Na semana passada vi dois filmes, um que nunca tinha visto, chamado, The Ticket e outro que tinha visto há vinte anos quando estreou mas que não tinha voltado a ver, The Pianist.
The Ticket é um filme pessimista. O filme apresenta-nos um homem cego, que por ser cego, é extraordinariamente atento ao que o rodeia, vê as qualidades das pessoas e aproveita o melhor de tudo o que tem. Tem uma mulher fantástica e um filho que o adora. Tem um grande amigo que também é cego. Um dia, contra todas as expectativas, começa a ver - o nome do filme vem deste acontecimento que é o equivalente a ganhar a grande lotaria. A questão é que, assim que começa a ver, passa a ser cego. Primeiro vê-se ao espelho e descobre que é um homem bonito e de repente começa a ver tudo pelas aparência, pela superfície e perde a habilidade que tinha de ser atento, de ver as qualidades das pessoas e entender o seu valor. Começa a progredir no emprego, mas com um tal entusiasmo pelo sucesso que se degrada moralmente e engana clientes. Um manipulador sem escrúpulos. Não tarda muito deixa a mulher por uma fulana qualquer do emprego que lhe traz mais glamour e aparente sucesso. Sai de casa, zanga-se com o amigo porque este diz-lhe a verdade sobre aquilo em que se transformou e ele pensa que o amigo tem é inveja dele. Acha-se extraordinário. Quando se farta daquela vida fútil, a cegueira começa a voltar e ele começa de novo a ver para além das futilidades, do glamour que tanto queria e do poder. Quer voltar para a mulher mas já não há maneira de reconstruir o que tinha com ela e o filme acaba com ele a ir-se embora, já meio cego, mas vendo de novo muito bem, triste e sozinho. O que faz um bilhete da lotaria, por assim dizer, às pessoas. O poder e o dinheiro cegam e corrompem. Um filme, muito pessimista.
O segundo filme, The Pianist, é um filme extraordinário de Roman Polanski (um sobrevivente do gueto de Varsóvia) baseado nas memórias do pianista e compositor polaco, Szpilman, que sobreviveu no gueto de Varsóvia depois da sua família toda ter sido deportada para os campos e de, já na plataforma de embarque, um amigo tê-lo reconhecido e tê-lo puxado para fora da multidão e mandado esconder. No filme, vamos acompanhando a degradação da vida em miséria: as pessoas do gueto ficarem sem comida, as crueldades bárbaras dos nazis, as execuções, as deportações.
Szpilman fez vários trabalhos e foi ajudado por amigos, porque ele era um músico conhecido entre os polacos. Quando o gueto já não tinha praticamente ninguém, viveu a esconder-se de ruína em ruína e a comer o que encontrava. A certa altura encontra uma casa que tem um bom esconderijo. A casa tem um piano que ele não pode tocar, naturalmente. A paixão dele pela música é tão grande que ele toca peças inteiras na sua cabeça e é esse "Verão Invencível" que lhe dá força para viver.
Mesmo no fim do filme, um dia em que procura uma maneira de abrir uma lata de comida que encontra, de repente vê um comandante nazi a olhar para ele. Foi descoberto, depois de tantos cuidados e sofrimento e vê-se na cara dele que tem a certeza que vai ser executado. O alemão pergunta-lhe o que faz ali e ele diz que se esconde. Pergunta-lhe pela profissão e ele diz que é pianista. Então o comandante nazi diz-lhe para tocar e ele toca um Nocturno de Chopin, um polaco. Toca como quem se despede da vida e recorda todas as emoções. E acaba de tocar e fica à espera que venha o tiro. Só que não. O alemão não o mata e começa a trazer-lhe comida regularmente para ele sobreviver.
Esta situação aconteceu mesmo e até se sabe quem era o alemão e que veio a morrer num campo de prisioneiros soviético porque Szpilman nunca soube o nome dele para o ajudar no fim da guerra. Só muitos anos depois se veio a saber quem era. É uma cena muito forte e extraordinariamente optimista. No meio daquele Inverno de morte que foi essa guerra e da vida impossível no gueto de Varsóvia, um judeu e um alemão têm uma cena de humanidade comum através da música. Reconhecem-se como humanos, como se a cegueira de um e o ódio/medo do outro tivessem desaparecido e tivessem reparado um no outro como seres humanos, por cima de toda a miséria moral da guerra, por detrás de todos os véus que cobrem os seres que as pessoas são. Uma visão muito comovente e extraordinariamente optimista da vida.
Este vídeo tem uma parte dessa cena entre eles.
Gosto tanto do filme "O pianista". Por essa humanidade que a música magistral permite entre eles. Mas também porque a sorte é caprichosa e não houve a recompensa que o pianista tanto desejava dar ao alemão que o salvou. Comoveu-me aquela corrida vã aos campos de prisioneiros. Não é verdade que o mundo seja justo. Pareceu-me, então, um filme realista. E também o hei-de rever.
ReplyDeleteDepois de ver o filme fui saber quem era esse comandante alemão que se chamava, Wilm Hosenfeld. Ele deixou um diário e centenas de cartas à mulher sobre o que se passava na Polónia. Ele salvou mais de 60 pessoas de serem executadas e/ou envidas para os campos e muitos destes testemunharam a seu favor junto dos soviéticos mas eles não quiseram saber, de maneira que mesmo que o pianista tivesse encontrado o seu salvador, talvez não tivesse feito diferença - a não ser para os próprios, claro.
DeleteO mundo não é justo, não. Mas tem momentos de justiça, mesmo no meio da mais negra loucura.
Bem haja por contar que afinal o filme não dourou a pílula, ele era mesmo um Homem. Por vezes julgo que, para muitos, a justiça é mero acaso, estilo o filme Match point. Mas é verdade que há gestos humanos que nos congraçam com a espécie.
DeleteWilhelm Hosenfeld
ReplyDeleteSim, fui ver quem ele era depois de ver o filme.
DeleteJá não me lembro bem desse filme. É acerca da sorte ser melhor que o labor ou algo assim.
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