectual de Platão manteve-se durante a Idade Média. Aristóteles foi praticamente esquecido no Ocidente após o colapso do Império Romano. No entanto, o filósofo muçulmano Averroes (Ibn Rushd), que viveu na atual Córdoba, em Espanha, escreveu um extenso comentário aos escritos aristotélicos. Estes comentários acabaram por chegar a São Tomás de Aquino (1225-1274), a quem Aristóteles muito influenciou. Finalmente, cerca de 1500 anos após a sua redacção, a Política começou a ser amplamente lida e considerada como uma alternativa viável à República de Platão.

Tudo o que Aquino aprovava era tido em grande consideração pela Igreja Católica. A Igreja continuou a copiar e a preservar as obras de Aristóteles, incluindo a Política, até ao aparecimento da Imprensa Aldina em Veneza. 

Aldus Manutius, fundador da imprensa, publicou a Política em 1498. Mesmo depois dessa data, outros autores antigos, como Platão e Cícero, continuaram a ser preferidos a Aristóteles, mas nessa altura os filósofos políticos de elite da época já conheciam a Política. Só em 1832, com a publicação pela Academia Prussiana do corpus aristotélico de Berlim, é que a Política e Aristóteles em geral, ganharam notoriedade junto de uma faixa muito mais alargada do público culto. 

A história da Política tem muitas voltas e reviravoltas, mas é completa. Por outras palavras, podemos traçar uma linha recta desde a sua redacção original até às cópias, traduzidas para o vernáculo, na prateleira da livraria local. Além disso, a fama de Aristóteles hoje em dia é um testemunho da influência do homem e dos seus escritos. Não é preciso ser um estudioso dos clássicos, nem sequer ter um diploma universitário, para reconhecer a perspicácia intelectual que o nome Aristóteles evoca. 

No entanto, a história da Política é um exemplo claro e óbvio de como, mesmo quando tudo corre bem - o texto nunca desapareceu durante 500 anos e temos cópias completas em vez de fragmentos -, os textos podem entrar e sair de moda, pelo que o seu ressurgimento pode levar a várias redescobertas mais pequenas, como as críticas de Aristóteles ao Estado espartano, que eram amplamente desconhecidas antes da publicação prussiana (falaremos mais sobre isso mais tarde). 

Mesmo que a população culta saiba que uma determinada obra existe, se não for suficientemente procurada para exigir traduções, ou se essas traduções não estiverem prontamente disponíveis, está efectivamente perdida. A Política, foi “redescoberta” quando foi publicada pela primeira vez no mundo antigo, no século I a.C., e depois novamente por Tomás de Aquino, no século XIII. Foi reavivada com a publicação de Aldus Manutius. Mas só nos últimos duzentos anos, com a sua publicação pela Academia Prussiana, conheceu o auge do seu alcance e popularidade. Actualmente, é possível encontrar edições populares em quase todas as livrarias, geralmente traduzidas a partir do texto publicado pela Academia Prussiana.

Vejamos agora um texto com uma história muito diferente, a Hellenica Oxyrhynchia. A Hellenica Oxyrhynchia é o nome dado a um grupo de fragmentos de papiro encontrados em 1906 na antiga cidade de Oxyrhynchus, a moderna Al-Bahnasa, no Egito (cerca de um terço do caminho que desce o Nilo desde o Cairo até à barragem de Assuão). 

Estes fragmentos foram encontrados num antigo monte de lixo. Abrangem a história política e militar grega desde os últimos anos da Guerra do Peloponeso até meados do século IV a.C. Na sua obra Helénica, Xenofonte cobre exatamentce o mesmo período de tempo e muitos dos mesmos acontecimentos. Ambas as narrativas retomam o ponto de partida de Tucídides, o principal historiador da Guerra do Peloponeso (travada entre Atenas e Esparta no século V a.C.).

Embora não tenha sido identificado nenhum autor para a Hellenica Oxyrhynchia, a gramática e o estilo datam o texto da época dos acontecimentos que descreve. Trata-se de um texto recuperado, o que significa que estava completamente perdido na história e só foi descoberto no início do século XX. 

Aqui, a palavra descoberto é usada apropriadamente, uma vez que este não era um texto famoso nos tempos antigos. Nenhum historiador antigo lhe faz referência e não parece ter tido um impacto duradouro na sua época. O que é desdenhável no passado é esquecido no presente. 

O texto está escrito em grego ático. Isto implica que quem escreveu a Hellenica Oxyrhynchia deve ter sido uma elite suficientemente familiarizada com o popular estilo ático para o reproduzir, e provavelmente pretendia que a história fosse igual às de Tucídides e Xenofonte. Havia outros estilos disponíveis na altura, mas o grego ático era o estilo dos historiadores acima mencionados, bem como o estilo de escrita da elite originária de Atenas. Qualquer história que não fosse escrita em ático seria considerada inferior. Dado que a Hellenica Oxyrhynchia se perdeu durante milhares de anos, parece que o nosso autor falhou na sua tentativa de espelhar os grandes historiadores da Grécia clássica.

A Hellenica Oxyrhynchia serve para recordar que a descoberta moderna de textos antigos continua. Muitas vezes, trata-se de cópias adicionais de textos que já possuímos. Isto não quer dizer que essas cópias não sejam importantes. Foi o caso do já referido Codex Siniaticus, descoberto pelo biblista Konstantin von Tischendorf num cesto do lixo, à espera de ser queimado, num mosteiro perto do Monte Sinai, no Egipto, em 1844. Após uma análise mais aprofundada, Tischendorf descobriu que este “lixo” era, de facto, uma cópia quase completa da Bíblia cristã, contendo o mais antigo Novo Testamento completo de que dispomos. Uma grande discrepância é o facto de a famosa história de Jesus e da mulher apanhada em adultério - de onde provém a passagem frequentemente citada “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra” - não se encontrar no Codex Sinaiticus.

No entanto, por vezes, é descoberto algo verdadeiramente novo para nós, que ninguém viu durante milhares de anos. No caso da Hellenica Oxyrhynchia, parece que ninguém olhava para este texto há pelo menos 1500 anos, talvez até mais. Este facto demonstra que existe sempre a possibilidade de, enterrado num qualquer monte de sucata antigo no deserto, estar um texto completamente novo que, uma vez publicado, aumenta consideravelmente o nosso conhecimento dos antigos.

Como é que este texto específico aumenta o nosso conhecimento? Não esqueçamos que, antes deste período da história grega, temos apenas um historiador por época. Heródoto é a única fonte de que dispomos para as Guerras Greco-Persas (480-479), e o já referido Tucídides retoma a partir daí e cobre rapidamente o clima político antes de iniciar a sua história propriamente dita com o advento da Guerra do Peloponeso em 431 a.C. 

Mas a história de Tucídides está inacabada - uma biografia antiga afirma que ele foi assassinado quando regressava a Atenas, por volta de 404 a.C. Muitos duvidam deste facto, citando provas de que viveu até ao início do século IV a.C. Seja como for, a sua narrativa termina abruptamente. Xenofonte retoma a história a partir daí e, mais tarde, Diodoro, que escreveu muito mais tarde, entre 60 e 30 a.C., apresenta-nos uma história mais breve deste período. Embora descrevam o mesmo período de tempo e muitos dos mesmos acontecimentos, estas duas fontes variam muito nas suas descrições de certos acontecimentos. Nalguns casos, fazem afirmações que se excluem mutuamente. Um dos historiadores deve ter-se enganado.

Durante séculos, o relato de Xenofonte foi o texto preferido. Isto não quer dizer que a história de Diodoro tenha sido descartada, mas quando as duas narrativas entravam em conflito, o testemunho de Xenofonte era o preferido. Isto deveu-se, em parte, ao facto de Xenofonte ter vivido durante os tempos sobre os quais escreveu, enquanto Diodoro viveu 200 anos depois destes acontecimentos da história grega. 

Imaginemos que existem dois relatos contraditórios da Batalha de Gettysburg de dois historiadores diferentes: um viveu e participou na guerra, enquanto o outro é um académico do século XXI que vive 150 anos depois dos acontecimentos que descreve. Discordam sobre elementos-chave da batalha. Em quem acreditar? Foi precisamente este o caso de Xenofonte e Diodoro. No entanto, assim que a Hellenica Oxyrhynchia foi publicada, corroborou a história de Diodoro muito mais do que a de Xenofonte, forçando os historiadores a reconsiderar a sua tendência para o mais antigo dos dois relatos.

Como estou sempre a dizer aos meus alunos, só porque um livro antigo diz que algo aconteceu, não significa que tenha acontecido. Nem significa que tenha acontecido da forma descrita no texto. Muitas vezes, deparamo-nos com narrativas concorrentes de textos antigos e, tal como alguém que analisa o ciclo de notícias nos tempos modernos, tendo em conta os preconceitos e as limitações de quem relata e tentando descobrir qual é a verdade, também os classicistas têm de comparar fontes e decidir quais são mais fiáveis do que outras. Não é mágico, nem é simples. Mas podemos construir uma narrativa mais completa e exacta do passado estudando diligentemente os textos que temos, procurando incansavelmente os textos que não temos e aplicando-nos impiedosamente ao princípio da procura da verdade nas nossas fontes antigas. As provas de corroboração fornecidas quando um novo texto é descoberto são um elemento fundamental desse processo. E isto para não falar dos textos que nos contam uma história completamente nova da Antiguidade, uma história para a qual não existem contemporâneos, como a Epopeia de Gilgamesh.

A Epopeia de Gilgamesh conta a história de Gilgamesh, o rei de Uruk - o Iraque moderno - e a sua busca pela imortalidade, ou, como ele diz, para escrever o seu “nome nos tijolos”. Pelo caminho, Gilgamesh conhece todo o tipo de pessoas estranhas, incluindo um homem selvagem chamado Enkidu, que só é finalmente domesticado depois de Gilgamesh contratar uma prostituta para dormir com ele, e o homem mais velho vivo, Utnapishtim, que sobreviveu a uma grande inundação que cobriu o mundo inteiro. 

A descoberta deste texto no século XIX - encontrado gravado em tábuas na antiga cidade de Nínive - causou uma grande controvérsia, uma vez que aqueles que procuravam desacreditar o relato bíblico da arca de Noé dispunham agora de um documento a partir do qual a história bíblica era, segundo eles, plagiada. Mas aqueles que procuravam simultaneamente validar o relato tinham agora uma fonte, muito mais antiga do que o texto do Génesis, que corroborava a saga de Noé.

Para os nossos textos finais, escolhi um que me é caro, regressando a um autor anterior: a Constituição dos Espartanos de Aristóteles. Trata-se de uma obra que foi atestada muitas vezes por autores antigos, pelo que sabemos que existiu, mas falta-nos um único fragmento dela. Esparta sempre foi um objeto de fascínio. Apesar da popularidade da antiga Esparta, sabemos muito pouco sobre a cidade-estado. Não temos textos escritos sobre Esparta por espartanos. Todos eles foram escritos por estrangeiros, na sua maioria atenienses, na sua maioria inimigos de Esparta. Heródoto, que conta a história dos 300, não era espartano. Nem Tucídides; pelo contrário, lutou contra eles na Segunda Guerra do Peloponeso.

Imaginemos um universo alternativo em que todas as fontes sobre a América foram escritas por soviéticos no auge da Guerra Fria. Os historiadores do futuro poderiam ter uma noção distorcida da realidade. É exatamente esse o caso da antiga Esparta. Além disso, como o tesouro dos espartanos era a sua cultura e não a sua arte ou edifícios, há muito pouco que a arqueologia nos possa dizer sobre a forma como os espartanos viviam. 

Tucídides explica melhor esta questão quando, no início da sua História da Guerra do Peloponeso, afirma que os historiadores do futuro terão dificuldade em acreditar que Atenas era vista como a mais desfavorecida e Esparta como a grande favorita, quando considerarem os grandes templos e ágoras de Atenas, em justaposição com as infra-estruturas pouco desenvolvidas de Esparta. Mas nem todas as infra-estruturas são físicas ou deixam vestígios materiais. A cidade de Esparta não possuía uma muralha defensiva na época clássica. No entanto, de acordo com os Ditos dos Espartanos, de Plutarco, os homens eram a sua muralha. Por isso, ao estudar Esparta, temos apenas o registo escrito para nos guiar.

Por último, os próprios espartanos tinham um incentivo para perpetuar histórias que apoiassem a sua reputação de guerreiros invencíveis. Se pensavam que podiam entrar em guerra com Atenas, e sabiam que os atenienses pensavam que estavam loucos, porquê despojá-los dessa crença? Isto é conhecido pelos historiadores como a «miragem espartana». A miragem era ainda mais proeminente nos tempos antigos porque muitos dos gregos e romanos posteriores eram laconifilistas, ou seja, amantes de Esparta. 

É isto que tornaria a Constituição de Aristóteles tão útil. Embora ainda fosse um forasteiro, Aristóteles escreveu sobre o Estado espartano na Política e não tinha boas coisas a dizer. É seguro assumir que, independentemente do que dizia a Constituição de Aristóteles, o seu testemunho não foi influenciado pela miragem espartana, dando-nos talvez uma imagem mais exacta da vida dentro da cidade-Estado.

Cerca de 500 anos após a Constituição dos Espartanos de Aristóteles, o antigo biógrafo Plutarco afirma ter visitado os arquivos de Esparta. Plutarco não era um historiador. Como biógrafo, o seu principal interesse era contar uma história convincente do seu objeto de estudo. Mas na ausência de uma etnografia dos espartanos, Plutarco preenche as lacunas. O historiador Richard Talbert considera que a Constituição de Aristóteles é a principal fonte de Plutarco, mais do que a obra homónima de Xenofonte, o mais antigo e mais completo tratado sobre o governo e a cultura espartanos, que sobreviveu até aos nossos dias.

Embora não seja um contemporâneo exacto dos tempos que descreve, Xenofonte viveu apenas uma geração depois e viu Esparta no auge da sua glória antes de começar a declinar. No seu relato, Xenofonte tenta explicar a um público grego mais vasto que tipos de hábitos e práticas culturais permitiram aos espartanos “dominar toda a Grécia, apesar de serem o mais pequeno dos Estados gregos”, tais como o sistema de educação pública, denominado agoge, a vida em comunidade e os casamentos não monogâmicos. 

Se Talbert estiver correto, isto significa que a obra perdida de Aristóteles foi a fonte primária para o que veio a ser uma das obras mais autorizadas sobre a antiga Esparta: a biografia de Plutarco do legislador espartano Licurgo. Esta biografia constitui grande parte do que sabemos sobre Esparta. Mas é um texto confuso, contradizendo-se em muitos pontos importantes. Além disso, é uma biografia, e não uma história ou um tratado político, e faz algumas afirmações ultrajantes que muitos académicos modernos consideram pouco convincentes.

Por exemplo, a herança de propriedades. Plutarco afirma que todos os espartanos homens recebiam do Estado uma parcela de terra para se sustentarem a si próprios e às suas famílias. Quando o homem morria, essa parcela regressava ao tesouro do Estado e era redistribuída. Mas Stephen Hodkinson considera que isto é um disparate, não só porque está drasticamente desfasado da época, mas também porque é contrariado por outras fontes antigas, entre as quais o próprio Aristóteles.

 Outro exemplo é o do agoge. Enquanto Plutarco pinta um quadro em que os pais abdicam completamente dos direitos individuais dos filhos para serem educados pelo Estado, Nigel Kennell cita numerosos diários de viagem que mostram que os filhos dos espartanos viajavam com os pais e passavam muito tempo com eles durante o ano. Dificilmente a educação rigorosa e de estilo militar que Plutarco sugere.

Muitas das afirmações mais radicais de Plutarco são rejeitadas por historiadores que acreditam que ele estava cego pela «miragem espartana». É também um facto que ele escreveu quase meio milénio depois da hegemonia de Esparta. Mas se a Constituição de Aristóteles fosse encontrada, e se corroborasse o relato de Plutarco sobre a vida espartana, poderia fazer por Plutarco o que a Hellenica Oxyrhynchia fez por Diodoro. Seria um divisor de águas nos estudos espartanos.

A Constituição dos Espartanos, de Aristóteles, não é o único texto deste género. Conhecemos dezenas de dramaturgos gregos famosos na Antiguidade, mas de cuja obra não dispomos de um único fragmento. E a história de Alexandre, o Grande, escrita por Ptolomeu? Sabemos que escreveu uma, porque Arriano, que escreveu a única história completa de Alexandre de que dispomos, afirma tê-la usado como fonte. O que dizer da grande cultura dos cartagineses, cuja poesia e filosofia, segundo nos dizem, estavam por todo o Mediterrâneo antes da destruição final da cidade por Roma e do apagamento da sua cultura em 146 a.C.? O que poderíamos aprender sobre as Guerras Púnicas se encontrássemos uma história cartaginesa do conflito? Que mais poderá estar à nossa espera e como poderá contribuir para a nossa perceção da história antiga?

Por muito que tenhamos discutido a nossa sorte em preservar e encontrar textos antigos, o facto de termos uma cópia física da obra é apenas metade da batalha. Ainda é preciso ler livros e pergaminhos que têm tendência a desfazer-se em pó mal são abertos. Para isso, recorremos ao tesouro de textos encontrado na Villa dos Papiros. 

Em 1750 d.C., um agricultor italiano saiu para cavar um poço. Descobriu um chão de mármore. Avisou as autoridades italianas e, em poucos dias, o campo em que estava a trabalhar estava repleto de académicos. O que o agricultor tinha descoberto, sem querer, eram os restos de uma elegante villa na antiga cidade romana de Herculano, uma das cidades soterradas por um dilúvio de cinzas quando o Vesúvio entrou em erupção em 79 d.C.

Embora a villa fosse uma cornucópia de arte e arquitetura romana antigas, o tesouro mais abundante encontrado enterrado no campo era uma biblioteca completa com mais de 1800 livros e pergaminhos. Daí o nome. 

Esta continua a ser a maior descoberta individual de escritos antigos até à data. Em particular, muitos dos textos foram identificados como sendo da autoria de Epicuro, um filósofo grego do final do século IV e início do século III. Os seus famosos tetrapharmakos, as quatro drogas, ou quatro diretrizes para viver uma vida feliz, foram aí descobertos. 

Muitos dos pergaminhos estavam danificados e há muitos mais que não foram decifrados. Mas esses pergaminhos e recursos provaram ser inestimáveis para a construção das porções maiores da obra de Epicuro que ainda restam. Antes desta descoberta, tudo o que tínhamos de Epicuro eram três resumos da sua obra através de Diógenes Laércio nas suas Vidas e Ditos de Filósofos Célebres. O nosso conhecimento de uma das maiores e mais vibrantes escolas de pensamento filosófico, tanto entre os gregos como entre os romanos, estaria muito comprometido se não fosse o nosso agricultor fortuito e a sua necessidade de um poço.

No entanto, muitos dos pergaminhos da Villa dos Papiros permanecem não só por ler, mas também por abrir. Isto deve-se ao facto de a erupção do Vesúvio ter deixado os pergaminhos carbonizados, tornando quase impossível abri-los. Apesar deste obstáculo, o Dr. Brent Seales foi pioneiro de uma nova tecnologia em 2015 que lhe permitiu, a ele e à sua equipa, ler um pergaminho sem o abrir. A técnica, que utiliza a tomografia de raios X e a visão por computador, é conhecida como desdobramento virtual e foi utilizada pela primeira vez num dos famosos Pergaminhos do Mar Morto, especificamente o Pergaminho En-Gedi, a mais antiga cópia conhecida do Livro do Levítico (provavelmente 210-390 d.C.). 

Os raios X permitem que os académicos criem uma cópia virtual do texto que pode ser lida como qualquer outro documento antigo por aqueles que possuem os conhecimentos linguísticos e paleográficos adequados. Utilizando a técnica do Dr. Seales, os académicos conseguiram carregar muitos dos textos online. Um grupo de doadores liderado por Nat Friedman e Daniel Gross ofereceu prémios em dinheiro a equipas de classicistas que conseguissem decifrar os escritos. A corrida para ler os pergaminhos virtualmente desembrulhados é conhecida como o «Desafio do Vesúvio».

Ao democratizar a tradução destes textos, o desenrolamento virtual criou uma espécie de Oeste Selvagem para os académicos, permitindo-lhes perseguir uma glória duradoura no terreno e uma não pequena quantia de dinheiro enquanto competem para traduzir os pergaminhos. O primeiro prémio em dinheiro foi reclamado no ano passado, e há muitos mais pergaminhos para traduzir e prémios para reclamar.

Há também que ter em conta o seguinte: a villa não está totalmente escavada. Isto significa que há grandes porções da villa que ainda não foram desenterradas e não sabemos o que mais poderá estar lá enterrado. Apesar de o local ter sido descoberto em 1700, as escavações encontraram novas secções da casa, primeiro na década de 1990 e depois novamente em 2007. 

Até à data, os arqueólogos estimam que ainda restam 2.800 metros quadrados por descobrir. Mesmo se considerarmos apenas o que já temos da biblioteca, há muitos pergaminhos ainda por desenrolar virtualmente e depois ler. Nos últimos dias após a redação deste artigo, foi anunciado que um dos pergaminhos revelava a localização do túmulo de Platão. Quem sabe o que mais poderá estar escondido entre os pergaminhos da Villa dos Papiros e, uma vez traduzido e anexado ao corpus mais vasto da literatura antiga, o que isso nos poderá ensinar sobre o mundo antigo. Uma cópia da Constituição dos Espartanos, de Aristóteles, pode até estar entre os pergaminhos, à espera de ser traduzida.

Ressuscitar os mortos é difícil; Jesus sabia-o. E a única razão pela qual sabemos que ele sabia disso é o facto de a Igreja considerar a preservação das Escrituras como um dever fundamental. Não há um único fragmento de texto do mundo antigo que tenha chegado até nós sem que um número incalculável de heróis tenha trabalhado silenciosamente para transmitir, de geração em geração, os textos que moldaram principalmente o mundo moderno. 

Estamos gratos por documentos como a Política, documentos cujo ciclo de vida podemos narrar desde a concepção até ao momento actual. Mesmo assim, esses textos podem entrar e sair de moda, e o seu conhecimento pode perder-se para gerações inteiras. Textos como a Oxyrhynchia Helénica são frutos da sorte, porque são completamente esquecidos no seu tempo, e depois perdidos uma segunda vez para a história, enterrados num qualquer monte de lixo egípcio antigo. Todo o trabalho necessário para tornar acessíveis textos como a Política tem de ser feito também para textos como a Oxyrhinchia Helénica.

Mas há ainda um outro passo monumental: os textos têm de ser descobertos. Em comparação com os dois primeiros grupos, há textos - como a Constituição dos Espartanos, de Aristóteles - que foram atestados por fontes antigas, mas que se perderam completamente nos anais do tempo, como a grande maioria dos textos gregos e latinos. 

Estas fontes, embora agora completamente indisponíveis para nós, podem ainda ser descobertas em qualquer altura, em qualquer cave. Num qualquer dia, a terra pode conceder a sua bênção, pondo a descoberto maravilhas do passado, como foi o caso de muitas das obras de Epicuro, que teriam caído nesta última categoria de obras perdidas, até descobrirmos a Villa dos Papiros. 

Mas mesmo uma descoberta tão fortuita não poderia ser aproveitada se não fossem desenvolvidas novas técnicas de leitura de pergaminhos cuja sobrevivência depende do facto de não serem abertos. Digo sempre aos meus alunos de grego e latim que há um ponto em que a ciência da tradução se torna pura arte. Da mesma forma, há um ponto em que a recuperação, a tradução, o restauro e, finalmente, o estudo de textos antigos se torna numa procura de tesouros. Nunca se sabe que tesouro pode estar escondido no próximo monte de lixo egípcio antigo.

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