March 05, 2024

Igualdade de género: há muito por fazer





Acesso às lideranças. “Há um tratamento privilegiado dos homens” na ciência

Filipa Almeida Mendes 

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O Clube Dos Meninos
Quando era “mais nova”, Cecília Arraiano, investigadora do ITQB da Universidade Nova de Lisboa, acreditava que “em ciência não havia nenhuma discriminação e achava que porem quotas até era um insulto, por as mulheres serem muito boas”. “Quando comecei a ficar mais velha e a avançar com a minha carreira, comecei-me a aperceber de que, de facto, há muitas situações um bocadinho subtis à primeira vista e mudei dramaticamente a minha opinião para achar que tem de haver quotas em muitas coisas na ciência”, afirma. Isto porque, diz Cecília, existe um “clube dos meninos” (“boy’s club”, em inglês).

Prova disso foi um episódio recente, em 2022, altura em que Cecília Arraiano se candidatou a um projecto da FCT como investigadora responsável. O projecto foi “arrasado” em todos os tópicos e, no tópico de avaliação “Mérito científico da equipa de investigação”, o comentário foi que a equipa era “tendenciosa em termos de género, com muito mais fêmeas”.

O tal “clube dos meninos” não é de agora. A astrónoma Teresa Lago recorda que, quando era estudante na universidade, no final da década de 1960, já “havia uma espécie de ‘clube dos meninos’ e as raparigas eram um ‘verbo-de-encher’”. “Lembro-me perfeitamente que quando os alunos começavam a aproximar-se do fim da licenciatura, os professores começavam a identificar aqueles que gostariam de incentivar a seguir uma carreira docente”, conta, acrescentando que os rapazes tinham sempre melhores classificações nas avaliações do que as raparigas. “A diferença [em como as notas eram dadas] era absolutamente abissal.”

Teresa Lago terminou a licenciatura em 1971 e foi a partir daí que as diferenças entre homens e mulheres se começaram a acentuar ainda mais. “Por exemplo, eu tentei concorrer a uma bolsa de doutoramento em Inglaterra, no antigo Instituto Nacional de Investigação Científica [INIC], e o meu marido também concorreu. A resposta que me deram foi que o meu marido já ia ter uma bolsa, portanto, eu não precisava”, conta. “Irritadíssima” com o que tinha acontecido, Teresa Lago meteu-se no comboio, foi do Porto a Lisboa, e solicitou uma audiência com o antigo presidente do INIC. “Eu não estou a pedir uma bolsa, estou-lhe a pedir meia bolsa porque, já que o meu marido vai ter uma bolsa, para mim, basta-me meia para pagar as propinas”, disse-lhe. Conseguiu a meia bolsa, mas o marido teve direito a uma bolsa completa

Há mais: “Quando eu dizia aos meus professores que ia tentar fazer um doutoramento em Inglaterra e que estava a candidatar-me, eles sorriam com um ar condescendente. Mas a verdade é que fui e regressei.”

Depois do doutoramento, regressou ao Porto como professora auxiliar. “Tenho muitas histórias ao longo da carreira, por exemplo, quando concorri para professora associada fui chamada à atenção porque havia um ou dois colegas que eram homens e que deviam entrar primeiro do que eu, independentemente do currículo de cada um. Portanto, [disseram] que eu não devia ter feito o pedido sem conversar com eles porque ali havia uma espécie de hierarquia.”

Era o tal “clube dos meninos” que dominava, com uma “clara protecção absolutamente inaceitável” dos homens. “Mas também é verdade que os rapazes eram e continuam a ser muito mais eficientes na sua autopromoção”, destaca Teresa Lago, que chegou a professora catedrática e foi também a fundadora e directora do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto. “Apesar dos esforços — das quotas, etc. —, o ‘clube dos meninos’ mantém-se em plena actividade”, conclui, referindo-se à predominância dos homens nos lugares de liderança.


“É pena é teres nascido mulher”

Ana Costa Freitas acabou o curso no Instituto Superior de Agronomia em 1975, logo a seguir ao 25 de Abril. Tirou o doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, onde permaneceu durante cerca de 18 anos como professora auxiliar no Departamento de Química. Quando abriu na Universidade de Évora o curso de Engenharia Agro-alimentar, concorreu ao lugar de professora associada e, em 2006, tornou-se vice-reitora da universidade e, mais tarde, em 2014, foi eleita reitora, cargo que ocupou até 2022. “Quando ganhei a reitoria, cheguei a receber pessoas de associações de produtores que me perguntavam como é que era possível ser uma mulher e estar à frente da Universidade de Évora”, diz a agora presidente da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas (Amonet).

História semelhante é a de Maria Mota. “Maria, tens tudo para ser bem-sucedida. É pena é teres nascido mulher”: era algo que a directora do IMM ouvia “frequentemente” do seu mentor na Universidade de Nova Iorque. A bióloga defende que “este tipo de ‘apreciação’ ou mensagens ‘subtilmente’ depreciativas têm obviamente um impacto que é difícil de medir”, mas que “não devem nem podem ser desvalorizadas”.

As mulheres têm de “saltar muito mais alto”


Além de terem mais dificuldades, as mulheres demoram mais tempo a chegar às posições de liderança do que os homens. Com base numa imagem desenvolvida pela Amonet, Cecília Arraiano avança com uma metáfora: “É como se houvesse uma escada cor-de-rosa e uma escada azul. No início, os degraus são todos iguais. A partir de um certo nível, os homens continuam com os degraus todos iguais e na escada das mulheres os degraus começam a ser cada vez mais altos. Ou seja, elas chegam lá [ao topo], mas têm que saltar muito mais alto.”

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Teresa Lago concorda que “as mulheres têm que continuar a insistir e a mostrar a sua qualidade e a competir”. Mas, ao fim ao cabo, “as mulheres têm de exigir [igualdade]”. Até porque, numa situação de precariedade em que “há muito menos lugares do que investigadores, as mulheres ficam sempre a perder”. Já para não falar, conforme lembra Graça Carvalho, que “o falhanço a uma mulher não se perdoa — isso na ciência e em tudo...”.

As soluções passam, então, pela adopção de políticas que ajudem as mulheres a conciliarem a vida profissional com a vida familiar (como as creches, o teletrabalho, entre outras). E passam pela educação, em casa e na escola, para a igualdade de oportunidades e para a importância da “representatividade” e da “diversidade de vozes”, conclui Ana João Rodrigues. “Nós somos todos diferentes, mas devemos ter direitos e oportunidades iguais.”

“Homens e mulheres são, sem dúvida, diferentes, e por isso vivem o seu dia-a-dia e crescem de modo distinto, moldando a forma como vêem os problemas e encontrando soluções diversas para os problemas. É esta diversidade que aumenta o horizonte e enriquece o processo de pensamento e o processo decisório. Deixar 50% de uma comunidade, de uma nação ou do mundo inteiro alheios a este processo é uma oportunidade perdida, um erro crasso”, conclui Maria Mota


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