Da ordem espontânea à espontaneidade ordenada
Jonathan Rauch
O liberalismo - a grande inovação social de governar por leis e não por governantes - tem estado sob ataque nos últimos anos. Isto terá sido um choque para os americanos em 1989. Nessa altura, Gorbachev era o líder da União Soviética, a Guerra Fria estava a chegar ao fim e Fukuyama tinha publicado, "O Fim da História?", que tomou o mundo de assalto.
Fukuyama não defendia que a história iria literalmente acabar ou que os grandes conflitos e desenvolvimentos transformadores deixariam de acontecer. Defendia, sim, que o liberalismo económico e político tinha derrotado todos os modelos rivais de organização social e que não se perspectivavam novos rivais.
"O triunfo do Ocidente, da ideia ocidental, é evidente... no esgotamento total de alternativas sistemáticas viáveis ao liberalismo ocidental".
O marxismo? Fracassou. Fascismo? Fracassou. Teocracia? Fracassou. Nenhum conseguiu produzir os milagres da organização social, as bênçãos da liberdade e o alívio da guerra que o liberalismo tinha proporcionado. Nenhum conseguiu mostrar um caminho plausível para o sucesso social, mesmo em teoria.
No entanto, sdesenvolvimentos ocorridos desde a queda do Muro de Berlim sugerem que o liberalismo triunfou apenas para ser emboscado por um desafio com o qual o pensamento liberal clássico não acompanhou.
Este ensaio apresenta a história da evolução do meu pensamento sobre o liberalismo ao longo dos últimos 30 anos. Ao trazer o meu próprio percurso intelectual para o primeiro plano, espero captar algo sobre o percurso do liberalismo desde a revolução de Reagan. Mais importante ainda, espero reconhecer um trágico lapso no meu pensamento sobre a democracia moderna, o capitalismo e a ciência - um lapso que não fui o único a cometer. Parti do princípio de que os sistemas sociais liberais são, em grande medida, auto-ordenados. Acontece que são tudo menos isso.
AMEAÇAS VINDAS DO INTERIOR
Em 1989, quando Fukuyama publicou o seu ensaio decisivo trabalhava como jornalista no National Journal, uma revista de política de elite em Washington, D.C., onde escrevia sobre o Congresso, a economia e (o meu favorito) a agricultura.
Vi imediatamente a verdade na tese de Fukuyama. E continuo a ver. Organizar uma economia global dinâmica - processando quantidades incalculáveis de informação, inventando inúmeras novas tecnologias e modelos de negócio, fornecendo grandes quantidades de bens - é algo que só o liberalismo económico pode conseguir.
No entanto, sdesenvolvimentos ocorridos desde a queda do Muro de Berlim sugerem que o liberalismo triunfou apenas para ser emboscado por um desafio com o qual o pensamento liberal clássico não acompanhou.
Este ensaio apresenta a história da evolução do meu pensamento sobre o liberalismo ao longo dos últimos 30 anos. Ao trazer o meu próprio percurso intelectual para o primeiro plano, espero captar algo sobre o percurso do liberalismo desde a revolução de Reagan. Mais importante ainda, espero reconhecer um trágico lapso no meu pensamento sobre a democracia moderna, o capitalismo e a ciência - um lapso que não fui o único a cometer. Parti do princípio de que os sistemas sociais liberais são, em grande medida, auto-ordenados. Acontece que são tudo menos isso.
AMEAÇAS VINDAS DO INTERIOR
Em 1989, quando Fukuyama publicou o seu ensaio decisivo trabalhava como jornalista no National Journal, uma revista de política de elite em Washington, D.C., onde escrevia sobre o Congresso, a economia e (o meu favorito) a agricultura.
Vi imediatamente a verdade na tese de Fukuyama. E continuo a ver. Organizar uma economia global dinâmica - processando quantidades incalculáveis de informação, inventando inúmeras novas tecnologias e modelos de negócio, fornecendo grandes quantidades de bens - é algo que só o liberalismo económico pode conseguir.
Outros sistemas são incapazes de reunir a informação necessária, motivar os empresários, organizar recursos, coordenar redes e muito mais. Independentemente dos seus defeitos, as democracias liberais apresentam virtudes semelhantes: eleições regulares, pesos e contrapesos, distribuição do processo de decisão, garantias dos direitos das minorias e incentivos ao compromisso permitem às democracias liberais governar sociedades grandes e diversificadas sem as oprimir ou cair no caos e na guerra. Nenhum outro sistema político pode fazer essa afirmação.
Também acabei por perceber que o duo dinâmico de Fukuyama - capitalismo e democracia - estava incompleto. Existia um terceiro ramo do liberalismo, um ramo ainda mais importante e bem sucedido do que os dois primeiros. Chamei-lhe "ciência liberal": a nossa rede social baseada em regras e despersonalizada para produzir conhecimento. Esta rede inclui as ciências exactas, claro, mas acrescentei o modificador "liberal" para alargar o conceito para além dessas disciplinas e incluir toda a comunidade que procura a verdade, incluindo as ciências sociais, as humanidades e até o jornalismo.
Tal como as suas irmãs políticas e económicas, a ciência liberal possui a capacidade de realizar feitos espantosos de organização social. Produz conhecimento a um ritmo prodigioso e acelerado, ao mesmo tempo que exclui o recurso à guerra e à coerção para impor a ideia de verdade de alguém a todos os outros. A ciência liberal conseguiu mais no domínio do conhecimento do que a democracia liberal e o capitalismo conseguiram nos domínios político e económico.
Mas, mesmo em 1989, havia nuvens negras. Uma delas surgiu sob a forma de novas doutrinas no meio académico. Os teóricos críticos defendiam que as ideias negativas e até as palavras negativas, são socialmente opressivas e emocionalmente prejudiciais.
Também acabei por perceber que o duo dinâmico de Fukuyama - capitalismo e democracia - estava incompleto. Existia um terceiro ramo do liberalismo, um ramo ainda mais importante e bem sucedido do que os dois primeiros. Chamei-lhe "ciência liberal": a nossa rede social baseada em regras e despersonalizada para produzir conhecimento. Esta rede inclui as ciências exactas, claro, mas acrescentei o modificador "liberal" para alargar o conceito para além dessas disciplinas e incluir toda a comunidade que procura a verdade, incluindo as ciências sociais, as humanidades e até o jornalismo.
Tal como as suas irmãs políticas e económicas, a ciência liberal possui a capacidade de realizar feitos espantosos de organização social. Produz conhecimento a um ritmo prodigioso e acelerado, ao mesmo tempo que exclui o recurso à guerra e à coerção para impor a ideia de verdade de alguém a todos os outros. A ciência liberal conseguiu mais no domínio do conhecimento do que a democracia liberal e o capitalismo conseguiram nos domínios político e económico.
Mas, mesmo em 1989, havia nuvens negras. Uma delas surgiu sob a forma de novas doutrinas no meio académico. Os teóricos críticos defendiam que as ideias negativas e até as palavras negativas, são socialmente opressivas e emocionalmente prejudiciais.
Os pós-modernistas defendiam que todas as afirmações de conhecimento, incluindo as científicas, são meras imposições de poder. Assim, os códigos do discurso podiam ser justificados como prevenção da "violência verbal" ou das "palavras que ferem"; a censura podia ser justificada como uma forma de nivelar o campo de ação das comunidades historicamente oprimidas.
Chamei a estas doutrinas académicas, 'ameaças "humanitária" e "igualitária" à liberdade de investigação'. O modelo humanitário transforma a ciência liberal numa violação dos direitos humanos, impedindo assim o progresso do conhecimento. Entretanto, o modelo igualitário insiste no favorecimento de reivindicações de queixas e queixosos supostamente marginalizados, o que exige alguém que regule o discurso e a investigação. Ora, isto abre a porta ao autoritarismo.
Preocupava-me também a democracia liberal. Fukuyama pode ter razão quanto ao fracasso dos desafios vindos de fora, mas o que dizer da podridão vinda de dentro?
Chamei a estas doutrinas académicas, 'ameaças "humanitária" e "igualitária" à liberdade de investigação'. O modelo humanitário transforma a ciência liberal numa violação dos direitos humanos, impedindo assim o progresso do conhecimento. Entretanto, o modelo igualitário insiste no favorecimento de reivindicações de queixas e queixosos supostamente marginalizados, o que exige alguém que regule o discurso e a investigação. Ora, isto abre a porta ao autoritarismo.
Preocupava-me também a democracia liberal. Fukuyama pode ter razão quanto ao fracasso dos desafios vindos de fora, mas o que dizer da podridão vinda de dentro?
Apercebi-me que os programas agrícolas concebidos nas décadas de 1930 e 1950 - incluindo subsídios para produtos como o mel, o mohair e a lã - estavam a funcionar bem, apesar de os seus fundamentos originais terem expirado há muito. O programa federal da lã, para dar um exemplo, foi lançado para garantir a disponibilidade de lã para os uniformes militares. Mas os militares tinham mudado para poliéster na década de 1960. Acha que o subsídio desapareceu?
Como um lobista agrícola de Washington me disse uma vez, com um sorriso triste, "não há nada mais permanente nesta cidade do que um programa temporário".
Fez-se-me luz. Deixei o meu emprego no National Journal para escrever Kindly Inquisitors, um livro publicado em 1993. Este trabalho mergulhou-me no pensamento de Karl Popper, o maior filósofo da ciência do século XX.
Como um lobista agrícola de Washington me disse uma vez, com um sorriso triste, "não há nada mais permanente nesta cidade do que um programa temporário".
Fez-se-me luz. Deixei o meu emprego no National Journal para escrever Kindly Inquisitors, um livro publicado em 1993. Este trabalho mergulhou-me no pensamento de Karl Popper, o maior filósofo da ciência do século XX.
Popper observou que o método científico não é um procedimento experimental nem um método lógico [ele quer dizer, determinista], mas um processo de tentativa e erro. O conhecimento pode avançar e acumular-se lançando hipóteses, submetendo-as a críticas, vendo quais sobrevivem, e depois lançando-as e testando-as mais um pouco. O método de tentativa e erro tem uma escala maciça e elimina a necessidade de controlo centralizado, permitindo que uma comunidade científica mundial preencha o que a filósofa Susan Haack compara a um jogo de palavras cruzadas transcendente no qual, todos os dias, milhões de investigadores acrescentam novas letras e alteram as antigas.
A tese de Popper era elegante e poderosa, e baseava-se no antepassado de todos os sistemas de tentativa e erro: a evolução biológica. A ciência, explicou Popper, é um ecossistema no qual o conhecimento evolui como uma propriedade emergente da competição e da falsificação. Tal como a evolução natural, a ciência é orgânica, direcional (embora nunca final) e espontaneamente auto-ordenada.
As democracias liberais também retiram a sua força de algo que se assemelha à evolução biológica. Tal como a evolução, baseiam-se na tentativa e erro. E, em vez de atingirem, ou tentarem atingir, estados fixos de perfeição - justiça final, governo final, políticas finais ou quaisquer outras finalidades imaginadas pelos revolucionários franceses e marxistas - elas auto-corrigem-se à medida que os políticos, os eleitores e as instituições se adaptam aos tempos de mudança, às coligações e aos desejos do público. A democracia americana pode ajustar-se imperfeitamente, mas evoluiu de forma muito mais eficaz do que sistemas autoritários escleróticos como a União Soviética.
Tudo isto era verdade. No entanto, refletir sobre a observação do lobista - que não há nada mais permanente do que um programa temporário - fez-me pensar: E se as tentativas e os erros dessem para o torto no governo?
Mancur Olson, da Universidade de Maryland, já tinha abordado uma questão semelhante no contexto da economia. Em dois grandes livros, The Logic of Collective Action e The Rise and Decline of Nations, argumentou que, sob ordens políticas estáveis, as economias ficam entupidas de cartéis, caçadores de rendas e subsídios. À medida que as "coligações distributivas" - ou grupos de pressão - ganham e defendem sinecuras e monopólios, as economias perdem dinamismo.
Apercebi-me de que o mesmo acontece com os governos democráticos. Como os benefícios dos programas governamentais estão concentrados mas os seus custos estão dispersos, os seus beneficiários têm muito mais incentivos para os defender do que qualquer outra pessoa para os abolir ou reformar. É por isso que os subsídios agrícolas quase nunca são revogados. À medida que os subsídios e programas antigos se acumulam, monopolizam os recursos e afastam as alternativas.
A tese de Popper era elegante e poderosa, e baseava-se no antepassado de todos os sistemas de tentativa e erro: a evolução biológica. A ciência, explicou Popper, é um ecossistema no qual o conhecimento evolui como uma propriedade emergente da competição e da falsificação. Tal como a evolução natural, a ciência é orgânica, direcional (embora nunca final) e espontaneamente auto-ordenada.
As democracias liberais também retiram a sua força de algo que se assemelha à evolução biológica. Tal como a evolução, baseiam-se na tentativa e erro. E, em vez de atingirem, ou tentarem atingir, estados fixos de perfeição - justiça final, governo final, políticas finais ou quaisquer outras finalidades imaginadas pelos revolucionários franceses e marxistas - elas auto-corrigem-se à medida que os políticos, os eleitores e as instituições se adaptam aos tempos de mudança, às coligações e aos desejos do público. A democracia americana pode ajustar-se imperfeitamente, mas evoluiu de forma muito mais eficaz do que sistemas autoritários escleróticos como a União Soviética.
Tudo isto era verdade. No entanto, refletir sobre a observação do lobista - que não há nada mais permanente do que um programa temporário - fez-me pensar: E se as tentativas e os erros dessem para o torto no governo?
Mancur Olson, da Universidade de Maryland, já tinha abordado uma questão semelhante no contexto da economia. Em dois grandes livros, The Logic of Collective Action e The Rise and Decline of Nations, argumentou que, sob ordens políticas estáveis, as economias ficam entupidas de cartéis, caçadores de rendas e subsídios. À medida que as "coligações distributivas" - ou grupos de pressão - ganham e defendem sinecuras e monopólios, as economias perdem dinamismo.
Apercebi-me de que o mesmo acontece com os governos democráticos. Como os benefícios dos programas governamentais estão concentrados mas os seus custos estão dispersos, os seus beneficiários têm muito mais incentivos para os defender do que qualquer outra pessoa para os abolir ou reformar. É por isso que os subsídios agrícolas quase nunca são revogados. À medida que os subsídios e programas antigos se acumulam, monopolizam os recursos e afastam as alternativas.
Preso às suas primeiras tentativas, o governo perde a capacidade de usar a tentativa e o erro para resolver problemas. Torna-se gradualmente numa coleção calcificada de programas e benefícios, na sua maioria obsoletos, que existem porque existem.
Assim, inspirado pelo pensamento evolutivo, publiquei Demosclerosis para além de Kindly Inquisitors. Ambos adoptaram modelos evolutivos. Ambos enfatizavam a centralidade da tentativa e erro no governo e na ciência. Ambos alertaram para as forças que poderiam corromper e calcificar o liberalismo ao desativar ou politizar o método de tentativa e erro. Ambos consideraram que os principais perigos para o liberalismo provêm de interesses e activistas que impedem a concorrência e a escolha.
Essas ideias continuam actuais. Então, o que é que me escapou?
DESINTERMEDIAÇÃO
Utilizo a palavra "liberalismo" para me referir não ao progressismo moderno de esquerda, mas ao liberalismo clássico de estilo iluminista. Esse liberalismo mais antigo adopta as seguintes doutrinas, entre outras: que as pessoas nascem livres e iguais, que as leis e as regras devem ser impessoais, que os direitos das minorias devem ser protegidos, que a coerção e a violência devem ser geralmente proibidas e que a liberdade de expressão e a tolerância são valores fundamentais e não instrumentais.
Assim, inspirado pelo pensamento evolutivo, publiquei Demosclerosis para além de Kindly Inquisitors. Ambos adoptaram modelos evolutivos. Ambos enfatizavam a centralidade da tentativa e erro no governo e na ciência. Ambos alertaram para as forças que poderiam corromper e calcificar o liberalismo ao desativar ou politizar o método de tentativa e erro. Ambos consideraram que os principais perigos para o liberalismo provêm de interesses e activistas que impedem a concorrência e a escolha.
Essas ideias continuam actuais. Então, o que é que me escapou?
DESINTERMEDIAÇÃO
Utilizo a palavra "liberalismo" para me referir não ao progressismo moderno de esquerda, mas ao liberalismo clássico de estilo iluminista. Esse liberalismo mais antigo adopta as seguintes doutrinas, entre outras: que as pessoas nascem livres e iguais, que as leis e as regras devem ser impessoais, que os direitos das minorias devem ser protegidos, que a coerção e a violência devem ser geralmente proibidas e que a liberdade de expressão e a tolerância são valores fundamentais e não instrumentais.
Este tipo de liberalismo é uma igreja ampla com muitos ramos. No entanto, na era moderna, surgiu um estilo predominante que se junta à bandeira daquilo a que se pode chamar "desintermediação".
A partir da década de 1960 (mas com raízes mais antigas, incluindo os escritos de Jean-Jacques Rousseau), os liberais ocidentais passaram a desconfiar e a condenar qualquer instituição ou autoridade que se interpusesse entre os indivíduos. Tudo o que restringisse ou mesmo orientasse a escolha individual tornou-se suspeito.
Esta desconfiança era compreensível e, em grande medida, justificada. Afinal de contas, durante décadas - na verdade, desde sempre - as instituições tinham imposto atitudes perniciosas como o racismo, o sexismo e a homofobia; os intermediários tinham-se envolvido em compadrios e negócios pessoais; a autoridade tinha abusado do poder e imposto a conformidade.
A partir da década de 1960 (mas com raízes mais antigas, incluindo os escritos de Jean-Jacques Rousseau), os liberais ocidentais passaram a desconfiar e a condenar qualquer instituição ou autoridade que se interpusesse entre os indivíduos. Tudo o que restringisse ou mesmo orientasse a escolha individual tornou-se suspeito.
Esta desconfiança era compreensível e, em grande medida, justificada. Afinal de contas, durante décadas - na verdade, desde sempre - as instituições tinham imposto atitudes perniciosas como o racismo, o sexismo e a homofobia; os intermediários tinham-se envolvido em compadrios e negócios pessoais; a autoridade tinha abusado do poder e imposto a conformidade.
Como refere Yuval Levin no seu importante livro A Time to Build, a nossa sociedade precisava de um impulso correctivo no sentido do individualismo e da libertação. No entanto, como Levin também observa, a correção foi longe demais. Os americanos desenvolveram uma hostilidade directa à intermediação e às instituições.
Instituições como as organizações partidárias, os sindicatos, os meios de comunicação social e as universidades foram tão fortes durante tanto tempo que se tornou fácil tomá-las como garantidas. Esquecemo-nos da razão da sua existência.
Instituições como as organizações partidárias, os sindicatos, os meios de comunicação social e as universidades foram tão fortes durante tanto tempo que se tornou fácil tomá-las como garantidas. Esquecemo-nos da razão da sua existência.
Será que precisávamos mesmo de partidos políticos? Afinal de contas, eram dinossauros - resquícios de uma era menos esclarecida em que os funcionários dos partidos seleccionavam os candidatos presidenciais em salas cheias de fumo.
Em 1968, Hubert Humphrey ganhou a nomeação presidencial democrata sem participar numa única primária. Os reformadores desiludidos acabaram com a função de controlo interno do partido, implementando um plebiscito direto. Tão óbvio era o princípio de que o povo deveria escolher os candidatos do partido que os republicanos apressaram-se a seguir o exemplo dos democratas. O que é que podia correr mal?
Para os democratas, o desastre foi imediato com a nomeação e a subsequente derrota do candidato presidencial George McGovern. Depois disso, os membros do partido recuperaram temporariamente algum do seu poder de controlo através do sistema informal de influência conhecido como "primárias invisíveis".
Para os democratas, o desastre foi imediato com a nomeação e a subsequente derrota do candidato presidencial George McGovern. Depois disso, os membros do partido recuperaram temporariamente algum do seu poder de controlo através do sistema informal de influência conhecido como "primárias invisíveis".
Porém, para os republicanos, as coisas demoraram mais tempo a desmoronar-se. Finalmente, em 2016, Donald Trump - um renegado demagógico que não é, em nenhum sentido significativo, um republicano - ultrapassou todas as barreiras para conquistar o partido e a presidência. Nesse mesmo ano, os democratas evitaram por pouco uma tomada de poder por um insurgente de extrema-esquerda que não é, em nenhum sentido significativo, um democrata.
Hoje em dia, ambos os partidos, mas especialmente o Partido Republicano, são em grande parte espectadores no processo de escolha dos candidatos do seu próprio partido - uma condição inédita noutras grandes democracias.
Hoje em dia, ambos os partidos, mas especialmente o Partido Republicano, são em grande parte espectadores no processo de escolha dos candidatos do seu próprio partido - uma condição inédita noutras grandes democracias.
Como muitas eleições primárias são decididas por um pequeno número de eleitores que tendem para o extremismo, o sistema eleva políticos que não só são menos experientes, menos capazes e menos responsáveis do que os escolhidos em salas cheias de fumo, como também são frequentemente menos representativos do eleitorado.
O papel dos partidos formais reduz-se a fazer "jawboning", a patrocinar direct mail, a organizar debates e a servir de veículo para os candidatos e facções que tomam o volante.
Um processo paralelo desenrolou-se no domínio epistémico. Na viragem do milénio, a revolução digital provocou uma explosão de desintermediação que, pelo menos inicialmente, parecia ser totalmente positiva. Libertos dos guardiões dos grandes media, os cidadãos comuns teriam toda a informação do mundo na ponta dos dedos. Toda a gente poderia encontrar-se com toda a gente em conversações peer-to-peer sem filtros e sem restrições. Mil flores desabrochariam num Éden de interconexão.
É claro que, em vez de mil flores, ficámos com uma mão-cheia de gigantes da Internet com um domínio de mercado superior ao que as redes de televisão alguma vez tiveram.
Um processo paralelo desenrolou-se no domínio epistémico. Na viragem do milénio, a revolução digital provocou uma explosão de desintermediação que, pelo menos inicialmente, parecia ser totalmente positiva. Libertos dos guardiões dos grandes media, os cidadãos comuns teriam toda a informação do mundo na ponta dos dedos. Toda a gente poderia encontrar-se com toda a gente em conversações peer-to-peer sem filtros e sem restrições. Mil flores desabrochariam num Éden de interconexão.
É claro que, em vez de mil flores, ficámos com uma mão-cheia de gigantes da Internet com um domínio de mercado superior ao que as redes de televisão alguma vez tiveram.
Em vez de uma cultura de crítica respeitosa e de argumentação estruturada nas redes sociais, surgiram a indignação performativa, o cancelamento e a trollagem; surgiram bots e algoritmos ajustados para a polarização e a radicalização.
Tornou-se impossível ter a certeza de que uma entidade com a qual estávamos a interagir era sequer humana. A arena digital não era um mercado em que as melhores ideias superavam a concorrência de forma fiável; nem sequer era epistemicamente neutra. Em vez disso, o seu modelo baseado em anúncios favorecia ativamente a desinformação e o tribalismo, porque a desinformação e o tribalismo atraem os olhares, e os olhares fazem dinheiro.
Algumas pessoas dizem que isso é ótimo: O consumidor sabe melhor o que o consumidor quer. Numa era de consumismo político e epistémico, a intermediação e o institucionalismo atraíram a indiferença, o cepticismo e a hostilidade total dos três principais movimentos políticos e culturais da América.
Algumas pessoas dizem que isso é ótimo: O consumidor sabe melhor o que o consumidor quer. Numa era de consumismo político e epistémico, a intermediação e o institucionalismo atraíram a indiferença, o cepticismo e a hostilidade total dos três principais movimentos políticos e culturais da América.
Os progressistas viam os intermediários como obstáculos corruptos à participação, à auto-expressão e à emancipação. Os conservadores rejeitavam os intermediários como cativos de interesses especiais e da esquerda cultural. Os libertários condenavam os intermediários como cartéis que distorciam a concorrência e restringiam a escolha.
E assim, de muitas maneiras e por muitas razões, a América começou a desintermediar-se sempre que possível. As instituições mediadoras, como os partidos, os principais meios de comunicação social, os sindicatos e os grupos cívicos, surgiram danificadas ou disfuncionais. Até a religião se tornou consumista - um paraíso de compras.
Algumas mudanças eram necessárias. Os americanos fizeram uma desintermediação valiosa. Mas, no final, esquecemo-nos das razões pelas quais precisávamos de intermediação.
Façamos então a pergunta: Porquê intermediar? Porque é que o consumismo, a concorrência e a escolha não são suficientes?
Numa palavra, a resposta é: os humanos.
AS TENTAÇÕES DA SOCIOPATIA
Platão avisa na República que uma pessoa amoral com poder e sem sentido de responsabilidade usará esse poder para oprimir os outros.
E assim, de muitas maneiras e por muitas razões, a América começou a desintermediar-se sempre que possível. As instituições mediadoras, como os partidos, os principais meios de comunicação social, os sindicatos e os grupos cívicos, surgiram danificadas ou disfuncionais. Até a religião se tornou consumista - um paraíso de compras.
Algumas mudanças eram necessárias. Os americanos fizeram uma desintermediação valiosa. Mas, no final, esquecemo-nos das razões pelas quais precisávamos de intermediação.
Façamos então a pergunta: Porquê intermediar? Porque é que o consumismo, a concorrência e a escolha não são suficientes?
Numa palavra, a resposta é: os humanos.
AS TENTAÇÕES DA SOCIOPATIA
Platão avisa na República que uma pessoa amoral com poder e sem sentido de responsabilidade usará esse poder para oprimir os outros.
Thomas Hobbes argumenta no Leviatã que, num ambiente desestruturado e sem restrições, os seres humanos guerreiam uns contra os outros, tornando a vida "desagradável, bruta e curta".
Adam Smith compreendeu que a ganância e o interesse próprio são motivadores fundamentais (embora não sejam os únicos). Os fundadores da América sabiam que a virtude cívica não pode ser tomada como garantida e que os impulsos populares devem ser arrefecidos, canalizados e contidos.
Todos esses luminares compreenderam que as tentações da sociopatia - do comportamento auto-interessado e antis-social se escondem dentro de todos nós. Compreenderam que o tribalismo, a dominação e a violência resultam de impulsos humanos profundamente enraizados. Compreenderam que a cognição é susceptível a todo o tipo de preconceitos e enganos, contra os quais a inteligência e as boas intenções não oferecem qualquer garantia.
Guiados por estas ideias, estes pensadores procuraram as suas próprias versões da mesma tarefa: criar ambientes sociais que dissuadissem a sociopatia, incentivassem a cooperação e obrigassem as pessoas a verificar as suas crenças e preconceitos em relação aos dos outros. Parafraseando o psicólogo social Jonathan Haidt, as democracias liberais só funcionam se os contextos sociais e legais forem correctos - e esses contextos são tão numerosos quanto complicados.
Quem é que faz o trabalho de calibrar e manter essas configurações? Todos nós, até certo ponto - mas especialmente as instituições e os intermediários.
Todos esses luminares compreenderam que as tentações da sociopatia - do comportamento auto-interessado e antis-social se escondem dentro de todos nós. Compreenderam que o tribalismo, a dominação e a violência resultam de impulsos humanos profundamente enraizados. Compreenderam que a cognição é susceptível a todo o tipo de preconceitos e enganos, contra os quais a inteligência e as boas intenções não oferecem qualquer garantia.
Guiados por estas ideias, estes pensadores procuraram as suas próprias versões da mesma tarefa: criar ambientes sociais que dissuadissem a sociopatia, incentivassem a cooperação e obrigassem as pessoas a verificar as suas crenças e preconceitos em relação aos dos outros. Parafraseando o psicólogo social Jonathan Haidt, as democracias liberais só funcionam se os contextos sociais e legais forem correctos - e esses contextos são tão numerosos quanto complicados.
Quem é que faz o trabalho de calibrar e manter essas configurações? Todos nós, até certo ponto - mas especialmente as instituições e os intermediários.
Consideremos o trabalho que as organizações partidárias fazem, quando funcionam como pretendido. Bloqueiam a sociopatia, por exemplo, impedindo as candidaturas presidenciais de renegados - como fizeram com Henry Ford na década de 1920 e George Wallace em 1976. Organizam o esforço coletivo através da mediação de compromissos e da construção de coligações entre diversos interesses e facções - algo que os eleitores individuais não podem fazer na cabina de voto. Ensinam valores, aculturando os jovens e os imigrantes nas formas da nossa política (um escritor caracteriza as velhas máquinas partidárias como escolas de política). Recrutam e treinam políticos competentes, procuram candidatos promissores, abrem-lhes caminhos e promovem-nos através de uma sucessão de cargos.
Contrariamente à crença popular, as organizações partidárias não impediam os indivíduos, mas antes os realizavam. Organizavam as máquinas e as redes através das quais os partidários de base podiam participar entre as eleições. Mesmo com dores nos joelhos, o meu tio participou religiosamente nas reuniões do seu clube democrata local até à sua velhice. Embora fosse apenas um operário reformado, um membro do Congresso e vários dignitários do partido da cidade de Nova Iorque foram ao seu funeral.
É claro que as máquinas partidárias de outrora podiam ser abusivas. Precisavam de ser reformadas.
Atualmente, esses partidos políticos enérgicos e poderosos sobrevivem apenas nos manuais de história. Para a maioria das pessoas, a participação na política resume-se a votar uma vez de dois em dois anos e talvez a fazer um donativo.
Os partidos, entretanto, funcionam sobretudo como marcas, não como instituições. Algumas pessoas podem oferecer-se como voluntárias para um candidato ou envolver-se numa causa partidária, mas a grande maioria só se liga à política no dia das eleições, se é que o faz. Este é um tipo de vida política muito limitado.
O Twitter não substitui o contacto presencial com os outros através de intermediários humanos. A intermediação algorítmica, através da qual participamos clicando em ligações seleccionadas por software, é lamentavelmente insuficiente.
Pensamos que os intermediários não nos dão poder. Mas se operamos como indivíduos consumistas numa sociedade burocratizada, sem intermediários saudáveis como partidos, sindicatos e igrejas, o que podemos fazer exatamente para influenciar a sociedade em geral? Ao que parece, não muito. E as pessoas não estão satisfeitas com essa resposta.
Nos anos 90, compreendia que o liberalismo depende de regras complicadas, mas supunha que, uma vez enraizadas, essas regras se manteriam intactas se não houvesse uma catástrofe. Na viragem do século, tornou-se claro que não era esse o caso.
Em 2000, Robert Putnam publicou o seu influente livro Bowling Alone. Verificou um declínio surpreendente e acentuado em muitas formas de participação presencial.
O Twitter não substitui o contacto presencial com os outros através de intermediários humanos. A intermediação algorítmica, através da qual participamos clicando em ligações seleccionadas por software, é lamentavelmente insuficiente.
Pensamos que os intermediários não nos dão poder. Mas se operamos como indivíduos consumistas numa sociedade burocratizada, sem intermediários saudáveis como partidos, sindicatos e igrejas, o que podemos fazer exatamente para influenciar a sociedade em geral? Ao que parece, não muito. E as pessoas não estão satisfeitas com essa resposta.
Nos anos 90, compreendia que o liberalismo depende de regras complicadas, mas supunha que, uma vez enraizadas, essas regras se manteriam intactas se não houvesse uma catástrofe. Na viragem do século, tornou-se claro que não era esse o caso.
Em 2000, Robert Putnam publicou o seu influente livro Bowling Alone. Verificou um declínio surpreendente e acentuado em muitas formas de participação presencial.
A filiação e o voluntariado tinham diminuído em tudo, desde grupos religiosos e sindicatos a associações de pais e professores e organizações fraternas. Outros estudos documentaram o declínio do capital social - as interconexões baseadas na confiança que nos protegem e definem. O capital social não estava apenas a diminuir, mas a bifurcar-se.
À medida que os intermediários, como os partidos, definhavam, os profissionais com diplomas de licenciatura acumulavam os seus próprios recursos sociais deixando para trás os do ensino secundário da classe trabalhadora, que enfrentavam escolas desintegradas em bairros em declínio.
Ao mesmo tempo, as sondagens testemunhavam a deterioração da confiança do público nas instituições. O próprio Fukuyama, no seu livro de 1996 "Trust" e noutros escritos, notou que os Estados Unidos, ou pelo menos uma parte significativa do país, estava a começar a parecer-se menos com uma sociedade de alta confiança e baixa fricção, semelhante à Escandinávia, e mais com as sociedades de baixa confiança e alta fricção do mundo em desenvolvimento.
Em 2003, surgiu uma chamada de atenção vinda de um sector inesperado. Todos nos lembramos do que era suposto acontecer quando os Estados Unidos invadiram o Iraque. Saddam Hussein tinha suprimido a sociedade civil, mas o Iraque era um país de rendimento médio com uma população instruída, uma cultura largamente secularizada e uma burocracia bem desenvolvida. Sem o pé de Hussein a fazer pressão no pescoço, a sociedade civil iraquiana iria ganhar novo fôlego. Haveria contratempos, mas o Iraque parecia ser uma plataforma prometedora para a transformação democrática - com o empurrãozinho amigável da América, a libertação floresceria em liberalismo. Em vez disso, o caos hobbesiano consumiu o Iraque do pós-guerra.
Noutros lugares, a esperançosa corrida da democratização nos anos 90 deu lugar ao que Larry Diamond chama de "recessão democrática". Esta desilusão recordou a forma como a euforia dos primeiros anos da presidência de Boris Ieltsin - quando a Rússia parecia destinada a juntar-se à comunidade das nações democráticas - foi seguida pelo autoritarismo, corrupção e cinismo do regime de Vladimir Putin.
Em 2016, assistimos a um choque final devastador. O que restava da organização do Partido Republicano desmoronou-se quando um demagogo sociopata tomou o controlo, primeiro do partido e depois da presidência. Pondo de lado as normas à esquerda e à direita, lançou uma campanha sistemática de desinformação ao estilo russo contra o seu próprio país, subverteu a administração da justiça e desrespeitou o seu juramento. Se tivesse acabado por levar a sua avante, não teríamos tido uma transição democrática do poder. Por outras palavras, teríamos perdido a nossa democracia. No entanto, em vez de ser condenado pelos republicanos como um vilão, manteve o seu controlo sobre o partido e a sua base.
Assim começou uma nova viagem para mim. Eu tinha tomado as instituições e normas liberais como algo tão garantido que, de certa forma, tinha deixado de as ver - até elas falharem. Tinha passado a considerá-las como condições naturais: o liberalismo floresceria simplesmente por ser permitido. Os desenvolvimentos da década de 2000 convenceram-me de que tinha cometido um erro fundamental. Era um erro que James Madison não teria cometido.
O REFORÇO DO LIBERALISMO
Assim castigado, esforcei-me por ver, compreender e defender as instituições e normas sociais, por vezes submersas e muitas vezes depreciadas, em que assenta o liberalismo.
Uma das vertentes desse trabalho é o realismo político, que sustenta que a democracia depende das máquinas e dos partidos políticos - até mesmo de funcionários e carreiristas - para fazer aquilo a que James Q. Wilson chamou "montar o poder" no governo formal.
Ao mesmo tempo, as sondagens testemunhavam a deterioração da confiança do público nas instituições. O próprio Fukuyama, no seu livro de 1996 "Trust" e noutros escritos, notou que os Estados Unidos, ou pelo menos uma parte significativa do país, estava a começar a parecer-se menos com uma sociedade de alta confiança e baixa fricção, semelhante à Escandinávia, e mais com as sociedades de baixa confiança e alta fricção do mundo em desenvolvimento.
Em 2003, surgiu uma chamada de atenção vinda de um sector inesperado. Todos nos lembramos do que era suposto acontecer quando os Estados Unidos invadiram o Iraque. Saddam Hussein tinha suprimido a sociedade civil, mas o Iraque era um país de rendimento médio com uma população instruída, uma cultura largamente secularizada e uma burocracia bem desenvolvida. Sem o pé de Hussein a fazer pressão no pescoço, a sociedade civil iraquiana iria ganhar novo fôlego. Haveria contratempos, mas o Iraque parecia ser uma plataforma prometedora para a transformação democrática - com o empurrãozinho amigável da América, a libertação floresceria em liberalismo. Em vez disso, o caos hobbesiano consumiu o Iraque do pós-guerra.
Noutros lugares, a esperançosa corrida da democratização nos anos 90 deu lugar ao que Larry Diamond chama de "recessão democrática". Esta desilusão recordou a forma como a euforia dos primeiros anos da presidência de Boris Ieltsin - quando a Rússia parecia destinada a juntar-se à comunidade das nações democráticas - foi seguida pelo autoritarismo, corrupção e cinismo do regime de Vladimir Putin.
Em 2016, assistimos a um choque final devastador. O que restava da organização do Partido Republicano desmoronou-se quando um demagogo sociopata tomou o controlo, primeiro do partido e depois da presidência. Pondo de lado as normas à esquerda e à direita, lançou uma campanha sistemática de desinformação ao estilo russo contra o seu próprio país, subverteu a administração da justiça e desrespeitou o seu juramento. Se tivesse acabado por levar a sua avante, não teríamos tido uma transição democrática do poder. Por outras palavras, teríamos perdido a nossa democracia. No entanto, em vez de ser condenado pelos republicanos como um vilão, manteve o seu controlo sobre o partido e a sua base.
Assim começou uma nova viagem para mim. Eu tinha tomado as instituições e normas liberais como algo tão garantido que, de certa forma, tinha deixado de as ver - até elas falharem. Tinha passado a considerá-las como condições naturais: o liberalismo floresceria simplesmente por ser permitido. Os desenvolvimentos da década de 2000 convenceram-me de que tinha cometido um erro fundamental. Era um erro que James Madison não teria cometido.
O REFORÇO DO LIBERALISMO
Assim castigado, esforcei-me por ver, compreender e defender as instituições e normas sociais, por vezes submersas e muitas vezes depreciadas, em que assenta o liberalismo.
Uma das vertentes desse trabalho é o realismo político, que sustenta que a democracia depende das máquinas e dos partidos políticos - até mesmo de funcionários e carreiristas - para fazer aquilo a que James Q. Wilson chamou "montar o poder" no governo formal.
Gerações de reformadores tinham prejudicado os intermediários políticos em favor de primárias directas, pequenos doadores e reuniões abertas. O resultado foi exatamente o que tinham previsto os pensadores políticos realistas, de Niccolò Machiavelli a Daniel Patrick Moynihan, Edward Banfield, Nelson Polsby e o próprio Wilson: o caos.
Os leitores do meu trabalho sobre o realismo político encontrarão um estado de espírito estranho à comunidade da reforma política, mas fortemente representado entre os cientistas políticos académicos. Esta perspetiva encara com cepticismo as actuais receitas de reforma política: cada vez mais participação direta, cada vez mais escolha individual e cada vez mais transparência; em suma, cada vez menos intermediação.
Algumas dessas receitas podem ser boas ideias nalguns contextos, outras não, mas nenhuma delas pode substituir a política. Nenhuma delas pode substituir as organizações políticas e os profissionais que conseguem equilibrar interesses concorrentes, mediar compromissos complexos, organizar coligações, coordenar mensagens, recrutar candidatos competentes, recompensar os jogadores de equipa, marginalizar os renegados e planear o futuro.
Os leitores do meu trabalho sobre o realismo político encontrarão um estado de espírito estranho à comunidade da reforma política, mas fortemente representado entre os cientistas políticos académicos. Esta perspetiva encara com cepticismo as actuais receitas de reforma política: cada vez mais participação direta, cada vez mais escolha individual e cada vez mais transparência; em suma, cada vez menos intermediação.
Algumas dessas receitas podem ser boas ideias nalguns contextos, outras não, mas nenhuma delas pode substituir a política. Nenhuma delas pode substituir as organizações políticas e os profissionais que conseguem equilibrar interesses concorrentes, mediar compromissos complexos, organizar coligações, coordenar mensagens, recrutar candidatos competentes, recompensar os jogadores de equipa, marginalizar os renegados e planear o futuro.
De facto, nada funcionará bem na nossa política se não restabelecermos o sistema híbrido dos fundadores, em que o público e os profissionais trabalham em conjunto, cada um fazendo o que o outro não pode fazer. Fazer uma reforma centrada exclusivamente na escolha e na participação é o mesmo que aumentar o número de voos e despedir todos os controladores aéreos.
O meu livro The Constitution of Knowledge, baseado num ensaio publicado nestas páginas, incorpora uma segunda vertente do meu trabalho de reintermediação. Não repudia Kindly Inquisitors, mas acrescenta uma peça crucial do puzzle que o livro anterior não viu. Seguindo John Stuart Mill e Popper, os Kindly Inquisitors assumiram que o conhecimento emerge organicamente de um processo de troca crítica, tal como as espécies emergem organicamente da competição evolutiva - tudo verdadeiro e bom. Mas Mill e Popper não tinham um interesse particular em instituições. Em vez disso, imaginavam algo como uma rede de indivíduos que trocam ideias entre si: eu apresento uma ideia, tu desmascara-la, outra pessoa dá o seu contributo, e assim por diante.
Sabemos hoje, no entanto, que o simples facto de lançar as pessoas numa contestação desorganizada não produz críticas e debates construtivos, mas sim raiva e indignação, sectarismo e cisma, ataques ad hominem e lealdades tribais em guerra. O mundo da troca interpessoal não estruturada parece-se muito com o Twitter - uma versão epistémica do estado de natureza de Hobbes.
A magia da ciência liberal não reside apenas na liberdade de investigação e na conversação pública aberta, mas na estrutura particular imposta à conversação e aceite pelos participantes. Da mesma forma que a Constituição dos Estados Unidos impõe protocolos e disciplinas institucionais à tomada de decisões democráticas, a ciência liberal impõe uma série de protecções semelhantes à procura da verdade. Coletivamente, essas instituições, protocolos e disciplinas compõem a "Constituição do Conhecimento".
O meu último livro procura tornar visível essa constituição implícita e defendê-la sem desculpas. É um primeiro passo para aquilo a que chamo "epistemologia madisoniana", que defende que a liberdade de expressão, embora necessária, não é suficiente.
O meu livro The Constitution of Knowledge, baseado num ensaio publicado nestas páginas, incorpora uma segunda vertente do meu trabalho de reintermediação. Não repudia Kindly Inquisitors, mas acrescenta uma peça crucial do puzzle que o livro anterior não viu. Seguindo John Stuart Mill e Popper, os Kindly Inquisitors assumiram que o conhecimento emerge organicamente de um processo de troca crítica, tal como as espécies emergem organicamente da competição evolutiva - tudo verdadeiro e bom. Mas Mill e Popper não tinham um interesse particular em instituições. Em vez disso, imaginavam algo como uma rede de indivíduos que trocam ideias entre si: eu apresento uma ideia, tu desmascara-la, outra pessoa dá o seu contributo, e assim por diante.
Sabemos hoje, no entanto, que o simples facto de lançar as pessoas numa contestação desorganizada não produz críticas e debates construtivos, mas sim raiva e indignação, sectarismo e cisma, ataques ad hominem e lealdades tribais em guerra. O mundo da troca interpessoal não estruturada parece-se muito com o Twitter - uma versão epistémica do estado de natureza de Hobbes.
A magia da ciência liberal não reside apenas na liberdade de investigação e na conversação pública aberta, mas na estrutura particular imposta à conversação e aceite pelos participantes. Da mesma forma que a Constituição dos Estados Unidos impõe protocolos e disciplinas institucionais à tomada de decisões democráticas, a ciência liberal impõe uma série de protecções semelhantes à procura da verdade. Coletivamente, essas instituições, protocolos e disciplinas compõem a "Constituição do Conhecimento".
O meu último livro procura tornar visível essa constituição implícita e defendê-la sem desculpas. É um primeiro passo para aquilo a que chamo "epistemologia madisoniana", que defende que a liberdade de expressão, embora necessária, não é suficiente.
O conhecimento objetivo - o maior produto da humanidade - não emerge automaticamente ou organicamente da conversa pública. É antes o produto de um regime construído de regras e instituições interligadas: regras e instituições criadas, como a Constituição de Madison, para canalizar o desacordo para a cooperação, substituir a coerção pelo compromisso, trocar a violência pela persuasão e proteger contra a tirania e o caos.
INCLINAR-SE PARA MADISON
A minha própria descoberta, por vezes dolorosa, dos limites da auto-organização liberal reflecte a questão mais profunda do nosso regime: Poderemos ultrapassar a dependência excessiva da liberdade, da escolha e da concorrência - por muito importantes que sejam - para redescobrir e reconstruir os intermediários institucionais e as regras que estruturam a vida liberal? Poderemos assim assegurar a viabilidade do liberalismo face a desafios novos e imprevistos?
Por "nós", neste caso, refiro-me aos liberais clássicos. Eles deram contribuições brilhantes para a nossa compreensão e apreciação da liberdade. Mas, em parte devido a isso, estão a ficar para trás quando se trata de compreender e explicar o valor da mediação institucional. Com demasiada frequência, vêem a liberdade e a intermediação como mutuamente antagónicas. De facto, o oposto é verdadeiro.
O meu apelo aos liberais clássicos é o seguinte: Pensem menos na ordem espontânea e mais na espontaneidade ordenada. Pensem nas instituições menos como constrangimentos para os indivíduos e mais como um poder para eles. Pensem nos políticos de carreira menos como obstáculos à tomada de decisões democráticas e mais como parceiros no complexo processo de governação. Pensar menos em desmantelar os intermediários e mais em reconstruí-los.
Nestes e noutros aspectos, devemos afastar-nos de Mill e aproximar-nos de Madison. Ambos são pedras de toque liberais, mas nenhum é suficiente por si só. Precisam um do outro - e nós, liberais, precisamos de ambos.
INCLINAR-SE PARA MADISON
A minha própria descoberta, por vezes dolorosa, dos limites da auto-organização liberal reflecte a questão mais profunda do nosso regime: Poderemos ultrapassar a dependência excessiva da liberdade, da escolha e da concorrência - por muito importantes que sejam - para redescobrir e reconstruir os intermediários institucionais e as regras que estruturam a vida liberal? Poderemos assim assegurar a viabilidade do liberalismo face a desafios novos e imprevistos?
Por "nós", neste caso, refiro-me aos liberais clássicos. Eles deram contribuições brilhantes para a nossa compreensão e apreciação da liberdade. Mas, em parte devido a isso, estão a ficar para trás quando se trata de compreender e explicar o valor da mediação institucional. Com demasiada frequência, vêem a liberdade e a intermediação como mutuamente antagónicas. De facto, o oposto é verdadeiro.
O meu apelo aos liberais clássicos é o seguinte: Pensem menos na ordem espontânea e mais na espontaneidade ordenada. Pensem nas instituições menos como constrangimentos para os indivíduos e mais como um poder para eles. Pensem nos políticos de carreira menos como obstáculos à tomada de decisões democráticas e mais como parceiros no complexo processo de governação. Pensar menos em desmantelar os intermediários e mais em reconstruí-los.
Nestes e noutros aspectos, devemos afastar-nos de Mill e aproximar-nos de Madison. Ambos são pedras de toque liberais, mas nenhum é suficiente por si só. Precisam um do outro - e nós, liberais, precisamos de ambos.
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