August 05, 2024

Uma história de vida numa entrevista

 


Maria Aurora Dantier, comissária de Polícia


No Comando Metropolitano da Polícia de Segurança Pública (PSP) de Lisboa, a comissária Maria Aurora Dantier coordena as equipas de uma dezena de divisões que têm policiamento de proximidade.

Aurora ou Maria? “Isso depende. Sou Maria Aurora. Maria vem no meu cartão-de-visita. Habitualmente não me chamam Maria. Sou Aurora ou sou Dantier.” No seu local de trabalho ou nos eventos em que é convidada a participar como oradora, a comissária que coordena o Policiamento de Proximidade do Comando Metropolitano de Lisboa (Cometlis) da PSP destaca-se – pela postura e o passo seguro, os olhos grandes e o sorriso largo, a tez escura contrastando com o cabelo louro, apanhado num frisado fino e encrespado, sob a boina a condizer com a farda que lhe assenta sempre bem. Aurora Dantier completa 60 anos neste Verão e reforma-se, em princípio, em Fevereiro

Cedo foi chamada a assumir responsabilidades no policiamento de proximidade, área menos visível da actividade policial à qual dedicou grande parte da sua carreira, e que passa por contactar, proteger e encaminhar os mais vulneráveis ou excluídos e sem respostas sociais, e as vítimas de crimes. Aurora Dantier esteve envolvida na génese do Espaço Júlia, que ela própria dirigiu (o primeiro de atendimento especializado às vítimas de violência doméstica aberto em Lisboa), trabalhou de forma directa junto das comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ) e no âmbito do programa Escola Segura (que já existia quando chegou). Antes disso, fez de tudo aquilo que é o trabalho da polícia. Dá e continuará a dar formação nas áreas do policiamento mais próximo das pessoas, e em direitos humanos.
"Eu saio com muita satisfação e alguma tristeza", diz. “Nós temos adrenalina todos os dias. E de repente ficamos sem ela. Como é que fazemos essa passagem de 'somos polícia' num dia e 'não somos' no outro?”

Está a poucos meses de se reformar. Como vê isso de deixar de ser polícia?
​Como uma luz ao fundo do túnel. Significa que estou a terminar o meu mandato. Quero deixar tudo arrumado, dossiers fechados, e tudo programado para quem me vier suceder, encontrar tudo e poder continuar o trabalho que fiz. Este é o primeiro passo. O segundo passo é sair. Eu tenho uma família grande, pais, netos, filhos, irmãos, sobrinhos. Agora, tenho a oportunidade de os colocar em primeiro plano e dar-lhes tudo aquilo que eu, na altura certa, não consegui dar.


O que é importante passar às novas gerações?

Fazer o trabalho bem feito e saber como podemos tratar bem as pessoas, mesmo quando estamos perante alguém que fez alguma coisa mal, e temos de proceder a uma detenção. Quando é um suspeito de violência doméstica, de maus tratos a uma criança, ficamos com muita raiva dele, mas temos de saber que somos, acima de tudo, profissionais. Temos de saber separar muito bem as águas. Ele está detido, temos ali um possível criminoso, mas é, acima de tudo, uma pessoa.

Essa é a regra no policiamento de proximidade?
Nem sempre é fácil, mas é preciso transmitir isto às equipas do policiamento de proximidade. Quando interpelamos alguém ou a detemos, não sabemos aquilo por que passou no seu passado. Com as crianças delinquentes também. Nós encontramos muitas crianças de 12 ou 13 anos cujo percurso de vida já é, nessas idades, horrível. Temos de ter isso presente. Não sabemos se ele tomou o pequeno-almoço, o que aconteceu na casa dele. Sabemos que ele fez algo errado, que deve ser responsabilizado, mas temos de nos lembrar que ele é uma pessoa, e uma criança, acima de tudo.

Sempre esteve nas equipas de proximidade?

Sempre, desde 2007, quando passei a chefiar a área operacional da 1.ª Divisão [da Cometlis] e tinha a responsabilidade do policiamento de proximidade de quatro esquadras. Em 2019, vim para aqui e estou responsável por coordenar todo o policiamento de proximidade do comando metropolitano nas 11 divisões de competência genérica com este policiamento de proximidade.

Escolheu esse caminho por vocação ou foi fruto das circunstâncias?
Foi um pouco das duas. Quando entrei para o curso de oficiais em 2001, terminando em 2002, fui comandar a 15.ª esquadra, que era a antiga esquadra Caminhos-de-Ferro, em Santa Apolónia. Depois disso, passei a comandar a esquadra das Olaias, e aí tínhamos muita violência doméstica, muitas pessoas idosas. Foi o meu primeiro contacto com essas realidades, sobretudo a da violência doméstica. Mas 2007 foi o marco importante: fui assumir a chefia do policiamento de proximidade na 1.ª Divisão, e isso aconteceu quando na PSP também estava a começar este novo modelo da proximidade.

O que é mais importante para si neste trabalho?

Para mim, há em especial três grupos que me dizem muito: as crianças, as pessoas com deficiência e as vítimas de violência doméstica. E, entre as vítimas de violência doméstica, temos os idosos, que me dizem muito, porque ficam muitas vezes esquecidos. As crianças, as pessoas dão conta delas. As vítimas de violência doméstica, as pessoas dão conta delas. As pessoas com deficiência, as pessoas não se livram delas. Já os idosos, ficam esquecidos. O que custa muito é chegarmos ao Natal e sabermos que ficam lá despejados, nos hospitais. Ninguém os vai buscar.

Conheceu pessoas nessa situação?

Eu tenho na memória um caso, do qual nunca mais me esquecerei. Foi num Verão há muitos anos. É de um idoso que deixaram no jardim ali na frente do Cemitério do Alto de S. João. Estava bem vestido, bem arranjado, cheirava bem. Ele chegou de manhã, alguém o viu lá. Ao final do dia, ninguém vinha buscar o idoso, e ele continuava ali sentado no mesmo banco. Não se mexeu. Chamaram a polícia. E claro que a polícia o levou ao hospital.

Não descobriram a sua identidade?
Não. Quando se fazem as diligências, e não se localiza a família, passa a ser um caso social. O senhor não tinha documentos. Não tinha nada, nada, nada. Como é que alguém deixou ficar o seu familiar, que não tem orientação nenhuma, o dia inteiro num jardim? Não viu se o sol lhe bateu na cara, se bebeu água, se não bebeu água, se comeu, se não comeu. Não comeu nada. Depois vai para o hospital, fica lá e ninguém o vai buscar. Ninguém é chamado porque não se sabe quem ele é.

Há outras histórias de que não se esquece?
Com crianças, também tive casos muito horríveis que me custaram. Este talvez o que me custou mais. Duas crianças. Véspera de Natal. Estava eu na esquadra, de serviço, e trouxeram-me duas crianças. Uma de quatro, e outra de 11 anos. O que aconteceu? A mãe estava emigrada e deixou-as com uma ama. Antigamente, acontecia muito isso. Sucede que a ama ficou doente e deu entrada no hospital. Os familiares da ama não queriam ficar com as crianças. Deixaram-nas na esquadra. Queriam ir passar o Natal com a família e não queriam levar as crianças. Rejeitaram-nas. A criança de quatro, cinco anitos, nem estava a perceber o que estava a acontecer. Mas a menina de 11 anos percebia tudo, sabia que estava a ser rejeitada, e era a segunda vez para ela porque a mãe tinha-a deixado ficar aqui. As crianças ficaram naquela noite. No outro dia, dia 25, fiz as diligências com a Santa Casa [da Misericórdia] para acolher aquelas crianças.

Devem ser momentos de grande sofrimento para as crianças.
Não é só o sofrimento. É a insegurança. Eu tenho de ter a garantia de que a pessoa que está com ela a trata bem. Independentemente de ser mãe, pai, tia, avó. Se eu apanho um ambiente tóxico, se é uma situação de violência doméstica, por exemplo, e há perigo para a mãe e, consequentemente, para a criança, mas a mãe insiste em querer ficar naquela casa, eu retiro a criança. Não tenho dúvidas. Custa-me imenso, porque aquela mãe também é vítima de violência doméstica, mas é adulta. Pode escolher. A criança, não. Ela vai por opção da mãe.

Como conciliava essa vivência profissional tão exigente com a vida em família?
Eu vou dizer uma coisa: se fosse actualmente, tiravam-me os filhos [risos]. Quando me separei, a minha filha tinha seis anitos, e o meu menino tinha dez. Então, ele é que tomava conta da irmã. Era assim. Eu trabalhava por turnos. Havia o turno da noite. Havia o turno da manhã. E havia o turno da tarde. Quando eu entrava à meia-noite, deixava o jantar feito e a roupa pronta para o dia a seguir. Eles acordavam. Eu ligava para casa ou eles ligavam-me. Tínhamos sempre de falar antes de irem para a escola.

Na altura, fui obrigada a comprar um microondas para eles não utilizarem o fogão. Aqueciam o pequeno-almoço, comiam, iam. Ele ia levar a irmã. Eu ia buscá-la e, ao final do dia, estávamos os três em casa. Quando eu entrava às 8h, eu dormia com eles. Saía pelas seis e pouco da manhã. Mal eu chegasse à esquadra, telefonava: "A mamã já chegou no trabalho", e eles diziam: "Nós também já comemos e vamos para a escola." Quando eu entrava às 16h é que era mais complicado. Deixava o jantar preparado em casa. Ele ia buscar a irmã. Vinham os dois para casa. Ele dava-lhe o comer. Tinha o pijama pronto e deitava-a. Eu chegava por volta da 1h da manhã. Ele tinha jantado, mas não dormia enquanto eu não chegasse.

Sempre quis ser polícia?
Eu não quis ser polícia.

Então como aconteceu isso?
O marido de uma tia minha tinha sido polícia em Angola, e foi ela quem um dia me disse para eu concorrer. Um dia fui passar férias a casa dela, em Castelo Branco. Ela era cabeleireira e disse-me: "Olha lá, não queres concorrer para a polícia?" Eu tinha 19 anos, tinha acabado o 12.º ano. "Eu? Polícia?", respondi. "Vai já ao comando-geral preencher aquela folha de 25 linhas a dizer que queres ir para a polícia", disse-me ela. Ela sabia que estava a decorrer um concurso. Foi exactamente assim.

Como foi a sua vinda de Angola?
Nasci lá e vim para Portugal com 10 anos. Éramos oito irmãos e viemos para Sever do Vouga, terra do meu pai. A minha mãe dizia que, se nós ficássemos lá, não íamos ter futuro. Ela estava determinada a vir para a capital, para nos dar condições. E conseguiu. Investiu na compra de uma casa. Uma casa não, uma barraca. Na verdade, comprou as chaves, era como se fazia na altura.

E o seu pai?
O meu pai trabalhava na segurança. E a minha mãe fazia limpezas. A barraca não tinha nem água canalizada nem electricidade. Tínhamos de ter a banheira cheia de água, e encher a bilha para deitar na sanita, para tomar banho e para cozinhar, para tudo. Fizemos uma mangueira que ligámos ao chafariz. Nós e todos os vizinhos. No meio disto, a minha mãe dizia que a única coisa que nos podia salvar eram os estudos. Então, tínhamos de estudar. Sem herança, dizia ela, a única forma de ter segurança era estudar e arranjar um emprego no Estado.

Gostou logo de ser polícia?
Sim. Logo no início, estive no trânsito, gostei muito de trabalhar no trânsito. E sempre pensei em terminar a minha carreira no trânsito. Foi no trânsito que aprendi a lidar com públicos difíceis. Eu tive chefes que me ensinaram como lidar com essas pessoas, fiscalizar o condutor, dar-lhe a multa nas mãos, e ainda agradecer-lhes. Nem sempre era fácil. Ou quando, por exemplo, estive a regularizar trânsito como polícia sinaleira, diziam: "O que estás aí a fazer, vai para casa, vai coser as meias ao teu marido, vai fazer a sopa." Isto era nas Avenidas Novas, Avenida da Liberdade, Avenida Fontes Pereira de Melo, Avenida da República. Não havia tantos semáforos, por isso, no final do turno de autuarmos os carros mal-estacionados, tínhamos um cruzamento, onde regularizávamos o trânsito.

Mas, afinal, não terminou a carreira no trânsito nem voltou para lá.
Não, porque logo a seguir estive dez anos como chefe, a atender público na esquadra, a receber queixas. Aí aprendi a fazer um pouco de tudo. Desde os cheques carecas, furtos de carros, furtos no interior do veículo. A violência doméstica não era como é tratada agora. Era uma queixa como outra qualquer. No balcão, as pessoas estavam de pé. Felizmente que isso mudou. Quanto ao resto, era tudo feito com máquina de escrever e com os químicos. Se nos enganássemos a colocar o químico, tínhamos de começar tudo de novo [risos]. E o texto, fazíamos de carreirinha. Não havia como voltar atrás e apagar. Tinha de sair bem à primeira. Também não havia fotocopiadoras. Quando apareceram, tínhamos de ir à junta de freguesia para tirar as fotocópias. Era tudo tão diferente. A comunicação interna agora é por email, é imediato. Antigamente não, era através de circulares, que no fundo eram comunicações internas para sabermos das ocorrências nas nossas zonas. E chamavam: "Circular, circular", toda a gente estava ao telefone ao mesmo tempo com alguém do outro lado na sede a dizer, "circular, desapareceu fulano tal, furtaram carro assim assim…" para cada uma das esquadras. E nós tínhamos de apontar aquilo tudo.

Como foi ser mulher na polícia?
Não foi fácil. Eu, por exemplo, e por ser mulher, ia a ocorrências no carro de patrulha, e tinha de ouvir: "Mandam as mulheres agora? Já não há homens para vir aqui?" Eu já era chefe na altura e mesmo assim, para receber uma ordem, a pessoa dirigia-se ao motorista, e este respondia: "Tem de falar com aquela senhora, que ela é que manda, ela é que é a chefe." Eu tive esse problema nas Olaias, com a comunidade roma, porque entenderam que não recebiam ordens de uma mulher. E ainda por cima de uma mulher "preta". Nem pensar! Eu só lhes disse: "Quem manda aqui sou eu. E vocês não gostam? Tenho pena. Sou polícia, sou mulher e sou preta."

Isso incomodou-a?
Não. Eu nem lhes dava oportunidade de me sentir ofendida por isso. Havia pessoas racistas, mas eu nunca senti o racismo como se sente actualmente. Eu sabia que havia pessoas que tinham esse preconceito. Dizia-lhes: "Quando vocês não têm argumentos, usam a cor. Isso não é argumento. Vocês têm de estar comigo de igual para igual. Não usem a cor."


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