June 19, 2024

Quanto vale a vida de uma mulher?

 


Mais uma mulher assassinada. E uma encomenda ao Governo

A benevolência que se atribui aos homens em crimes contra mulheres, até aos criminosos condenados, é arrepiante.

Maria João Marques


Estamos (muito infelizmente) acostumados a ler sentenças de primeira instância ou acórdãos justificando penas suspensas a violadores e abusadores sexuais com o facto de estarem bem inseridos na sociedade e não terem antecedentes criminais. Desde que tenham emprego e uma vida estável, é violar à vontade, que os tribunais portugueses não têm nenhum pejo em proteger a vida organizada de criminosos sexuais quando estes, pobres homens, têm o azar de violar uma mulher demasiado espalhafatosa que não sabe que a sua obrigação é ficar calada e tratar do trauma sem aborrecer terceiros. E só porque um homem se inicia na vida de crime com uma violação, não quer dizer que não se lhe dê benevolência de primeiro crime, pois não? Não se vai estragar a vida a um homem (pessoa que conta) lá por estragar a vida a uma mulher (pessoa que não conta).

Os homens violentos são protegidos pelo sistema. E isso é um perigo para as mulheres. Desde logo porque a inexistência de punição funciona como incentivo à prática dos crimes. Mais: se os criminosos não são punidos quando praticam crimes graves sobre mulheres, vão repeti-los. Quando, em 2009, um polícia de Detroit descobriu um armazém com 11 mil kits de violação não testados e finalmente se testaram, descobriu-se inúmeros casos de mulheres que tinham sido vítimas de violadores em série – que a polícia nunca se tinha dado ao trabalho de investigar e que, portanto, continuaram sossegadamente a violar. É isto que acontece sempre que não se pune um violador ou um agressor doméstico: diz-se-lhe "pronto, vá procurar descansadamente a sua próxima vítima".

Os crimes de violência doméstica e sexual, quando, vá lá, são punidos, normalmente recebem ralhete em forma de pena suspensa. Em 2023, a CNN reportava que 65% dos condenados por crimes sexuais praticados contra crianças eram premiados com penas suspensas. Já em 2018, conforme escreveu o PÚBLICO, era igual a percentagem. Nesse ano, o Expresso noticiava que em seis anos 176 violadores condenados continuaram em liberdade (30% do total). Dos condenados por violência doméstica, as estatísticas conseguem ser ainda mais de arregalar os olhos: só cerca de 10% dos condenados cumprem penas de prisão efetiva.

Sucede que, afinal, nem a existência de antecedentes criminais são significativos na hora de maçar a vida de um homem violento.

Há semanas, uma mulher foi atropelada mortalmente por um ex-namorado. O assassino era repetente: havia sido condenado em 2010 por matar a namorada com facadas. Como a assassinada era uma mulher, coisa pouca, saiu da prisão ao fim de dez anos. Logo depois teve nova denúncia de violência doméstica. Abriu-se inquérito, que não andou por razões misteriosas, alegando-se a covid. Provavelmente: polícias e procuradores quiseram lá saber, mesmo tratando-se de um criminoso condenado. É certo que os serviços públicos andam todos a ritmos indigentes desde a covid, mas seria de esperar que perigos para a vida e o corpo das mulheres não fossem encarados com o mesmo marasmo.

A mulher assassinada – com um carro passando três vezes por cima dela – tinha apresentado queixa. A AIMA também. Inacreditavelmente – tratando-se de um denunciado já condenado por matar uma mulher e com outra denúncia de violência doméstica já depois de sair da prisão (i.e., via-se a olho nu que a reabilitação falhara) –, foi considerado um caso de baixo risco. Isto tem de ser negligência grosseira.

A benevolência que se atribui aos homens em crimes contra mulheres, até aos criminosos condenados, é arrepiante. Se na sociedade nos resta fazer pedagogia, já temos de nos perguntar em que raio os investigadores criminais se baseiam para aferir graus de risco. Se um assassino condenado e já com outra denúncia em cima não é um gritante risco para as mulheres que ameaça, ninguém é uma ameaça. A aferição do risco é feita consoante os palpites de cada dia dos agentes e procuradores? Não há guias de procedimento e automatismos determinando que homens com condenações ou outras denúncias (tenham seguido para acusação ou não) sejam encarados como riscos agravados? Por que carga de água se continua a proteger tanto agressores de mulheres, tratando-os como cidadãos exemplares?

Os momentos de apresentação de queixa de violência doméstica são particularmente arriscados para as vítimas. Porque continua a existir este desprezo pela segurança e pela vida das mulheres, não lhes dando proteção quando estão em grande risco? Como continuam a não existir mecanismos imediatos que garantam que o denunciado não se aproxima da vítima? (Pulseira eletrónica e botão de pânico – foi entregue à mulher no dia em que foi morta.) A descredibilização das queixas das mulheres é um dado adquirido; neste caso, foi agravado por ser uma venezuelana a apresentar a denúncia?

Na violência contra mulheres tudo continua errado. As polícias desvalorizam as queixas e o risco. Os procuradores são lentos a atuar. Os homens criminosos são protegidos e tratados com uma benevolência que demonstra o desvalor que se dá às mulheres suas vítimas. A covid é usada como desculpa para não se investigar. Os juízes usam de todas as manigâncias para desconsiderar e descredibilizar as vítimas e absolver ou libertar os agressores. E os legisladores mantêm penas ridiculamente baixas para crimes sexuais e de violência doméstica, bem como a iníqua pena de prisão suspensa – só deveria ser aplicada a crimes não violentos, mesmo se penas curtas.

Não gosto e não quero partidarizar a luta contra a violência contra mulheres. Mas este foi mais um tema em que os governos do PS escolheram fazer o mínimo: além da criação da equipa de análise retrospetiva depois de as mulheres serem assassinadas, quase nada.

Não sei das ideias da atual ministra da Justiça sobre o tema da violência sexual e doméstica. Nem sei se lhe dá prioridade. Sei que há no grupo parlamentar do PSD quem se ocupe destas matérias (e o tenha feito noutras legislaturas) e tenha ideias mais duras, digamos assim, sobre a resposta judicial. (Também há no PS, porém, não foram consideradas nos últimos anos. Preferiram-se as vozes que gritavam "populismo" de cada vez que se mencionavam as curtas sentenças destes crimes.) Uma coisa é certa: eu – e, acredito, muitas mulheres – vou cobrar ao PSD mudar este estado de coisas em que as mulheres são violentadas e assassinadas (quase) a eito.

2 comments:

  1. Percebo que certos crimes possam ser encarados de forma mais benevolente, mas, infelizmente, a falta de justiça é generalizada e atinge todos. Recentemente, uma mulher matou outra à facada pelas costas durante uma rixa por causa de amantes. Ao fim.de sete anos, foi libertada.
    Neste campo, estou do lado do CHEGA: é necessário aumentar as penas e diminuir o tempo mínimo de cumprimento das mesmas, seja com quem for.
    Tenho uma ex-aluna que casou com um ex-alunos que é polícia. Ele teve inúmeras amantes durante o casamento. Ela cansou-se e divorciaram-se a duras penas. Desde então, persegue-a por todos os lados. Ninguém faz nada.
    O mesmo acontece connosco na escola. É um mal geral e ninguém põe cobro a isto.

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    1. Perseguir, assediar e controlar pessoas é crime.

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