July 21, 2024

Centenas de estudos mostram uma epidemia de doença mental - as crianças passam horas isoladas a ver vídeos de 15 segundos e a ver pessoas degradantes a fazer coisas degradantes e nojentas, horas por dia, enquanto o cérebro se está a desenvolver.

 


Jonathan Haidt: “Vamos ter de retirar a maior parte da tecnologia das escolas”


Bárbara Wong

O psicólogo e professor norte-americano Jonathan Haidt fala pausadamente e de maneira objectiva sobre as conclusões e propostas que faz no livro A Geração Ansiosa: Como a Grande Reconfiguração da Infância Está a Provocar Uma Epidemia de Doença Mental. Nele, o autor explora centenas de estudos, não apenas da área da psicologia, mas também da sociologia, entre outras ciências sociais, para reforçar que a Geração Z, aquela que nasceu depois de 1995 e que vai até 2010, foi muitíssimo prejudicada por toda a evolução que os ecrãs, o acesso à Internet, às aplicações (como as de pornografia) e as redes sociais moldaram não só o cérebro, mas também o comportamento destes jovens.

Haidt — que no início da entrevista diz num português titubeante “Eu amo Portugal, os meus pais tiveram uma casa no Algarve”, recordando as férias passadas naquela região — insurge-se contra as grandes empresas que exploram a “vulnerabilidade humana” e defende que estas devem ser penalizadas pelo Estado. 

Se há leis contra tantos produtos que fazem mal à saúde, porque não legislar sobre os que são fruto desta evolução e que, está provado, criam dependência, pergunta. O investigador realça que desde o início da década de 2010 a saúde mental dos jovens caiu a pique, com taxas de depressão, ansiedade, automutilação e suicídio a aumentar acentuadamente. Mostra uma geração que está isolada, que não comunica, que não se desenvolve e que não terá filhos, alerta.

Tudo isto, porque está embrenhada na Internet —​ na década de 2000 dá-se a disseminação da banda larga; em 2007 chega o iPhone ao mercado e a “nova era das redes sociais hipervirais”, escreve no livro; em 2009 surge a última tendência com os botões de “gosto” e de “partilha” que “transformam as dinâmicas sociais online”. 

Por fim, a última tendência é a da publicação de imagens próprias que acaba por prejudicar mais as raparigas do que os rapazes. É esta a “grande reconfiguração” de que o académico fala. 

É preciso sair da infância baseada no telemóvel e regressar ao tempo em que se brincava na rua. Os pais não podem ter medo de ser acusados de negligentes se deixarem os seus filhos serem mais autónomos. É preciso brincar com os outros, correr riscos controlados, em vez de termos uma sociedade de crianças dependentes, com problemas de sono, de falta de atenção, auto-centradas e preocupadas com o perfeccionismo.

O que há de errado com uma infância passada em frente ao smartphone?
A infância é um produto da evolução. Todos os animais têm de passar por ela e, no caso dos seres humanos, a transição envolve o desenvolvimento físico, como correr e dominar o seu corpo; o desenvolvimento social, aprendendo as subtilezas da interacção face a face; e o desenvolvimento cultural, especialmente na adolescência. Vamos aprender a nossa cultura com as pessoas mais velhas, mas uma infância passada em frente a um ecrã elimina talvez 80% ou 90% de tudo isso e substitui-o por coisas estranhas que, na melhor das hipóteses, são inúteis e, em parte, prejudiciais.

A coisa mais popular que as crianças fazem hoje em dia é ver vídeos de 15 segundos. Vêem muito. E muitos vêem várias horas por dia. E isto não os distrai apenas dos acontecimentos da vida real; isto muda o seu cérebro, que passa a precisar de hiperestimulação, e interfere com a alimentação, assim como pode trazer mais sexo e violência — vêem pessoas degradantes a fazer coisas degradantes e nojentas, horas por dia, enquanto o cérebro se está a desenvolver.

E tudo isso leva à ansiedade e depressão? Porque há outras causas que podem estar por detrás desses problemas de saúde mental, como as alterações climáticas, a crise da habitação (que os jovens portugueses sentem) ou a iminência de uma guerra civil (com que os jovens americanos vivem)?
Não, nem por isso, porque nenhuma dessas razões pode explicar o aumento de 100% [de problemas de saúde mental] em apenas cinco a dez anos. Isso nunca aconteceu antes. Claro que sim, que há sempre quem esteja ansioso e deprimido, mas, neste caso, tudo começa por volta de 2012. E nenhuma das coisas que mencionou pode explicar porque é que aconteceu por volta de 2012 e em tantos países ao mesmo tempo. Além disso, porque é que isto afecta sobretudo as raparigas? O que lhes interessa, entre os dez e os 14 anos, a agitação política ou uma crise de habitação?


Por que coisas são afectadas as crianças?
São afectados, na sua esmagadora maioria, pelo facto de serem e terem ou não amigos. Isso é o mais importante e as crianças começaram abdicar da maior parte do seu tempo com amigos — na América dispomos de bons dados e o tempo passado com os amigos diminuiu mais de 60% desde 2010.

Eles comunicam através das redes.
Sim, mas pôr likes, tocar e deslizar num ecrã não é o mesmo que rir com um amigo. Agora pode dizer-se bem, mas eles estão a comunicar através das redes sociais. Uma das coisas mais tristes para mim é pensar em todas as vezes que me ri com os meus amigos quando estava a crescer; refiro-me a dezenas, centenas de milhares de vezes. Ríamo-nos e brincávamos muito. Agora, imagine tirar 90% disso. É muito triste.

Falou de as raparigas serem mais vulneráveis aos danos das redes sociais, mas os rapazes não estão a ser mais penalizados do que elas?
A curto prazo, não. A longo prazo, sim. Em quase todos os países do Ocidente, as raparigas têm taxas mais elevadas de ansiedade e depressão. Sempre foi assim. As redes sociais surgem e tornam a vida das raparigas muito mais difícil. Os rapazes são mais agressivos fisicamente e as redes sociais facilitam a agressão nas relações. As raparigas têm taxas muito elevadas de ansiedade e depressão nos Estados Unidos, um quarto das raparigas de 14 anos fez um plano de suicídio, pensou na forma como se iria matar. Este valor mais do que duplicou desde 2010. Por outro lado, os rapazes parecem estar a divertir-se. Passam horas por dia com jogos de vídeo e pornografia “incrível”.

Agora vamos avançar e olhar para estes jovens aos 25 anos. Nos EUA, a maioria das raparigas concluiu o ensino secundário e frequentou a universidade. Os rapazes não. Têm níveis de sucesso muito mais baixos. Preocupam-se menos com a escola (esta está orientada para as raparigas, não para os rapazes). A economia, o trabalho no sector dos serviços mudou e favorece as mulheres, em vez dos homens [que fazem trabalhos mais manuais]. Assim, o que descobrimos é que as raparigas são mais instruídas, mais propensas a ter emprego, mais bem-sucedidas na vida e os rapazes são mais propensos a viver em casa, a jogar jogos de vídeo e a ver pornografia.

É por isso que existem grupos como os Incels?
Sim, isso faz parte do problema.

Isso não é também um problema para as raparigas, uma vez que se pode assistir ao crescimento da violência baseada no género?
Bem, acho que os níveis de violência são bastante baixos; já os níveis de hostilidade expressos na Internet são muito elevados. A minha melhor resposta à sua pergunta é uma citação de Richard Reeves, que escreveu um livro chamado Of Boys and Men, que diz que um mundo de homens em dificuldades não é susceptível de ser um mundo de mulheres que tenham sucesso. Por isso assistimos às taxas de casamento e de natalidade a diminuir, mas estão prestes a diminuir muito, muito acentuadamente. Penso que vamos ver poucos membros da Geração Z a casarem-se e a terem filhos, em comparação com qualquer geração anterior, pelo menos em grande parte do Ocidente, tal como vemos acontecer na Coreia do Sul. Acho que vamos ter poucos bebés na próxima geração.

Porque os rapazes não sabem como comunicar com as raparigas?
Isso deve-se, em parte, ao facto de os rapazes e as raparigas estarem tão separados e, no caso dos rapazes, o seu desenvolvimento sexual é feito através da visualização de pornografia e de conversas entre eles sobre como as raparigas são terríveis. Esses rapazes não vão ser capazes de atrair uma jovem mulher. Pode ser muito difícil para eles cortejar as mulheres, namoriscar com elas, apaixonar-se e casar com elas.


Mas ainda há salvação para a Geração Z ou precisamos de esperar pela próxima?
Bem, os indivíduos podem ser salvos. Sim. Os jovens que se comprometem a mudar radicalmente os seus hábitos podem ter um sucesso espantoso. Na Universidade de Nova Iorque tenho uma cadeira chamada Flourishing, de psicologia positiva, sobretudo para alunos de 19 anos. E assim que estes recuperam o controlo da sua atenção e se comprometem a ter uma boa rotina matinal e nocturna, obtemos resultados milagrosos. O que se passa é que, para a maioria, toda a sua atenção vai para o telemóvel e isso começa mal abrem os olhos, vão à casa de banho e o telemóvel está à frente da cara. E depois, à noite, a última coisa que fazem antes de fechar os olhos é ter o telemóvel à frente da cara. Para as pessoas que fazem isso, não há esperança, porque não exercitam a capacidade de ter atenção, não controlam a sua mente. Mas qualquer família, qualquer indivíduo que se comprometa a mudar pode fazê-lo.

Como?
O primeiro passo é recuperar o controlo do exercício da sua própria atenção. Não se pode fazer nada, se se estiver a ver três ou quatro horas por dia de TikTok. Por isso, é preciso deixar as redes sociais. É preciso ter a certeza de que se está a cuidar do básico: está a ter uma boa noite de sono? Está a fazer exercício suficiente? Está a apanhar sol suficiente de manhã? Está a comer de forma saudável? Portanto, uma vida gasta com isto [redes sociais] interfere com quase todas as facetas da vida.

E depois de controlar a atenção?
O passo seguinte é melhorar os hábitos básicos relacionados com a saúde. E a terceira coisa que digo aos jovens é que se tornem famintos de experiência, que vão à procura de coisas novas, no mundo real. Eles têm muito pouca experiência, porque a maior parte do dia é passado na Internet.

Geração Z está disponível para mudar?
A Geração Z não está em negação, não está na defensiva, não se opõe, não diz que não nos compreende. Eles dizem: “Sim, temos estes problemas, mas estamos encurralados.” Mas não podemos desistir e, se um grupo de amigos o fizer em conjunto, torna-se muito mais fácil. Essa é a chave da solução: quando qualquer grupo tomar medidas colectivas, torna-se muito mais fácil.

Mas, por vezes, o trabalho depende das redes sociais.
Para algumas pessoas isso é verdade. E isso é lamentável. Para essas pessoas, penso que a sua saúde mental vai piorar.

Não prevê que a Geração Z tenha filhos, mas, se tiver, como serão?
Os pais que são a Geração Z têm agora 28 anos. São pais que não brincaram quando eram crianças, não sabem o que é sair à rua e brincar com outras crianças. São pais que foram sobreprotegidas e subdesenvolvidos. Por isso, acho que a paternidade vai ser muito, muito difícil.

Mas podem aprender...
Sim, é possível aprender, mas em média acho que vão ter muitas dificuldades.

De alguma forma, defende um regresso ao passado, quando sugere que se brinque na rua, que se vá acampar, que se tenha uma relação com a espiritualidade ou com a natureza?
A vida e a tecnologia moderna reduziram grandemente a nossa confiança nos vizinhos e no bairro. Estamos mais isolados do que alguma vez estivemos. Por isso, é-nos mais difícil confiar em estranhos, apesar de, pelo menos na América, a criminalidade ter diminuído imenso. Hoje, a vida é mais segura do que era quando eu estava a crescer. Eu cresci na década de 1970, havia muitos crimes e conduzia-se sob o efeito do álcool. E agora a vida é muito, muito segura fisicamente, mas já não confiamos nas pessoas, por isso, não podemos simplesmente dizer aos nossos filhos: “Saiam daqui e não voltem até ao jantar.”

Temos de ser mais assertivos enquanto pais. Temos de organizar grupos para os nossos filhos. Se várias famílias organizarem um grupo de quatro ou cinco amigos, por exemplo, se os pais combinarem que todas as sextas-feiras estes miúdos se juntam sem supervisão. Eles encontram-se, passam a tarde juntos, num ambiente seguro e divertido. Não lhes vai acontecer nada ou pode-lhes acontecer muita coisa.


De que os pais têm medo...
O primeiro desafio é simplesmente mudar a infância. Não podemos ter crianças a crescer à frente de um ecrã. Têm de estar no mundo real. E isso já está a acontecer. Na verdade, isto parece uma entrevista muito deprimente, mas estou muito optimista, porque a mudança já está a acontecer. O meu livro foi lançado em Março e as coisas já estão muito diferentes. Muitos distritos escolares, todo o estado da Califórnia, da Virgínia, disseram que vão passar a não ter telefones nas escolas.

Concorda com a decisão do cirurgião-geral [cargo equiparável ao de director-geral da Saúde] de as redes sociais terem alertas de perigo para os adolescentes?
Absolutamente. Nos EUA, os produtos de consumo que possam prejudicar as crianças são proibidos até que o problema seja resolvido. Se houvesse um brinquedo que matasse 30 ou 40 crianças por ano, proibi-lo-íamos imediatamente, ou, pelo menos, colocar-lhe-íamos um aviso. Nos EUA, cerca de oito a 12 crianças morrem engasgadas com brinquedos todos os anos e esses brinquedos têm uma etiqueta de aviso que alerta para o perigo de asfixia. Contudo, muitas crianças morreram de asfixia, porque no TikTok há um jogo em que as crianças são desafiadas a estrangular-se até desmaiarem e a gravar um vídeo. O TikTok prejudica as crianças de muitas outras formas, levando à depressão e à ansiedade. E há muitos outros desafios perigosos, a que juntamos o cyberbullying e a chantagem sexual.

O que vemos é que há provavelmente centenas de suicídios adicionais e mortes acidentais todos os anos que são directamente causadas pelo facto de uma criança estar nas redes sociais. Por isso, o cirurgião-geral alerta que este é um produto de consumo perigoso. É um produto que sabemos que está a prejudicar gravemente centenas e talvez milhares de crianças todos os anos.

Quando as empresas vivem do grau de dependência daqueles que utilizam os seus produtos, podemos culpar o capitalismo?
Uma das razões pelas quais temos governos numa democracia é para estabelecer normas e padrões mínimos e para corrigir os riscos conhecidos. A economia de mercado livre é, de longe, o melhor tipo de economia para uma grande sociedade moderna. Sim, temos um sector da economia que ganha dinheiro não por fornecer valor aos seus clientes, mas por agarrar em crianças e as entregar aos anunciantes. Chama-se “uma falha de mercado” à forma como as coisas estão organizadas e, numa economia que funcione correctamente, seriam punidas por prejudicarem o bem-estar e desenvolvimento das crianças. Mas até agora isso não aconteceu. Estas são algumas das empresas mais ricas e poderosas do mundo e é isto que muitos de nós estamos a tentar mudar. Pensamos que estas empresas devem ser responsabilizadas pelo que estão a fazer.

Actualmente, na Internet, qualquer pessoa que minta sobre a sua idade pode ir a sites de pornografia, pode ver vídeos de decapitações. A resposta está na acção colectiva que, penso, está já a acontecer. Quando uma democracia se zanga, pressiona os seus legisladores a aprovar leis.

Entrevistámos recentemente Michel Desmurget...
Eu adoro o seu livro.

Para este investigador francês a solução está na leitura, para si está no sair à rua e brincar. São duas soluções semelhantes?
Não, são diferentes e, se tivesse de escolher uma, seria sair e brincar, porque a evolução na infância faz-se pela brincadeira e não pela leitura. O mais importante é que as crianças se tornem independentes, brinquem no exterior com outras crianças, sem supervisão, mexendo o corpo. Mas, falando de educação, penso que Desmurget tem toda a razão. Todas estas mudanças estão a prejudicar gravemente a capacidade de leitura das crianças. Tenho dificuldade, porque leio no ecrã, porque estou sempre a clicar em alguma coisa. Na escola estão sempre a ver ecrãs e, não o disse no livro, porque ainda não sabia o suficiente, estou a estudar o assunto, mas acho que vamos ter de retirar a maior parte da tecnologia das escolas – porque os efeitos de distracção são muito maiores do que os efeitos de aprendizagem.

Sim, termina o livro a dizer que ainda há muito a dizer sobre o assunto. Quer partilhar algo que não tenha escrito?
Vejamos... Não escrevi o suficiente sobre os primeiros seis anos de vida, porque não sei tanto sobre essa fase. Concentrei-me na puberdade. Concentrei-me nos adolescentes na puberdade. Não falei o suficiente sobre os adultos, ainda não reuni a investigação sobre o que a vida baseada no telemóvel está a fazer aos adultos. Mais? Não falei [da adicção ao] jogo, que é extremamente prejudicial, sobretudo para os rapazes. Quando eu era jovem, os jogos de azar eram muito regulamentados e agora são acessíveis a toda a gente. E há muito mais a dizer sobre a inteligência artificial (IA), que vai tornar tudo isto muito, muito pior. Os rapazes já podem criar uma namorada com IA, muitos deles estão a apaixonar-se por elas, e isso também interfere no seu desenvolvimento social e sexual.


E isto significa que é menos provável que venham a casar-se. Que deseja à próxima geração?
A minha esperança é que lhes seja devolvida a infância baseada na brincadeira. Temos de reverter a infância baseada no telemóvel. O que temos feito às crianças desde 2012 é a maior destruição do potencial humano na história da humanidade. Por isso, temos de acabar com isso o mais rapidamente possível. Até 2025. Não há escolha, não há dúvida.

Temos de ter em mente que esta é uma armadilha da qual só se pode escapar colectivamente. Por isso, temos de contactar outros pais, contactar as nossas escolas e os governos. Estes podem responsabilizar as empresas. Actualmente, estas podem fazer tudo o que quiserem às crianças e nada lhes acontece. Precisamos que os governos digam às empresas que se tiverem utilizadores menores de idade vão ser processadas, vão ter de pagar, eventualmente alguém irá para a cadeia por causa disso. É a coisa mais importante que o governo pode fazer por nós.

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