October 29, 2023

“Estamos numa batalha para convencer as pessoas de que a democracia é o melhor sistema”

 


Certamente tem de ser mais redistributivo, com um maior foco no apoio ao emprego razoavelmente bem remunerado, com muito investimento em infra-estruturas e inovação que criem as condições para o crescimento económico. É preciso investir enormemente na educação das pessoas, para se ter uma população altamente qualificada, como aquela que se vê no Norte da Europa


“Estamos numa batalha para convencer as pessoas de que a democracia é o melhor sistema”



Martin Wolf, principal comentador económico do Financial Times, diz que, para sobreviver, o capitalismo democrático tem de ser “mais redistributivo” e apoiar “emprego bem remunerado”.


O seu livro alerta para o risco de ascensão de mais líderes populistas e autocráticos e tem uma visão bastante pessimista em relação ao futuro das democracias liberais. No entanto, Donald Trump perdeu as eleições, Bolsonaro também e os resultados eleitorais na Polónia foram mais favoráveis à oposição. Não há motivos para um pouco mais de optimismo?
Bom, significa que ainda não perdemos, que ainda estamos no jogo, isso é verdade. Estamos naquilo que se irá provavelmente revelar uma batalha demorada, com altos e baixos, e não estou à espera que todas as democracias desapareçam nas próximas semanas

Mas a tendência é negativa, é isso?
Aquilo a que se chama recessão democrática, o declínio das democracias à escala mundial, tem sido lento, mas dura já há quase 20 anos. Há dados que mostram isso, seja no que diz respeito à evolução política no mundo, seja nas atitudes das populações relativamente à democracia. E há neste momento lutas muito significativas em países fundamentais para a democracia. Nos Estados Unidos, parece muitíssimo provável que Donald Trump venha a ser o próximo candidato do Partido Republicano à presidência e o melhor que se pode dizer é que as suas hipóteses de ganhar são de 50%. Apesar daquele que simplesmente é o ataque mais directo à democracia que se pode imaginar, que é a tentativa de alterar os resultados da eleição para o cargo político mais importante do país, ele ainda é o candidato republicano, ainda é a pessoa com mais influência no partido, todos os que afirmaram que as suas mentiras sobre as eleições eram mentiras foram mandados embora e uma proporção muito alargada da população ainda o apoia, pelo que pode ser presidente outra vez ao mesmo tempo que corre o risco de ir para a prisão. É uma situação muito séria e os EUA são de longe o país mais decisivo na defesa da democracia desde a Segunda Guerra Mundial.

E o resto do mundo?
Na Polónia aparentemente mudou-se de rumo, mas vamos ver o que vai acontecer. Ao fim de oito anos as instituições foram danificadas, não sabemos se o novo governo vai conseguir funcionar bem e quem saiu do governo ainda tem o partido mais votado. Em França, não é certo, mas é provável que a próxima presidente seja Marine Le Pen. E no resto do mundo pode-se ver o que está a acontecer em vários países emergentes importantes, como a Turquia ou a Índia, onde as figuras antidemocráticas estão a tornar-se cada vez mais dominantes. Em África há uma série de golpes de Estado a ocorrer. Vladimir Putin está a transformar completamente a Rússia numa ditadura. Portanto, olhando para a situação como um todo, acho que o mais optimistas que podemos ser é dizer que estamos no meio de uma grande batalha, simultaneamente interna – para convencer as pessoas de que a democracia é o melhor sistema e que aquilo que queremos são líderes democráticos – e externa, contra inimigos muito poderosos.

Na batalha interna, defende políticas públicas destinadas a maximizar os ganhos para a população vindos da democracia liberal e do capitalismo. Não viu, por exemplo na pandemia, a introdução deste tipo de políticas, protegendo as pessoas e evitando uma recessão mais profunda?
É verdade. Mesmo antes, quando tivemos a crise financeira internacional, não se permitiu que se tornasse numa nova Grande Depressão. E podia facilmente ter-se tornado, com consequências muito difíceis de prever. Ainda assim, a crise financeira internacional foi fulcral a minar a confiança nas elites políticas e financeiras e desempenhou um papel desestabilizador no sector político de centro-direita, conduzindo à substituição de conservadores pró-mercado pela direita mais reaccionária. A mudança de Romney para Trump é muito profunda. E também no Reino Unido a mudança dos antigos, respeitáveis e pró-UE conservadores por aquilo com que ficámos após o referendo do "Brexit" foi muito significativo. Houve muitas mudanças, mas também é verdade que se conseguiu evitar que a Grande Recessão, como se chamou, não atingisse uma dimensão idêntica à da Grande Depressão. Agora, os governos fizeram um bom trabalho a lidar com a covid-19. No caso dos EUA, por exemplo, penso que a Administração Biden está a fazer um esforço para criar uma visão mais positiva do que um governo democraticamente eleito pode fazer para as pessoas comuns. Mas deprime-me que, perante o que tem sido um desempenho relativamente bom nos EUA, que foi a única potência mundial cuja economia teve um desempenho melhor do que o esperado antes da covid, as pessoas continuem muito insatisfeitas. Isso tem a ver com tendências económicas, sociais e culturais de longo prazo às quais as pessoas estão a sentir grandes dificuldades a adaptar-se. E os demagogos populistas têm mensagens muito simples sobre quem é que são os responsáveis: os estrangeiros, os imigrantes. Dão motivos para as pessoas estarem zangadas, apesar de não apresentarem respostas, é claro. Culpam os estrangeiros e culpam os imigrantes. E isto funciona muito bem politicamente quando as pessoas estão zangadas

Não há outras respostas, também simples?
Gostava que houvesse. Nas tendências sociais e culturais não há realmente respostas fáceis. Não vamos reverter todas as mudanças que ocorreram. Mas do lado económico, em meados do século XX, em resposta aos desastres dos anos 1930 e da Segunda Grande Guerra, foi possível criar Estados sociais, que deram às pessoas vidas muito mais seguras.

Não se pode criar os Estados sociais outra vez...

Não, e agora não temos o dinheiro para dar muito mais, antes era uma situação bastante diferente. A economia era muito dinâmica na Europa, criou-se uma nova classe média, com todos os novos aparelhos, as máquinas de lavar, os carros. As pessoas sentiram que estavam realmente muito melhor, as economias cresciam muito, o Ocidente tinha um monopólio completo na indústria. Era muito mais fácil nessa altura rectificar os problemas económicos e sociais que emergiram no início do século XX. Agora é tudo mais complicado. A economia não está a conseguir gerar tantos novos empregos bons para as pessoas de médios e baixos rendimentos. A natureza das nossas economias tende a preservar e a gerar mais desigualdade. A capacidade dos Estados para controlar e gerir as economias diminuiu, particularmente na Europa. O crescimento económico abrandou muito, há menos dinamismo económico e existem uma série de mudanças culturais e sociais de longo prazo. E, por todas estas razões, vai ser muito mais difícil.

Que resposta é que há para isso?
Há respostas parciais, mas não vão ser mágicas, não vão fazer estas dúvidas que as pessoas têm desaparecer de um momento para o outro.

Os benefícios da democracia liberal são assim tão difíceis de vender?
Bom, há algo que pode ajudar. Quando as pessoas experimentam a realidade de serem governadas por populistas, percebem que não funciona muito bem, que as respostas muito simples que apresentam não são de facto respostas. E os mais jovens, como aconteceu na Polónia e também nos EUA com a eleição de Biden, ajudaram particularmente a reverter a situação.

A sua esperança é que o populismo só se experimente uma vez?
Sim, mas é bom recordar uma coisa, que é muito evidente na política da América do Sul. Os governos populistas e demagogos fazem muitos estragos nas instituições da sociedade, nos serviços públicos, no sistema de justiça, nas finanças públicas, na confiança entre as pessoas. Depois vem um novo governo que tem de limpar isso tudo. Isso leva anos a ser feito. Depois vem outra eleição e os populistas podem dizer que as coisas estão pior. Entra-se num ciclo de instabilidade, em que se vai alternando entre líderes razoáveis que não conseguem corrigir os danos provocados pelos populistas e os populistas que fazem ainda mais danos. O melhor exemplo disso no pós-guerra é a Argentina, onde não se tem conseguido sustentar uma boa governação no país durante tempo suficiente para o país começar a funcionar. Mais cedo ou mais tarde, as pessoas desesperam, muitos jovens saem e o país fica num estado de turbulência constante e de declínio. Por isso, não basta derrotar os populistas, é preciso criar as condições para que um bom governo funcione, e as pessoas que os substituem têm de ter a imaginação para desenvolver políticas que ajudem toda a gente de forma relativamente rápida.

As suas receitas em termos económicos parecem centrar-se na ideia de que o capitalismo democrático, para sobreviver, tem de ser um capitalismo mais regulado, com mais intervenção do Estado.
Certamente tem de ser mais redistributivo, com um maior foco no apoio ao emprego razoavelmente bem remunerado, com muito investimento em infra-estruturas e inovação que criem as condições para o crescimento económico. É preciso investir enormemente na educação das pessoas, para se ter uma população altamente qualificada, como aquela que se vê no Norte da Europa. E prosseguir políticas macroeconómicas que sustentem um crescimento económico. Ao mesmo tempo, é necessário algo espectacularmente difícil e complexo de fazer que é gerir a transição climática. Não há receitas mágicas, mas as pessoas precisam de sentir que elas e os seus filhos têm perspectivas de uma vida melhor

Não é preciso cobrar mais impostos para financiar todas estas políticas?
Isso depende do contexto. Nunca recomendaria que os impostos fossem mais altos na Dinamarca ou em França. Aí já são muito altos. Em alguns países, e o meu é um deles, as pessoas querem um Estado social e não têm estado disponíveis para pagar os impostos necessários para isso. Assim não funciona. A capacidade que há para subir os impostos varia consoante os países.

Um país como Portugal, o que deve fazer?
Um país como o vosso tem de levar em consideração onde é que a carga fiscal cai e precisa de escolher impostos onde os efeitos negativos na iniciativa e no empreendedorismo sejam relativamente pequenos. Aquilo que, por exemplo, se pode ter é impostos sobre empresas que beneficiam de rendas, sobre emissões de carbono, que é algo que é lógico, mas que politicamente tem-se visto que é muito difícil de pôr em prática. Mas acho que, na maior parte dos países europeus, é bastante difícil aumentar os impostos de forma significativa, porque já valem cerca de metade do PIB.

No combate à crise inflacionista, tem receio de que os bancos centrais estejam a ir longe demais?
Sim, tenho. Os riscos são maiores na Europa do que nos EUA. Os americanos têm uma economia doméstica muito forte, o mercado de trabalho está muito forte, a política orçamental é expansionista e a economia está a crescer muito rapidamente. Portanto, o nível de aperto que agora introduziram na política monetária não parece inapropriado. Já na Europa, tanto na zona euro como no Reino Unido, muita da inflação foi importada, em particular dos choques associados à guerra na Ucrânia. E não havia muito que se pudesse fazer contra isso. O crescimento não tem sido particularmente forte e os mercados de trabalho estão a ter um desempenho positivo mas não espectacular. Portanto, penso que há um maior risco de a política monetária se vir a revelar demasiado apertada. A inflação vai cair rapidamente e podem demorar demasiado tempo para voltarem a aliviar a política. Os efeitos da política monetária são prolongados e demoram tempo a fazer-se sentir, portanto o resultado pode muito bem ser daqui a um ano termos uma recessão ou um abrandamento muito forte na zona euro. O BCE irá então reagir, baixando taxas de juro, mas será demasiado tarde. Isso será bastante prejudicial, quer do ponto de vista económico, quer social. É uma situação muito difícil de gerir, não tínhamos uma inflação como esta há 40 anos.

Teme que algumas democracias liberais na Europa estejam apenas à distância de uma recessão para ficarem seriamente em risco?
A minha grande preocupação neste momento é com a França. Macron não pode concorrer outra vez e tanto os socialistas como a direita republicana parecem estar incrivelmente fracos. A política desinstitucionalizou-se, o que evidentemente é um perigo, especialmente num sistema presidencial. Se a eleição é uma eleição de personalidades, não de instituições ou de programas de partidos, então a personalidade mais excitante é a que tem mais hipóteses de vencer, por muito pouca substância que tenha. Donald Trump nunca se tornaria líder num sistema parlamentar. E Marine Le Pen também teria poucas hipóteses. Mas com o sistema presidencial é possível. Macron ganhou vindo de fora do sistema, e agora que ele não pode concorrer irá aparecer outro Macron capaz de vencer Marine Le Pen? Isto começa a depender do acaso, de ter ou não este tipo de personalidade carismática como líder, e qualquer coisa pode acontecer. E estou também preocupado, embora não ponha no mesmo nível que França, com o facto de a Alternativa para a Alemanha se ter tornado um partido tão grande. Sei que é uma forma de protesto, percebo porquê, mas está a puxar o centro-direita mais para a direita e não sei como é que isso vai evoluir. Na Itália, se a economia na zona euro evoluir muito mal, os défices dispararem e o mercado da dívida pública entrar em crise, é muito difícil ficar confortável com o que pode vir a acontecer.

Uma nova crise na zona euro, com a moeda única em risco, é possível?
Com este tipo de combinação, em que Marine Le Pen está na liderança em França, em que outros países grandes como a Itália estão em crise e em que a Alemanha está dividida sem uma maioria coerente, então teríamos obviamente problemas políticos muito sérios na zona euro.

Nos últimos meses, com a guerra na Ucrânia e agora com o conflito no Médio Oriente, tornou-se muito claro o confronto entre o bloco onde estão a China e a Rússia e as chamadas democracias liberais. Para que tipo de confronto estamos a caminhar?
Aquilo que torna muito difícil fazer aqui previsões é o futuro da situação política nos EUA. Se tivermos um governo como o actual, estão é muito claro que estamos a caminhar para um mundo de competição e conflito entre blocos. É uma situação semelhante à dos anos 1960, em que aquilo a que se chama agora Sul Global será como o movimento dos países não-alinhados dessa altura, que eram palco de uma competição – através de dinheiro, comércio e guerra – entre os EUA e a União Soviética. Já na altura, países como a Índia ou a Indonésia eram líderes dos não-alinhados, não mudou muito agora. Vejo agora este cenário a repetir-se, mas há algumas diferenças. É um confronto muito menos ideológico, é mais sobre o poder e foca-se essencialmente em interacções económicas. Prevejo que estas tensões que estamos a ver agora possam continuar por um tempo indefinido – o que não significa para sempre, mas não sei até quando é que irá.

No seu livro, diz que irá haver uma confrontação com a China, mas que não deve haver conflito militar. Em termos económicos, até onde é que se pode ir no confronto com a China?
Há uma distinção entre aquilo que acho que vai acontecer e aquilo que acho que devia acontecer. Penso que os Estados Unidos irão progressivamente confrontar cada vez mais a China e vai ser muito difícil conter os conflitos. Não é o que toda a gente quer, mas é o caminho que a política indica. Mas o que se devia fazer – e que é muito difícil – é definir que áreas do comércio são demasiado sensíveis de um ponto de vista de segurança para que possam funcionar livremente e, por isso, impedir que determinadas tecnologias sejam comercializas com a China e que determinados investimentos sejam feitos entre os dois países. Para além disso, o comércio continuaria a ser feito como está estabelecido pela Organização Mundial do Comércio. A dificuldade com isto é que, com o tempo, o número de coisas que irão passar a ser vistas como sendo estratégicas tenderá a crescer e a hostilidade relativamente à China fará com que seja atractivo politicamente impor mais restrições. E, claro, se Trump voltar, ele é um proteccionista e quererá limitar o comércio de todas as maneiras. Suspeito de que iremos ao longo do tempo acabar com relações económicas cada vez mais limitadas entre os EUA e a China, complicando também a vida a todos os outros países. A integração da economia mundial a que assistimos ao longo das últimas décadas tenderá a recuar.

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