A Lei de Ferro da Oligarquia. Constituição em saldos?
José Ribeiro e Castro
Entrou-se num processo de revisão constitucional ilegítimo. Os partidos exibiram, quase um ano depois das eleições, o que tinham a estrita obrigação de ter mostrado antes.
A Constituição é, em qualquer país, a matéria mais importante da ordem política e legislativa. Funda a ordem política, define o seu quadro de legitimidade, condiciona todo o sistema legislativo. É a Lei Fundamental.
O sistema político deve mostrar real respeito por ela, afirmando e protegendo o valor de referência fundamental de que é portadora. Quando um sistema político não o faz e mostra falta de respeito pelo estatuto da Constituição, podemos recear tudo. Sistema que desrespeita a Constituição está pronto a desrespeitar tudo o resto. Não quer dizer que venha a fazê-lo logo. Fá-lo-á quando tiver apetite e oportunidade.
As eleições que abriram a legislatura actual foram a 30 de Janeiro de 2022. A revisão constitucional não esteve de todo na sua agenda. Debateram-se muitos temas, mas não a revisão da Constituição. Para quem se der ao trabalho – como fiz – de reler os programas eleitorais, verificará que nenhum dos partidos, maiores ou mais pequenos, assinalou que pretendia abrir a revisão constitucional, nem apontou tema em que quisesse fazê-lo. Só o PCP o mencionou, para dizer que era contra a revisão, mas que, se outros a abrissem, apresentaria propostas. Nem sequer o Chega, que viria a abrir o baile da revisão, disse o que quer que fosse.
Os meses correram sem atropelos até Outubro. Oito meses depois das eleições, a 6 de Outubro, o Chega apresentou um projecto de revisão. Como já o fizera na legislatura anterior, para “marcar posição”, ninguém estranhou. Pensou-se que ficaria a falar sozinho, como anteriormente. Porém, os outros surpreenderam, indo na esteira do Chega e acompanhando André Ventura: em 11 de Novembro, todos apresentaram projectos de revisão constitucional. Ventura abriu o baile e todos foram dançar: BE, PS, IL, Livre, PCP, PSD e PAN.
Entrou-se num processo de revisão constitucional ilegítimo. Os partidos exibiram, quase um ano depois das eleições, o que tinham a estrita obrigação de ter mostrado antes. Nunca, em assunto tão sério, se atingira tamanha falta de respeito pelo eleitorado, reduzido à irrelevância e à infantilidade. Nunca se iniciara uma revisão constitucional ordinária que não fosse precedida de debate eleitoral quanto a ser feita e às principais matérias. À porta das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, parece que se quis imitar um processo de revisão da Constituição de 1933. Se a legislatura não a abortar e levar até ao fim, deixará um legado terrível para o futuro.
É perturbante não haver partido que se desmarque deste atropelo da legitimidade democrática. Nem sequer o CDS. E desconsola que poucas vozes o critiquem. Porque acontece isto? Porque, dizem, ninguém liga a “essas coisas”. E, de facto, ninguém liga: nem quem manda, nem quem obedece. É péssimo ninguém ligar às questões de legitimidade, as questões fundamentais. Até o Chega, usualmente diabolizado, serviu a todos de pioneiro, de biombo e de modelo.
O processo tem decorrido discretamente, em comissão, sem a ressonância pública que qualquer revisão constitucional merece e precisa. É uma vergonha quando olhamos para trás. Não só para o trabalho fundador da Assembleia Constituinte, mas para todas as revisões constitucionais posteriores rodeadas de grande publicidade e atenção: nos debates sociais que as precederam, nas campanhas eleitorais que elegeram os deputados que as tomaram a cargo, nos debates parlamentares das matérias mais salientes, nas negociações interpartidárias envolvendo os líderes para encontrar o maior consenso. Esta revisão, em contraste, parece brincadeira de mau gosto. Sem legitimidade, nem dignidade.
Como numa loja de pronto-a-vestir, em época de saldos, já se ouviu A ou B pedir uma normazinha que conviesse ao seu sector. Vi voz autorizada apelar a que se reformasse o quadro constitucional na justiça, como se a justiça pudesse ser tratada assim, sem debate democrático prévio e alargado. E, há dias, o Expresso, em duas semanas consecutivas, pareceu querer introduzir na agenda, a martelo, o recrutamento de estrangeiros para as Forças Armadas, logo avisando que “só com revisão da Constituição”. Pareceu um apelo para o tema ainda apanhar o comboio que rola em S. Bento.
A Assembleia da República tem competência formal. Mas não tem legitimidade política democrática – o que é determinante. A regra é a revisão ordinária poder acontecer passados cinco anos sobre a última revisão – o que pressupõe, sendo uma competência ordinária, que quem queira accioná-la apresentará as suas ideias nas eleições, em debate transparente e contraditório. Foi sempre assim: não há debate eleitoral, não há revisão. Já a revisão extraordinária, motivada por facto imprevisto, de natureza pontual, pode acontecer a qualquer altura, mas desencadeada por maioria qualificada de 184 deputados. O sistema funcionou sempre assim: só não há debate eleitoral prévio, quando não pode haver em virtude da própria imprevisibilidade da revisão.
A situação é grave. O constitucionalismo surgiu exactamente para limitar o poder dos eleitos e dos governantes, firmando a supremacia dos eleitores e dos governados. Define o artigo 1º da Constituição: “Portugal é uma República soberana, baseada na vontade popular.” Será? O artigo 2.º completa: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular.” Será mesmo assim? E o artigo 3.º remata: “A soberania reside no povo.” Será que ainda lá mora? Ou também emigrou?
O artigo 9.º afirma, à cabeça: “É tarefa fundamental do Estado (…) defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais.” O Estado está a falhar escandalosamente a primeira tarefa. Não defende a democracia política. Não assegura e não incentiva a participação democrática dos cidadãos.
Um sociólogo e cientista político alemão, Robert Michels, enunciou, em 1911, a Lei de Ferro da Oligarquia, segundo a qual, na síntese de Wilhelm Hofmeister, “cada organização produz inevitavelmente uma classe dirigente que passa a não poder controlar de modo efectivo e permanente”. Michels dizia que “há um profundo traço aristocrático na natureza da organização”, fenómeno que é “a mãe do governo dos eleitos sobre os eleitores, dos comissários sobre os mandantes, dos delegados sobre os delegantes”, em suma, a inversão total da ordem democrática. Em maré cada vez mais oligárquica nos partidos, é pior ainda quando todos os partidos agem concertados. Aqui, nem o pluralismo partidário protege e defende a cidadania.
Se viermos a ter a pior revisão constitucional de sempre, porventura com repercussões que durarão anos ou décadas, não serve de consolo culpar o Chega por ser o responsável. Terá sem dúvida enorme responsabilidade, ao cumprir o papel vulgarmente dito de “idiota útil”. Mas a responsabilidade é de todos os que embarcaram na caravana sem mandato democrático.
Subscritor do “Manifesto: Por uma Democracia de Qualidade"
Escreve sem adopção das regras do AO de 1990
A Constituição é, em qualquer país, a matéria mais importante da ordem política e legislativa. Funda a ordem política, define o seu quadro de legitimidade, condiciona todo o sistema legislativo. É a Lei Fundamental.
O sistema político deve mostrar real respeito por ela, afirmando e protegendo o valor de referência fundamental de que é portadora. Quando um sistema político não o faz e mostra falta de respeito pelo estatuto da Constituição, podemos recear tudo. Sistema que desrespeita a Constituição está pronto a desrespeitar tudo o resto. Não quer dizer que venha a fazê-lo logo. Fá-lo-á quando tiver apetite e oportunidade.
As eleições que abriram a legislatura actual foram a 30 de Janeiro de 2022. A revisão constitucional não esteve de todo na sua agenda. Debateram-se muitos temas, mas não a revisão da Constituição. Para quem se der ao trabalho – como fiz – de reler os programas eleitorais, verificará que nenhum dos partidos, maiores ou mais pequenos, assinalou que pretendia abrir a revisão constitucional, nem apontou tema em que quisesse fazê-lo. Só o PCP o mencionou, para dizer que era contra a revisão, mas que, se outros a abrissem, apresentaria propostas. Nem sequer o Chega, que viria a abrir o baile da revisão, disse o que quer que fosse.
Os meses correram sem atropelos até Outubro. Oito meses depois das eleições, a 6 de Outubro, o Chega apresentou um projecto de revisão. Como já o fizera na legislatura anterior, para “marcar posição”, ninguém estranhou. Pensou-se que ficaria a falar sozinho, como anteriormente. Porém, os outros surpreenderam, indo na esteira do Chega e acompanhando André Ventura: em 11 de Novembro, todos apresentaram projectos de revisão constitucional. Ventura abriu o baile e todos foram dançar: BE, PS, IL, Livre, PCP, PSD e PAN.
Entrou-se num processo de revisão constitucional ilegítimo. Os partidos exibiram, quase um ano depois das eleições, o que tinham a estrita obrigação de ter mostrado antes. Nunca, em assunto tão sério, se atingira tamanha falta de respeito pelo eleitorado, reduzido à irrelevância e à infantilidade. Nunca se iniciara uma revisão constitucional ordinária que não fosse precedida de debate eleitoral quanto a ser feita e às principais matérias. À porta das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, parece que se quis imitar um processo de revisão da Constituição de 1933. Se a legislatura não a abortar e levar até ao fim, deixará um legado terrível para o futuro.
É perturbante não haver partido que se desmarque deste atropelo da legitimidade democrática. Nem sequer o CDS. E desconsola que poucas vozes o critiquem. Porque acontece isto? Porque, dizem, ninguém liga a “essas coisas”. E, de facto, ninguém liga: nem quem manda, nem quem obedece. É péssimo ninguém ligar às questões de legitimidade, as questões fundamentais. Até o Chega, usualmente diabolizado, serviu a todos de pioneiro, de biombo e de modelo.
O processo tem decorrido discretamente, em comissão, sem a ressonância pública que qualquer revisão constitucional merece e precisa. É uma vergonha quando olhamos para trás. Não só para o trabalho fundador da Assembleia Constituinte, mas para todas as revisões constitucionais posteriores rodeadas de grande publicidade e atenção: nos debates sociais que as precederam, nas campanhas eleitorais que elegeram os deputados que as tomaram a cargo, nos debates parlamentares das matérias mais salientes, nas negociações interpartidárias envolvendo os líderes para encontrar o maior consenso. Esta revisão, em contraste, parece brincadeira de mau gosto. Sem legitimidade, nem dignidade.
Como numa loja de pronto-a-vestir, em época de saldos, já se ouviu A ou B pedir uma normazinha que conviesse ao seu sector. Vi voz autorizada apelar a que se reformasse o quadro constitucional na justiça, como se a justiça pudesse ser tratada assim, sem debate democrático prévio e alargado. E, há dias, o Expresso, em duas semanas consecutivas, pareceu querer introduzir na agenda, a martelo, o recrutamento de estrangeiros para as Forças Armadas, logo avisando que “só com revisão da Constituição”. Pareceu um apelo para o tema ainda apanhar o comboio que rola em S. Bento.
A Assembleia da República tem competência formal. Mas não tem legitimidade política democrática – o que é determinante. A regra é a revisão ordinária poder acontecer passados cinco anos sobre a última revisão – o que pressupõe, sendo uma competência ordinária, que quem queira accioná-la apresentará as suas ideias nas eleições, em debate transparente e contraditório. Foi sempre assim: não há debate eleitoral, não há revisão. Já a revisão extraordinária, motivada por facto imprevisto, de natureza pontual, pode acontecer a qualquer altura, mas desencadeada por maioria qualificada de 184 deputados. O sistema funcionou sempre assim: só não há debate eleitoral prévio, quando não pode haver em virtude da própria imprevisibilidade da revisão.
A situação é grave. O constitucionalismo surgiu exactamente para limitar o poder dos eleitos e dos governantes, firmando a supremacia dos eleitores e dos governados. Define o artigo 1º da Constituição: “Portugal é uma República soberana, baseada na vontade popular.” Será? O artigo 2.º completa: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular.” Será mesmo assim? E o artigo 3.º remata: “A soberania reside no povo.” Será que ainda lá mora? Ou também emigrou?
O artigo 9.º afirma, à cabeça: “É tarefa fundamental do Estado (…) defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais.” O Estado está a falhar escandalosamente a primeira tarefa. Não defende a democracia política. Não assegura e não incentiva a participação democrática dos cidadãos.
Um sociólogo e cientista político alemão, Robert Michels, enunciou, em 1911, a Lei de Ferro da Oligarquia, segundo a qual, na síntese de Wilhelm Hofmeister, “cada organização produz inevitavelmente uma classe dirigente que passa a não poder controlar de modo efectivo e permanente”. Michels dizia que “há um profundo traço aristocrático na natureza da organização”, fenómeno que é “a mãe do governo dos eleitos sobre os eleitores, dos comissários sobre os mandantes, dos delegados sobre os delegantes”, em suma, a inversão total da ordem democrática. Em maré cada vez mais oligárquica nos partidos, é pior ainda quando todos os partidos agem concertados. Aqui, nem o pluralismo partidário protege e defende a cidadania.
Se viermos a ter a pior revisão constitucional de sempre, porventura com repercussões que durarão anos ou décadas, não serve de consolo culpar o Chega por ser o responsável. Terá sem dúvida enorme responsabilidade, ao cumprir o papel vulgarmente dito de “idiota útil”. Mas a responsabilidade é de todos os que embarcaram na caravana sem mandato democrático.
Subscritor do “Manifesto: Por uma Democracia de Qualidade"
Escreve sem adopção das regras do AO de 1990
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