December 16, 2023

Anita Vai Aos Jornais Dizer Coisas



Não saber de educação e não pensar nunca coibiu a nossa 'elite cultural' de 'dizer coisas'. No entender de MEC o professor é um ignorante que não percebe que tem em sua frente 20 sábios (gostava de saber onde as turmas têm só 20 alunos...). Isto é aquele cliché de que os alunos nascem cheios de curiosidade e talentos e a escola estraga-os. É um slogan oco, mas as pessoas repetem-no como carneiros. O outro cliché é que somos todos completamente diferentes e precisávamos que cada aluno fosse uma turma.

Se MEC trabalhasse com alunos sabia que a maioria dos alunos não tem nenhum talento especial e o mais que sabem é se têm mais jeito para aprendizagens práticas ou teóricas, para humanidades ou ciências ligadas à matemática ou à experimentação ou às artes. São pouquíssimos os que têm talentos definidos, o que aliás bate certo com a Teoria da Evolução. Nós não nascemos determinados para cumprir esta ou aquela função (MEC instrumentaliza os alunos nesse aspecto), mas em contrapartida somos seres abertos e podemos aprender quase tudo e, é na aprendizagem desse, 'quase tudo', que os alunos vão percebendo o que fazem melhor. É certo que há pessoas que nascem com talentos que são muito cedo visíveis, mas são raros. 

Os alunos são pessoas em desenvolvimento e por vezes, é no fim da adolescência que se interessam por um assunto em particular. Também podem passar a vida sem nenhum talento ou gosto particular, ou com muitos gostos e talentos em paralelo. Daí que a escola os ponha em contacto com muitas áreas do saber e do fazer, para que, nesse contacto, possam evoluir como pessoas e também, se for o caso, descobrir ou desenvolver áreas de interesse. Imagine-se que 'especialistas' atribuíam a um aluno um certo talento e depois esse aluno só fosse alimentado com comida dessa área: que pessoas pobres  teríamos, enquanto seres humanos. Amputados.

Na realidade é nas escolas e é no contacto com os temas e as práticas das disciplinas que os alunos se vão revelando e somos nós professores quem o percebe e lhes vai dizendo, porque percebemos neles, seja um talento que de facto parecem ter, seja uma facilidade de aprendizagem de certa disciplina ou certa prática ou certo tipo de raciocínio. É na observação do desenvolver do seu trabalho que o percebemos e que eles o percebem. Nenhum especialista instantâneo lhes diz isso em testes de perguntas - isso seria uma espécie de magia ao contrário que os prejudicaria, à maneira do comunismo que advogava que a sociedade descobrisse o talento/função de cada pessoa e a encaminhasse para ser produtivo nessa função. Os especialistas em educação somos nós, mas não somos especialista instantâneos ou mágicos como MEC parece acreditar que existem fora dos contos de fadas. 

Já tive alunos que tinham talento numa área mas rejeitaram-na. Por exemplo, uma miúda que há uns bons anos foi minha aluna, filha de um colega de matemática, tinha imenso talento para a matemática e para a lógica. Tirou excelentes notas nos exames, entrou para um curso da área da economia ou gestão e no fim do ano disse que ia mudar para história de arte. A família apoiou-a mas disse-me, 'isto custa porque ela tem muito talento para a matemática e para o raciocínio lógico'. Quem sabe se esta miúda, um dia, não desenvolve um trabalho qualquer na Arte, ligado a esse talento que tem...? Portanto, as pessoas não são máquinas determinadas à nascença para um especialista afiar como quem afia um lápis e dizer que tipo de desenho devem fazer. 

De resto, se os alunos lêem poucos livros é porque em casa não têm esse exemplo e a sociedade contraria esse valor e diz-lhes frequentemente que podem deitar fora os livros que agora está tudo no telemóvel à distância de um clique: outro cliché idiota.

Nós somos tão parecidos enquanto humanos que tomamos os mesmos medicamentos para as mesmas maleitas e resulta em quase todos, somos tão parecidos que sabemos e antecipamos que perguntas os miúdos vão fazer em cada tema, o modo como vão resolver certos problemas, as dúvidas que lhes vão surgir, os exemplos que dão, quais os filmes em que vão chorar, que personagens os vão revoltar, etc, os assuntos em que têm mais dificuldade em pensar. 

É claro que cada um tem a sua particularidade, quer dizer, todos temos sinais no corpo, mas cada um tem os seus distribuídos de um certo modo. O facto de cada um ter os seus, não os torna completamente diferentes dos outros e se vão a um médico, são examinados com os mesmos instrumentos. E hoje-em-dia até já existem medicamentos específicos para aquela pessoa em particular, mas são idênticos, funcionam com o mesmo princípio activo, sendo que o que muda é a dose, certos componentes, porque a pessoa tem colesterol ou tem alergias, etc. Mas não são completamente diferentes. Por exemplo, todos os alunos beneficiam de aprender Lógica, porque todos os nossos pensamentos, raciocínios e argumentos são construídos sobre esses fundamentos e é bom que os saibamos usar validamente. O que é diferente é que uns gostam mais de Lógica que outros, uns têm mais facilidade que outros, uns precisariam de mais tempo com certos sub-temas da Lógica, etc. (para isso, ter turmas de 20 alunos em vez de 30 ajudava muito) 

Nós estamos tipificados e a larga maioria cabe perfeitamente no baralho. Há muito poucas pessoas que são cartas fora do baralho e que necessitam de uma abordagem muito diferente. Existem, de facto, mas são muito poucas. A maioria dos alunos tem os mesmos anseios mais ou menos na mesmas idades, as mesmas dúvidas, as mesmas referências culturais, os mesmos gostos. 

MEC é uma prova de como quase todas as pessoas são iguais. Sendo uma pessoa culta, poderíamos pressupor que pensa antes de falar (bem sei que fala muito e quem fala muito corre risco de também falhar mais) e que poderia ser diferente, nomeadamente, de não embandeirar pelos clichés que a nossa 'elite cultural' vomita a propósito da educação sem estar por dentro dos assunto. Pois, mas não. É como os outros: não percebe nem tem experiência de educação escolar, mas aí está ele a 'cagar sentenças' como diz o povo, sobre os professores serem ignorantes, os alunos pequenos sábios ávidos de saber e como a escola lhes desperdiça os talentos. Esta crónica é uma espécie de, 'Anita, Vai Aos Jornais Dizer Coisas'.


A turma de um só aluno

Se considerarmos que todos nós temos jeito para uma coisa ou outra, faz sentido gastar tempo e dinheiro a descobrir os talentos de cada um

Miguel Esteves Cardoso

As crianças gostam de pôr os insectos de pernas para o ar. É como se dissessem ao escaravelho: “Pronto, já vi a carapaça que mostras ao mundo: és muito bonito. Agora deixa lá ver como és realmente...”

Depois de examinar o chassis, a criança volta a endireitar o insecto. O adulto censura-a: “Deixa lá estar o pobre do bicho!” Mas a criança tem razão: tem agora uma ideia mais completa do escaravelho.

Façamos o mesmo com uma sala de aula em que temos 20 alunos à frente de um professor: 20 ignorantes à volta de um sábio.

Agora vire-se a aula ao contrário e ponhamos 20 sábios e um ignorante, em que é o ignorante que manda. Como é que vai aproveitar aquela sabedoria toda ali concentrada? A coisa mais importante que pode descobrir são os talentos que ainda não sabe que tem.

Se considerarmos que todos nós temos jeito para uma coisa ou outra, faz sentido gastar tempo e dinheiro a descobrir os talentos de cada um.
A pior maneira de fazer isto é obrigando toda a gente a aprender as mesmas coisas, em aulas onde cada um se perde na multidão. Essa é a melhor maneira para descobrir quem é que não tem jeito para nada.

Se aos 5, 10, 15 e 20 anos, cada jovem fosse longamente entrevistado por 20 especialistas, só com o objectivo de descobrir os talentos que tivesse, os resultados desses encontros não seriam mais úteis para o indivíduo – e para a sociedade – do que exames e outros exercícios massificados em que nada é talhado à medida de cada um?

Em vez de dizer “Leiam livros, que vos faz bem!”, os 20 sábios poderiam dedicar-se a descobrir os livros que aquele indivíduo particular e diferente, com gostos próprios, poderia gostar de ler.

Duas horas com 20 sábios, de cinco em cinco anos, são só oito horas para o jovem, mas terão certamente um efeito benéfico para toda a vida.

Dá pouco jeito que sejamos todos diferentes? Pois dá. Mas somos.

Nem que fosse só pelo prazer de mais tarde nos podermos rir todos das recomendações dos sábios.

4 comments:

  1. Podemos-nos rir destas recomendações deste sábio chamado MEC?
    Portanto, seriam esses 20 sábios que me iriam dizer que adoro Agatha Christie, Eça ou Dostoiévski, não eu, um incapaz de descobrir os meus gostos?
    Por outro lado, o que é isso de talhado à medida de cada um? A escola - e a vida - são desenhadas para ir ao encontro das minhas medidas? Assim sendo, o meu horizonte vai ser constrangido, não exponenciado.
    Só há uma coisa que não compreendo: como é que nós e o MEC sobrevivemos a esta escola e nos tornámos adultos capazes de usar talheres?

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    1. "A escola - e a vida - são desenhadas para ir ao encontro das minhas medidas? Assim sendo, o meu horizonte vai ser constrangido, não exponenciado." É exactamente esse tipo de pensamento que é defendido pelos decisores actuais. Dar aos alunos o que eles querem e gostam. Fechar horizontes em vez de abrir. Uma pobreza de espírito.

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  2. Eu costumava gostar muito das crónicas do MEC. Ele mudou muito ou fui eu que fiquei mais velho e vejo melhor.

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    1. Conhecia pessoas que nunca perdiam uma crónica dele mas eu nunca fui fã dele. Talvez porque ele era muito literário mas pouco filosófico.

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