Este individuo que se apresenta como professor universitário defende que os factos são o que são e quem não os reconhece diz mentiras e faz conspirações. Cita estatísticas erradas, como se a estatística não fosse um instrumento de fazer os dados dizer tudo e o seu contrário, dependendo de como são seleccionados e tratados; "cita leituras da realidade diferentes do que realmente aconteceu", como se ele fosse o detentor da interpretação certa da realidade; cita "os factos como base da Ciência, da História e da Política", como se os factos da ciência não tivessem interpretações alternativas (a evolução da ciência é uma prova de como os tais factos vão sendo interpretados de modo diferente e de como factos que eram os relevantes, perdem importância para outros), como se a história não tivesse verdadeiras revoluções na interpretação dos factos e como se as políticas de obras públicas se baseassem em verdades de facto.
Em primeiro lugar, quando ajuizamos nem sabemos se estamos na posse de todos os factos; em segundo lugar escolhem-se os factos que se pensam ser relevantes - a ciência e a história são grandes exemplos para não falar na política. A ciência faz experimentações em laboratório depois de isolar factos que parecem ser os relevantes e de os manipular de um modo tal que possam ser observados com certos instrumentos (que eles mesmos observam um factor isolado) e usados para testar certas hipóteses que são elas mesmas, interpretação de certos factos. A história, como sabemos é um dos instrumentos de manipulação dos povos, justamente porque entende dar relevância a certos factos em detrimento de outros e as políticas de obras públicas não se baseiam em factos mas em interesses.
Por exemplo, os portugueses olham para a sua história e uns vêem os portugueses como aventureiros e gente de espírito aberto e outros como parasitas que em vez de trabalhar vão à procura de dinheiro fácil.
Por exemplo, PPC via a troika como uma virtude (porque os seus factos lhe dizem que os portugueses são parasitas que querem viver à pala) e Portas via-a como um mal necessário.
Por exemplo, a ciência medieval via a Terra como o centro do sistema solar e Copérnico e Galileu olhavam para os mesmos dados e viam o Sol como centro do sistema solar - interpretavam os factos diferentemente.
Leibniz tinha uma versão do cálculo e da física, alternativa à de Newton e durante muito tempo os cientistas discutiram ambas e hesitaram sobre qual seria a melhor -não a mais verdadeira- e depois escolherem a de Newton e foi essa que se passou a usar.
Como este professor sabe, a ciência é intersubjectiva e não uma história da verdade: se a maioria dos cientistas ou aqueles que têm mais peso e prestígio dentro de um campo se inclina para uma certa interpretação dos factos -eles mesmos escolhidos segundo um certo critério relevante para testar certas hipóteses- esses são os factos e as teses que se tornam aceites e divulgados.
E como este professor sabe, a ciência não abarca todos os factos e toda a nossa vida - felizmente.
Ontem, numa aula com uma turma do 10º ano, acabámos de abordar o tema dos valores, nomeadamente enquanto guias da acção humana. Discutimos os argumentos e as objecções a favor das três posições acerca dos valores: o subjetivismo, segundo o qual os valores são desejos e sentimentos individuais; o relativismo, segundo o qual os valores são crenças interiorizadas no seio de uma sociedade/cultura e, por isso, são-lhe relativos; e o objetivismo, segundo o qual os valores têm um conteúdo cognitivo e, por isso, existem valores objetivos e universais.
No fim, um aluno disse: 'assim, fico sem saber qual das três hipóteses devo escolher, porque todas elas têm "buracos". Não sei qual é a certa e se escolho uma delas vou enganar-me muitas vezes. A professora não vai dizer qual é a mais certa?' Não, não vou, porque não há uma certa e verdadeira. O problema é complexo. Ninguém sabe qual é a certa nem sabemos se isso existe - cada um tem de fazer uma escolha com base no seu sistema de valores fundamentais, nas suas crenças e conhecimentos e em boas razões. É uma escolha crítica, pessoal. Eu tenho a minha mas não vou dizer que é a verdadeira.
Até os meus alunos do 10º ano percebem a dificuldade de escolher certos factos como os relevantes, os verdadeiros e os certos e o erro de classificar os outros das outras pessoas como errados.
É claro que se estamos a falar de exemplos simples como a lua existir é fácil de decidir (fora da metafísica), mas a maioria dos problemas são complexos e alguém entender que 'os seus factos' são todos os factos, são os relevantes e a sua interpretação é obviamente a real, é de um simplismo impróprio de professores universitários.
Os meus factos são melhores que os teus...
Regressei recentemente à Universidade e ao ensino e fui sendo avisado, por pessoas que conheço e que partilham da mesma arte, que muitas coisas tinham mudado desde a última vez que tive o gosto de estar numa sala de aulas cheia de estudantes. De vários, o aviso mais repetido é o impacto das redes sociais na divulgação de “factos alternativos” ou, por outras palavras, de mentiras.
“Toda a gente tem direito à sua própria opinião, mas não têm direito as seus próprios factos”, disse em 1983 Daniel Patrick Moynihan, que entre 1969 e 2001 foi conselheiro de quatro presidentes americanos, embaixador dos Estados Unidos na Índia e senador. Podemos (e acontece constantemente) discordar sobre as causas, os impactos e as consequências de determinados factos. Podemos até concordar que a informação que temos sobre determinado facto é incompleta. Mas não devemos inventar “factos” para justificar o que dizemos ou pensamos.
E, no entanto, somos todos os dias bombardeados com estatísticas erradas, relações causa-efeito inexistentes, leituras da realidade que pouco têm a ver com o que aconteceu. E quem tem a sanidade (e temeridade) de aceitar criticamente os factos pelos factos, é olhado com benevolência ou até com desprezo: “Ah! Tu acreditas nisso... pois... mas olha que não é assim!” seguindo-se uma teoria da conspiração sobre a Terra ser plana, a Humanidade nunca ter chegado à lua ou outras fantasias quaisquer, acompanhada sempre por avisos graves em relação aos misteriosos e sempre poderosos “eles” que não querem que saibamos a “verdade”.
Se as mentiras e as teorias da conspiração se limitassem a coisas ridículas ou inconsequentes até nos poderíamos divertir. Quando alguém nos tentasse convencer de que uma nave espacial tripulada não chegou, nem partiu da Lua em 1969, poderíamos abrir os olhos de espanto e dizer com ar misterioso “vejo que acreditas na Lua...”. Mas, infelizmente, as mentiras que passam por serem verdades não se limitam a serem anedotas.
E os resultados podem ser gravíssimos. Quem negou a pandemia poderá ter contribuído para espalhar o vírus. Quem recusa os planos de vacinação poderá ajudar ao surgimento de doenças que prejudiquem outras pessoas. Quem inventa estatística e correlações entre imigrantes e violência alimenta descriminações e racismo. Quem nega as alterações climáticas contribui para a destruição do equilíbrio do ecossistema que permite a vida na Terra.
Dirão alguns: como é que sabemos que a Ciência que conhecemos é real? A resposta é simples: a Ciência, feita com método, repetição, escrutínio e transparência, traduz o melhor do nosso conhecimento sobre os factos. E a Ciência, que não está preocupada com as teorias da conspiração, por ser Ciência, testa hipóteses, não se acomoda e está sempre em evolução. Sem factos e sem a Ciência que os explica, não temos a base que nos permite ter uma conversa sensata e ponderada sobre as opções que estão sobre a mesa. E sem essa conversa nacional, não temos mecanismos para dar resposta aos problemas que nos afetam e afligem coletivamente e não temos bases para as decisões legítimas em que construímos as nossas democracias.
Na semana em que celebramos 50 anos de liberdade e democracia muito ganharíamos se conseguíssemos concordar que os factos são, de facto, factos. E o resto são teorias, não-científicas, mas de conspirações.
CruzProfessor Convidado, IEP/UCP
No comments:
Post a Comment