June 05, 2023

O Reitor censor ou a censura como assédio



O Reitor censor ou a censura como assédio


Carlos A. M. Gouveia, Catarina Gaspar, Graça Moreira, Maria João Brilhante, Nuno Pinhão, Rui Ferreira, Vítor Maló Machado05 Junho 2023

Nas instituições de ensino superior (IES) os assédios são endémicos. Referimo-nos às duas variantes mais comuns de acosso: a sexual e a moral.

É fácil de entender que a maioria dos porta-vozes e indivíduos que ocupam o topo da hierarquia nestas instituições, seja nos departamentos, nas faculdades ou escolas, nos institutos, ou nas reitorias, se esforce diariamente por desvalorizar o fenómeno, ou, pelo menos, por torná-lo invisível.

Os assédios são cometidos de cima para baixo, por quem detém poder sobre quem não o detém ou não sabe o poder que tem, e são uma ferramenta para manter o domínio, formar clãs dentro das instituições, alimentar cumplicidades, dependências e tráfico de favores e, assim, regular a ascensão hierárquica. É por isto que numa estrutura de média ou grande dimensão encontraremos a maioria dos assediadores nas camadas médias ou de topo da hierarquia. Os poucos que iniciam as suas atividades junto à base, ficam ali pouco tempo. Ou ascendem depressa ou são neutralizados depressa.

Mas existem mais motivos para as hierarquias das IES estarem sempre alertas e prontas para apagar focos de visibilidade dos assédios. Escolas que sejam vistas como ninhos de assédio perdem alunos, propinas e, modernamente, acesso aos financiamentos europeus. Os assédios, para continuarem a ser uteis à dinâmica manutenção da estrutura hierárquica, têm de ser silenciosos, invisíveis e não detetados. E as instituições gastam parte das suas energias e inteligência a preservar a surdina protetora.

Aqui o assédio moral exerce-se maioritariamente por professores de categoria profissional alta sobre os de categoria mais baixa, com contratos a prazo ou sobre os bolseiros e alunos sob sua supervisão. E por funcionários de categoria dirigente sobre os de categoria inferior e os tarefeiros. 

O assédio sexual, nas escolas, pratica-se quase exclusivamente por homens sobre mulheres, quase sempre professores ou investigadores sobre alunas ou por dirigentes sobre funcionárias. É facilitado por séculos de inculcamento social da ideia de que é difícil traçar a fronteira entre gostar, oferecer cuidado, elogiar e abusar. E pela ideia de que o corpo do outro é moeda e o das mulheres, em particular, só existe para servir os homens.

A surdina protetora tem permitido que pouco se saiba, com rigor e primor científico, sobre quem são e como atuam os assediadores dentro das Universidades, sobre o perfil das suas vítimas, as técnicas utilizadas, e sobre quais são as consequências de curto e longo alcance destes fenómenos. 

Nem mesmo uma quantificação elementar, estandardizada, escola a escola, conseguiu ser feita até hoje. Os projetos de investigação que se propõem fazer um levantamento dos assédios dentro da academia são frequentemente afogados à nascença pela máquina de preservação da surdina da própria academia. Fala-se em voz baixa pelos corredores, mas a luz da ciência não consegue ali chegar. Vive-se uma cultura de medo.
No final do ano passado, uma equipa de docentes e investigadores da Universidade de Lisboa preparou um projeto de investigação para fazer o retrato do assédio moral entre os professores e investigadores da Universidade.

O passa-palavra assegurou a divulgação do estudo e durante cerca de um mês foram recolhidas muitas dezenas de respostas. A campanha de recolha deveria estender-se durante quatro meses consecutivos. Mas houve uma surpresa: em final de fevereiro de 2023, os investigadores apresentaram resultados preliminares, com os dados dos primeiros 30 dias de respostas, numa sessão pública sobre assédio na Universidade de Lisboa. A sessão gozou mesmo do acolhimento e divulgação pela Reitoria. Foi no edifício Caleidoscópio, da Universidade de Lisboa. Houve alguns apontamentos jornalísticos na TV e na imprensa escrita sobre os dados então apresentados.

Cerca de uma semana depois, o Conselho de Coordenação Universitária da ULisboa reuniu, tendo sido muito agitado pelo eco dos dados. Na sequência de tal concílio, o Magnífico Reitor enviou uma circular escrita a todos os presidentes e diretores de Faculdades e Institutos, instruindo-os para aconselharem, com urgência e veemência, todos os professores e investigadores das suas unidades orgânicas a "se absterem" de responder ao questionário em questão. 
A circular foi recheada com expressões amedrontadoras e denegridoras, acusando o estudo (e os seus autores) de falta de ética, honestidade científica e legalidade no processamento dos dados. Foi ainda afirmado que a Reitoria já se encontrava a averiguar a "legalidade deste processo" cuja "validade científica não está minimamente demonstrada". 
A circular satisfaz os cânones da propaganda amedrontadora, ao pretender desenhar a existência de um delinquente transgressor e mal intencionado escondido trás do estudo "em violação clara das normas das Escolas para este tipo de estudos" e que nem "refere o fim a que se destina nem a política de dados em que se baseia".

A maioria dos presidentes ou diretores de Faculdade apressou-se a instruir, por escrito, o seu pessoal a não responder ao questionário. Alguns presidentes, mais lestos com a escrita e mais empenhados, transformaram a "instrução" do Senhor Reitor em "ordem" e até alentaram o fantasma, como o presidente do Instituto Superior Técnico, de que o site de recolha de respostas seria um estratagema de "phishing informático" cuja visita seria de evitar a todo o custo.

Executando uma manobra de estrangulamento de um projeto que pretende retratar uma pequena componente do assédio dentro da sua Universidade, o Reitor da ULisboa assediou toda a comunidade de docentes e investigadores. 
Usou a estrutura de poder instalada na Universidade para aplicar o abafador e sufocar a campanha de recolha de respostas. Numa estrutura de forte pendor hierárquico, em que as práticas de assédio fazem parte do quotidiano, o Reitor atuou como Censor-Mor. E fê-lo com o apoio dos seus diretores e presidentes de Faculdades e Institutos e a conivência (por obstinado silêncio) do Conselho Geral da Universidade, que o elegeu. 
O senhor Reitor até pode achar que não há mais assédio na Universidade do que na sociedade em geral, sendo aquela o espelho desta. Mas não é bem assim, na Universidade, o assédio está naturalizado, isto é, é visto como fazendo parte da natureza intrínseca da realidade. Tão naturalizado que o senhor Reitor, ele próprio, não se terá apercebido da dimensão e da gravidade da ação que praticou, por um lado, ao proibir os docentes e investigadores da ULisboa do exercício da sua livre escolha e, por outro, ao pronunciar-se sobre o projeto de investigação nos termos prejudiciais com que se pronunciou.

Com censura e falta de sentido crítico se constrói uma academia de medo e sem capacidade de reflexão sobre os males que a assolam.

Carlos A. M. Gouveia, FL, ULisboa
Catarina Gaspar, FL, ULisboa
Graça Moreira, FA, ULisboa
Maria João Brilhante, FL, ULisboa
Nuno Pinhão, IST, ULisboa
Rui Ferreira, IST, ULisboa
Vítor Maló Machado, IST, Lisboa

8 comments:

  1. É uma vergonha, um perpetuar de práticas de décadas, ou mesmo séculos, e ninguém põe cobro a isto. Pelo contrário, encobrem, o que se transforma numa forma de apoio ao prolongar da situação.

    O que anda a fazer a ministra do ES, ou lá como se chama a coisa? Claramente, faltou a esta gente aulas de Cidadania.

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    1. Ninguém põe cobro porque os que têm poder para por cobro são os que assediam?

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    2. Beatriz, a ministra não tem poder? Também assedia?

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    3. A ministra tem poder, sim e pelo que li tomou já iniciativas, mas este não é um problema fácil de resolver. Tem décadas de 'normalização', os que causam os problemas são os mesmos que estão em posição de sabotar as soluções e a maioria deles nem sequer admite que tem um problema. Penso que alguns estão tão habituados ao poder que não percebem, genuinamente, o problema.

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  2. A verdadeira vergonha está no Reitor de Coimbra. Mas parece que vai caindo no esquecimento.

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  3. Replies
    1. Se é sobre a questão do russo, já escrevi o que pensava sobre isso: https://ipbeatrizja.blogspot.com/2023/05/um-titulo-que-chama-atencao-pelo-absurdo.html

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