June 22, 2024

"Chorar os mortos só depois da vitória" - no centro de reabilitação para soldados da guerra da Ucrânia, em Portugal

 


castelo de Ourém


Vidas estilhaçadas. Estão em Ourém, no antigo Seminário Dominicano da Aldeia Nova. Uma vila medieval soalheira e de paz.

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Portugal tem agora, no concelho de Ourém, o único centro de reabilitação para soldados da guerra da Ucrânia na Europa. Quem o diz é a Associação Ukrainian Refugees UAPT que, face ao prolongamento do conflito, tomou a iniciativa de alargar a cooperação a outras áreas necessitadas, após dois anos dedicados ao acolhimento de refugiados. O país em guerra mantém condições e hospitais para tratar, operar e estabilizar feridos do conflito, mas não tem respostas para a sua reabilitação.

Com o apoio financeiro de empresas, enquanto mecenas e patrocinadores, esta associação da sociedade civil, que conta com portugueses mas junta sobretudo ucranianos, avançou com o projecto. A renovação do antigo Seminário Dominicano da Aldeia Nova foi o primeiro passo para receber o primeiro grupo de 15 feridos, que chegaram a Portugal há uma semana. Nesse grupo, estão Suleimanov Marat, Igor, Sergiy Orlov e Vladislav.

Chorar os mortos "só depois da vitória"


Suleimanov Marat mantém a expressão imperturbável de alguém que já passou por tudo e não guardou nada. “Não estou a matar, estou a destruir o agressor, a defender os meus e o meu país.”
Depois de uma pausa, retoma o relato despojado de emoção: “Há uma coisa que me marcou mais do que todas as outras: ver os cães a comerem os cadáveres de homens estendidos no chão, a devorar o que restava dos seus corpos.”

Não foi só ter passado a odiar cães, cuja visão só agora começa a suportar, passados mais de dois anos. A imagem dos devoradores de homens como ele, na cidade de Popasna, província de Lugansk, aperfeiçoou a técnica de desligar sentidos que, se apurados, levariam a uma derrota pessoal. Contra isso também luta o homem alto e moreno de olhos castanhos rasgados.

“Ele amava os cães”, descreve Olga, que trabalha para a Associação Ukrainian Refugees UAPT, criada em Portugal, país onde vive há 13 anos. De forma paciente e emotiva, faz por apanhar a cadência de cada história – dentro da história – e o seu subtexto.

Ex-jornalista de uma “gazeta” – o nome dado a um jornal em ucraniano – e já então militar, Marat foi chamado, com apenas 20 anos, como soldado da ex-União Soviética para a guerra no Afeganistão em 1986, a primeira de quatro por onde já passou

Nasceu há 58 anos no Uzbequistão, um dos cinco estados que faziam parte da ex-URSS, juntamente com o Cazaquistão, o Quirguistão, o Turquemenistão e o Tajiquistão. Foi neste último que, em 1994, entrou na guerra civil que opôs o Governo, apoiado pela Rússia, o Uzbequistão, e outros estados ao movimento da oposição apoiada pelos taliban e pelo Afeganistão.

Pelo país da mulher que desposou há 35 anos, voltou a combater, agora como soldado da Ucrânia, no Donbass em 2014, já depois de ter entrado na reserva por ferimentos.

"Nesta guerra a sério, diferente de todas as outras em que estive, podemos ser atacados de todos os lados, por todo o tipo de armamento que antes não existia. Temos de saber defender-nos de todo o tipo de material bélico ao mesmo tempo", diz.

Não são só os bombardeamentos ou os tanques, são os drones e os mísseis de longuíssimo alcance, ou as bombas de fragmentação. Foi uma dessas, que projecta partículas de ferro a grandes distâncias e de modo imprevisível, que ele e o seu grupo estavam a retirar de uma missão.

Com a força da explosão, Marat foi projectado e rodou várias vezes sobre si mesmo, com as partículas do ferro a entrarem-lhe na coluna, nas pernas, na cabeça. A intensidade das dores de cabeça e desmaios ocasionais são os principais efeitos que perduram. Há o barulho que lhe atordoa o pensamento e os zumbidos nos ouvidos que o irão limitar para sempre. Não pode conduzir veículos.

Nas linhas militares onde estava Marat antes de ser retirado por estar ferido, são lançados mísseis de longo alcance para a destruição do armamento do inimigo, neutralizando-o nessa aproximação aos soldados da linha mais adiantada do campo de batalha. Estes, quando não estão a combater, abrigam-se nos bunkers feitos de madeira e encaixados nas trincheiras. “Estão cerca de 20 homens, que trocam posições. Ao fim de três dias, já há feridos, já há mortos”, explica o veterano.

Marat suspende o relato quando Olga aparenta, também ela, suspender o que antes fazia, desligando-se pela primeira vez desde o início da conversa. Está hirta, também ela sem expressão, com o azul-safira dos olhos afogado em lágrimas. “Foi da chuva da noite passada?”, brinca Marat, protector em todas as frentes.

E ele próprio, que angústias tem? “Depois da nossa vitória, vamos poder chorar por todos os que perderam a vida, e suas famílias. Perdi muitos amigos, mas ainda guardo o seu nome e o seu número no meu telefone. Vou chorá-los mais tarde, quando celebrarmos a vitória”, diz Marat.

Pai de dois filhos, tem o seu único rapaz de 24 anos numa das frentes mais mortíferas da guerra, na província de Donetsk. Dele tem notícias apenas quando, por alguns dias, o jovem sai do terreno. “De outra forma não podia ser”, diz Marat.


Ourém

O ex-prisioneiro que procura uma cura no silêncio 

O rosto sem expressão de Igor parece indicar que nunca mais irá sorrir, desde que foi um dos prisioneiros de guerra, capturados no primeiro dia da invasão, em 24 de Fevereiro de 2022, na ilha ucraniana da Serpente (Zmiinyi Ostriv), no mar Negro.

“Tudo em relação à vida mudou. Comecei a valorizar pequenas coisas. Como a comida, uma simples pasta de dentes, a liberdade. Pode não haver nada, mas não podemos viver sem liberdade.” É sobretudo psíquica a sua dor. Se voltará a sorrir? “Vou sorrir quando me lembrar de Portugal. Aqui as pessoas são tranquilas e estão sempre alegres. O mais importante é não haver sirenes, não haver guerra.” Igor

Não sabe como será para além disso. Diz: “Talvez só recupere a alegria de viver quando tiver a certeza de que a Ucrânia venceu a guerra. Até lá, não posso estar tranquilo.”

“Se não vamos todos, a Ucrânia deixa de existir”

Ver em Sergiy Orlov a figura de um empresário, como ele se apresenta, não surpreende: pela determinação dos movimentos, a confiança do discurso ou até a precisão do simples gesto de fumar, cigarro após cigarro, como se nada mais houvesse para o destroçar por dentro.

É a segunda passagem deste capitão de 45 anos pela guerra, depois do Donbass, a partir de 2014 e nos quatro anos que se lhe seguiram.

O seu maior medo era voltar sem pernas e sem braços. Conhece soldados a quem isso aconteceu. “Preferia ficar lá morto”, como os que nem voltam para serem sepultados.

A sua prioridade é garantir a segurança da família, enquanto esposo, pai, filho, manter o cordão – que quebra o país em dois – o mais longe possível deles. E garantir a integridade do país.

Olha de frente o espaço vazio da sala. Deixa cair pensamentos de quem abre, sem aviso, a gaveta dos terrores que só ele conhece e transporta: “A Rússia não vai deixar as pessoas vivas.” E reconhece: “Todos nós viemos da guerra com problemas psicológicos. Todas as pessoas que vieram para esta reabilitação em Portugal têm problemas mentais.”

Ao início são os comprimidos para aliviar as dores de cabeça, as tonturas e os zumbidos nos ouvidos, e depois já são os calmantes ou os antidepressivos, diz. Ninguém quer ficar dependente de medicamentos e Sergiy Orlov aconselha-se a si próprio e aos outros a lerem livros alegres, não verem notícias nem filmes de guerra.

Falar dela, como nesta conversa, desperta fantasmas e pode ser mau? “Temos de falar do que está a acontecer para as pessoas perceberem. Obrigado a Portugal por nos acolher e nos ajudar na guerra. Um país tão pequeno com um coração tão grande, um país tão longe da guerra, mas tão próximo para ajudar.”

A guerra fê-lo fechar-se no mundo só seu, no qual só há espaço para quem estiver disposto a salvar a Ucrânia. “Não quero saber de quem não queira saber desta guerra.” As famílias sabem do que se pode ou não falar, quando os soldados voltam a casa uns dias por ano. “Não queremos trazer para o lar essa energia da guerra. Aos olhos das nossas famílias, não podemos ser fracos. Eles iriam preocupar-se.”

Acumulam-se os sinais: lesões irreversíveis na coluna de quem passou meses, ou mesmo anos, com equipamento e armamento às costas; dores de cabeça e tremores, de quem quase morreu, viu morrer ou matou; noites em branco, pânico, sobressalto e vazio.

“Na linha da frente, administrávamo-nos, uns aos outros, injecções de Biofenac [anti-inflamatório], para nos conseguirmos levantar do chão e aguentarmos ficar na linha da frente”, conta o capitão. Os médicos estavam, sim, mas quando era para retirar mortos e feridos.

“Fiquei ferido, estive hospitalizado, mas não há tempo para isso. Temos pouca gente a combater para o que é necessário. Não podemos ficar no hospital a receber tratamentos completos que duram meses. É preciso tempo também para receber apoio psicológico, para receber esse descanso mental, essa calma”, diz, aludindo ao que encontrou no centro de reabilitação criado onde antes era o Seminário Dominicano de Aldeia Nova, em Ourém.

O ferido que salvava feridos da linha da frente


Com escritório em Kiev, Vladislav não pensa voltar à advocacia que exerceu até à véspera da invasão russa, em Fevereiro de 2022. Nesse dia, levou a mulher e os filhos para um sítio mais seguro, longe de Kiev. Os filhos queixam-se de nunca verem o pai; a mãe deles e mulher do soldado diz-lhe que não tem o direito de o parar.


Com formação militar e de paramédico, a sua missão é recolher os feridos da linha da frente ou aqueles que as suas equipas não chegam a tempo de salvar. A sua urgência é trazer todos de volta, alguns nos braços, antes de os colocar delicadamente no transporte médico.

“Transportei civis e militares, feridos muito graves, ou menos graves”, diz com modéstia, sem nunca dizer que salva vidas. Num desses transportes, também Vladislav ficou muito ferido, esmagado sob quem transportava quando fugiam de um bombardeamento.

A guerra transformou-o por completo, concede, mas sobre isso não quer falar. Quando o diz, os olhos enchem-se de lágrimas, que rapidamente consegue disfarçar. Ergue-se da cadeira com delicadeza e estende a mão, para um cumprimento, antes de voltar a sorrir e se preparar para a fotografia.


publico.pt

Ourém


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