April 08, 2023

Leituras - Os limites do Perdão

 

Uma leitura grande mas muito interessante. Esta é a crónica de uma jornalista católica, a quem pedem que escreva uma retrospectiva sobre a vida do Papa Bento XVI e luta, interiormente, com a ideia de ser justa mas implacável ou misericordiosa mas injusta, com a memória dele. Mas a reflexão dela vai muito para além do caso particular do Papa e é alargada a toda a pessoa e à sociedade.


Os limites do Perdão

by Elizabeth Bruenig

Pode-se ser verdadeiramente indulgente, sem aceitar tudo o que cada pessoa fez? Comecei a lidar seriamente com esta questão quando o Papa Bento XVI faleceu e foi-me pedido que escrevesse uma breve retrospectiva sobre a sua vida. 
O meu impulso inicial foi o de escrever um relato pouco generoso. Tinha as minhas razões: Bento XVI cometeu erros graves no tratamento do abuso sexual e sinto-me especialmente obrigada como católica a ser muito honesta sobre tais assuntos. Mas também tinha as minhas dúvidas. Bento XVI era um homem esteticamente tradicionalista, da direita que critico e por isso suspeitei dos meus motivos para ser tão dura com ele. 

Há certos escritores que leio a fim de desanuviar. Há outra categoria para quando preciso de provocar o meus pensamento. Um dia li alguns dos ensaios de Hannah Arendt e, um quarto ou mais de Eichmann em Jerusalém, antes de me deitar.

Mas primeiro rezei, e enquanto rezava, tomei consciência de um pensamento: Como se pode escrever com simpatia humana por assassinos confessos no corredor da morte e, em contrapartida, escrever mal deste homem que morreu e que cometeu actos graves, sim, mas não ao nível do homicídio, sendo que também fez boas acções? Não estava a ser justa com Bento XVI.

Mas também duvidei deste pensamento e disse a mim mesma que o que tornava os pecados do papa piores do que os do condenado era a diferença em influência, poder social, ou obrigações, entre eles. 
O assassino afirma a forma mais absoluta e permanente de poder sobre outra pessoa; a morte é o pior crime. E não importava que as transgressões do papa equivalesse, moralmente, a homicídio. Eu não escapava à acusação de injustiça.

Interroguei-me: com quem estou a ser injusta? Ocorreu-me que se pode ser injusto com alguém tanto sendo demasiado clemente como demasiado impiedoso. Tem de haver algum tipo de equilíbrio entre justiça e misericórdia, sendo a misericórdia a obra do perdão e a punição a obra da justiça.

Durante todo este tempo continuei a pensar. (penso que não se deve pensar enquanto se reza, mas é Quaresma e não me consigo conter, estou sempre a ruminar). Muita gente diz que
 não deveria estender qualquer tipo de simpatia, nem sequer compreensão humana, a assassinos no corredor da morte. Algumas das suas razões parecem-me pouco convincentes e repelentes (basicamente argumentos de sadismo), mas outras levo mais a sério: têm a ver com dignidade e justiça: que ao partilhar um sentimento com um assassino, nego implicitamente o valor da vida da sua vítima (um insulto à justiça) ou desresponsabilizo-o preso pelos seus actos (um insulto à sua dignidade).

Para respeitar a justiça e honrar a dignidade do prisioneiro, fiz um esforço intencional e concertado para contar a sua história da forma mais justa possível, sem obscurecer nenhum aspecto dos seus crimes ou da sua humanidade. Ambos parecem relevantes para a questão em apreço, que é: Será que esta pessoa deve viver? 
Se estava a ser justa com os prisioneiros, eram más notícias para o papa. Mas havia um lado bom: se eu tivesse descoberto a forma correcta de escrever sobre os prisioneiros, então já sabia a forma correcta de escrever sobre o papa. Tudo o que tinha de fazer era manter a proporção, tentar distinguir no homem, o melhor, do pior, revelar o humano nele. Isso e uma edição rígida manteriam as coisas justas.

Mas eu não queria enganar-me a mim própria. Sabia que isto exigiria uma boa dose de leitura e pesquisa da minha parte e que teria realmente de desenvolver um genuíno sentimento de simpatia para com um homem sobre o qual, agora, admiti a mim própria (à beira do sono,) sabia relativamente pouco. 
Alguns escritores conseguem fazer obituários por desprezo, ressentimento ou, pior, indiferença total, mas eu não sou capaz. Tenho a sorte de não estar de modo algum alienada do meu trabalho.

Estava a adormecer e um pensamento veio-me do abismo: deveria falar sobre isto na Universidade de Chicago.

Levanto esta breve disputa sobre perdão, justiça e misericórdia porque é um pequeno exemplo de um emaranhado de questões amplas com as quais luto constantemente. Escrever sobre o corredor da morte e as execuções, bem como o crime e a punição, o perdão e a misericórdia (ou proscrição social apenas sobre essas coisas, em casos particulares) estão sempre na primeira linha da minha mente, de tal forma que estou sempre a reparar na estranha relação entre a sociedade contemporânea e estas virtudes aparentemente descomplicadas. Na realidade, estes são princípios profundamente complexos com todo o tipo de pântanos e questões, como tentei mostrar acima e são dignos de séria consideração.

E assim, em reconhecimento da ampla conversa filosófica em torno do perdão, e em grande parte, para o meu próprio bem, o que eu gostaria de fazer hoje é tentar dar um relato aproximado do que é o perdão, detalhar algumas das críticas antigas e mais recentes da prática e oferecer algumas ideias em apoio do perdão, com essas críticas em mente.



As definições de perdão variam de lugar e de tempo. Penso ser seguro assumir que desde que há ofensas entre pessoas desde do início da história humana, e que tem havido práticas de renúncia à vingança e de descarregar sentimentos de raiva e amargura. E desconfio que estas práticas de perdão (frequentemente utilizadas de forma intercambiável mas que merecem as suas próprias definições) foram sempre alvo de discussão sobre se são virtudes ou vícios sociais.

Podemos olhar para os antigos para tentar encontrar as raízes do perdão e da misericórdia na nossa cultura, e para nos ajudar a distinguir entre os dois conceitos.

No seu livro Before Forgiveness, o classicista da NYU David Konstan argumenta, a partir da leitura de termos gregos e latinos antigos relevantes em comparação com os seus homólogos contemporâneos, que os gregos e romanos viviam num mundo sem perdão, tal como o conhecemos. 
O uso inglês moderno do termo, perdão, diz, "implica uma confissão de culpa por parte do ofensor, juntamente com sinais claros de remorso sincero e arrependimento", o que significa um "complexo de sentimentos" entre perdoador e perdoado que é, em certo sentido, transformador. 

No entanto, no pensamento grego e romano, os conceitos comummente traduzidos como "perdoar" "eram vistos como dependendo da restauração da dignidade da parte lesada, quer através de indemnizações, gestos de deferência ou através de uma forma de descontar a ofensa com base no facto de ter sido, em certo sentido, involuntária ou não intencional".

Parte do trabalho de apaziguamento da raiva e da vingança nestas sociedades era feito corrigindo as relações de estatuto e poder, revertidas na ofensa em questão. Em vez de confessar ter feito intencionalmente algo de errado, expressando remorsos e pedindo amnistia da vingança, uma pessoa que tinha causado ofensa a outra, no mundo antigo, poderia insistir em que o dano era totalmente inesperado ou não intencional; por outras palavras, que nunca houve qualquer plano para ofender a dignidade da outra. 

Konstan aponta um exemplo numa peça de Herodes do século III a.C., na qual uma amante enfurecida acusa o seu escravo de ter dormido com outra pessoa. O escravo confessa, humilhando-se, mas isto não é suficiente para aliviar o orgulho ferido da sua amante e ela quer que ele seja chicoteado. Porém, recordam-lhe um festival religioso que se aproxima e que exige a remissão dos castigos. 
A dignidade da amante é aliviada por uma obrigação para com uma ordem superior de poder.

Entretanto, De Clementia, de Séneca, defende a misericórdia como a característica distintiva que separa um rei justo e razoável de um tirano perverso; parte do fracasso do tirano em demonstrar misericórdia é uma incapacidade racional de auto-contenção, uma incapacidade quase bestial de reconhecer que já é o mestre e não precisa de afirmar o seu domínio com vinganças selvagens. Alguém cuja dignidade é elevada ao ponto de quase não poder ser ofendida, não tem necessidade de se defender com tanto zelo.

O que é curioso sobre a história destes conceitos, pelo menos para mim, é que embora leve muito a sério o argumento de Konstan de que os antigos não partilhavam o nosso conceito moderno de perdão, também parece que tinham uma teoria e, mesmo uma prática, muito robusta, de misericórdia. 

No seu livro The Decline of Mercy in Public Life, os professores de ciências políticas, Alex Tuckness e John M. Parrish, traçam a queda das expressões cívicas de misericórdia do mundo antigo para o mundo moderno e descobrem que o Iluminismo - com toda a sua meritória ênfase na justiça imparcial e na igualdade perante a lei - criou ou acentuou uma tensão entre misericórdia e justiça que acabou por quebrar a favor de uma justiça dura e uniforme em oposição a um mundo com maior espaço para a misericórdia. E assim, ao que parece, historicamente, podemos acompanhar a ascensão do perdão a par da queda da misericórdia.

O perdão, como Konstan implica, parece ser algo moral, interpessoal, dinâmico, mas com uma base emocional. É uma prática, mas é uma prática emocional. 
Numa das formulações académicas mais comuns de perdão, a de Charles Griswold1, o perdão é descrito como um processo explicitamente social, de duas pessoas, que deve satisfazer uma série de condições: por exemplo, o malfeitor deve admitir a sua responsabilidade pelo mal que fez; deve renunciar às suas acções; deve expressar o seu pesar pelas consequências; deve comprometer-se a tornar-se o tipo de pessoa que não causa tais danos; deve mostrar que compreende a natureza e o impacto das suas acções e deve dar conta de como veio a fazer o mal e de como pretende ser melhor. 

É, como Konstan aludiu, um processo transformador, algo de que Griswold é franco: enquanto o infractor passa por um processo de desenvolvimento e expressão de pesar por transgressões anteriores, o que implica uma certa reorientação para si próprio e para o seu passado, a parte lesada também experimenta uma mudança quase total nos sentimentos e planos em relação ao infractor, o que implica uma reorientação para os seus sentimentos passados e intenções futuras.

Para Griswold, o perdão inclui a renúncia ao ressentimento e à vingança. Concordo que estes são componentes necessários do perdão, mas é útil aqui dizer uma palavra sobre misericórdia. 

Jean Hampton definiu assim a misericórdia: "Enquanto que o perdão é uma mudança do coração que surge da nossa decisão de ver o que fez o mal como moralmente decente em vez de mau, a misericórdia é a suspensão ou atenuação de uma punição que de outra forma seria merecida como retribuição, e que é concedida por piedade e compaixão pelo malfeitor". 

Séneca pode questionar as causas da misericórdia de Hampton, mas o princípio é praticamente inalterado: misericórdia é quando se tem o direito de exigir algum tipo de pena ou castigo a alguém por ter sido por ele prejudicado e se opta por pedir menos do que se poderia ou até nada. 

É fácil ver como a misericórdia, neste sentido, constitui um elemento de perdão - embora Hampton saliente que os dois podem existir independentemente um do outro. Ela dá o exemplo da puritana Nova Inglaterra, onde um criminoso, se estivesse prestes a ser enforcado mas se arrependesse do seu crime, poderia ter a comunidade a oferecer-lhe um festim, reconciliando-se com ele - e depois enforcá-lo-iam na mesma.  Assim se vê que é possível ter o perdão e nenhuma misericórdia - isto é, os dois conceitos podem ser dissociados.

Pela minha parte, sou jornalista e não filósofa, por isso o que tenho em mente quando uso o termo perdão é provavelmente menos exacto - não tenho a certeza absoluta se o perdão deve ser condicional ou incondicional e suspeito que provavelmente varia de caso para caso - mas sinto que tem a ver com a renúncia a um conjunto emocional de direitos ou privilégios que se adquire quando se é magoado. Depois direi mais sobre este ângulo particular do perdão, mas devo salientar que no meu trabalho como jornalista encontrei razões para pensar desta forma sobre o perdão.

Um exemplo notável ocorreu recentemente, quando falava com uma mulher que perdoou o assassino da sua avó, actualmente no corredor da morte. Ela explicou-me qual era a sensação desse perdão. Perguntei-lhe se alguma vez vacilou depois do perdão ao assassinou da sua avó. Ela disse: "Só vacilo se tentar voltar àquela noite, não posso voltar àquela noite. Não posso voltar para a noite em que tudo aconteceu". 
Assim, em certo sentido, ela tinha na sua posse uma memória, ou um pensamento, ou uma fonte de raiva, um poço de raiva, a que podia voltar. Mas depois do perdão, renunciou, abandonou, essa memória, o que eu penso ser uma forma muito útil de pensar sobre o perdão. É a renúncia a um certo conjunto de privilégios, direitos e emoções que uma pessoa tem quando é injustiçada.

Os elementos controversos no perdão permanecem. Por exemplo, enquanto Griswold exige que várias condições sejam cumpridas antes que o perdão propriamente dito possa ser dispensado. 
Certas tradições cristãs de paz exigem menos e até oferecem o perdão incondicional. 
Enquanto alguns pensadores consideram o perdão incondicional praticamente insultuoso para a dignidade da parte lesada, outros vêem o perdão mais no domínio do dom e sentem que colocar numerosas condições na distribuição do perdão reduz uma expressão virtuosa de doação a uma mercância. 
Não é muito claro para mim qual das duas versões do perdão é a melhor, mas é claro que já estamos a chegar a uma discussão sobre as queixas do perdão e é preciso pensar isso.



Por vezes perdoamos e outras vezes não e os casos que justificam o nosso perdão versus os que não o justificam podem ser algo surpreendentes.

Considere um par de episódios recentes de perdão publicitado, bem como da sua recepção:

Há o caso de Maegan Hall, uma polícia do Tennessee que se tornou viral quando ela e vários membros do departamento da sua cidade foram disciplinados por terem relações sexuais, por vezes, enquanto ao serviço. Hall tornou-se um motivo de riso online e um foco da infidelidade feminina em geral. Entretanto, os tablóides souberam que o marido de Hall tinha decidido perdoá-la e tentar salvar o seu casamento em vez de a deixar. Entre os comentários a essa notícia, lê-se:

- O marido é um verdadeiro palhaço.

- Esta mulher desrespeitou-o completamente como homem. Arranje tomates e deixe-a. Merece muito melhor.

- A pior coisa que ele pode fazer neste momento é tentar "resolver as coisas com ela".


E assim por diante. Entretanto, em Massachusetts, uma mulher chamada Lindsay Clancy atacou e matou os seus três filhos antes de saltar de uma janela do segundo andar de sua casa. Lindsay sobreviveu. O seu marido, Patrick Clancy, divulgou uma declaração na qual perdoou explicitamente a sua mulher e pediu ao público que o fizesse também, escrevendo:

Quero pedir a todos vós que encontrem no fundo de vós mesmos o perdão a Lindsay, como eu fiz. A verdadeira Lindsay foi generosamente amorosa e carinhosa para com todos: para comigo, para os nossos filhos, a família, os amigos e os seus pacientes. As próprias fibras da sua alma são amorosas. Tudo o que desejo para ela agora é que ela possa de alguma forma encontrar paz.

O pedido de perdão de Patrick foi abordado no programa Good Morning America, que mais tarde carregou o segmento no YouTube, onde foi comentado:

- Isto é de partir o coração. A doença mental é real e pode acontecer a toda a gente se não for devidamente abordada. Desejo cura e orações para a família. As minhas condolências.

- Esta é uma história tão triste. Não consigo imaginar o que estará a passar quando se recuperar da [psicose pós-parto].

- Demasiado triste por pôr em palavras, não consigo imaginar o que ela deve ter estado a sentir para o fazer. Perdoo-lhe porque ela vai passar o resto da sua vida a tentar descobrir como se perdoar a si própria.


O que me impressionou imediatamente no contraste (reconhecidamente não científico) entre o teor das respectivas recepções de cada acto de perdão foi que o infractor muito pior tinha evidentemente sido confrontado com sentimentos muito mais calorosos. 
Não é que o homicídio seja mais fácil de perdoar do que a infidelidade - nem sequer é claro para mim que o público espectador esteja em qualquer posição de perdoar alguma coisa - é que na segunda circunstância, o perdão em si não está realmente em jogo.

Para voltar à formulação do perdão de Griswold, basta assinalar que a primeira condição tem a ver com responsabilidade e, portanto, culpabilidade. No caso Clancy, a mulher que matou os seus três filhos distingue-se de "a verdadeira Lindsay", a mesma mulher que era antes da sua condição mental se ter deteriorado dramaticamente. A sua doença é tal que os seus crimes são essencialmente os de outra pessoa; portanto, ela não deve ser condenada por eles.

Assim, para que o perdão se aplique, é necessária uma genuína admissão de culpa por parte do infractor. As explicações para diminuição da culpabilidade (a pessoa em questão é uma criança ou estava intoxicada ou apaixonada ou sob coacção) são moralmente importantes, mas não constituem o perdão, que só pode ser endereçado ao delito culpável. Normalmente este tipo de delito causa danos à parte lesada, razão pela qual é tão estranho que o público em ambos os nossos casos se sentisse no direito de reparação, seja ela qual for.

Isto não é para presumir que os seus motivos são automaticamente suspeitos. Um observador cuidadoso poderia apontar que as pessoas estão motivadas a fazer cumprir as normas morais das suas sociedades e que o sentimento de ofensa causado pelas suas violações é uma prevenção contra novas violações. 
Faz-nos agir de forma protectora das normas que acarinhamos enquanto grupo e confiamos uns nos outros para as mantermos. Que o perdão dispensado de forma demasiado rápida e liberal pode extinguir esta reacção social necessária e, portanto, dar origem a comportamentos geralmente maus, é uma crítica ao perdão, embora tipicamente esta crítica se destine ao "frouxo" (para usar o termo do filósofo Jeffrie Murphy) tipo de perdão incondicional que mostra esperar pouco dos seus súbditos.

Depois há os argumentos de que o perdão representa um risco ou indica um problema com o auto-respeito do perdoador. 
Murphy, inspirando-se em Nietzsche, aprofunda esta crítica no seu livro Forgiveness and Mercy. "Uma tendência demasiado pronta para perdoar pode ser adequadamente considerada como um vício porque pode ser um sinal de que nos falta respeito por nós próprios...". Nesse sentido, perdoar é "transmitir emocionalmente que não pensamos que temos direitos ou que não levamos os nossos direitos muito a sério". 
Este glossário não é difícil de compreender. Numa leitura particularmente cínica, o perdoador não descarregar o seu ressentimento a vingança no culpado são provas de falta de orgulho, uma vez que alguém que se tivesse em devida estima justificaria vingaria os seus direitos. 
Versões desta crítica são visíveis na resposta ao perdão de Maegan Hall onde as pessoas parecem zangadas por o marido a perdoar.

Estas são talvez as críticas mais conservadoras ao perdão: a força, o orgulho e a ordem. Também há críticas ao perdão por parte da esquerda. De facto, acabo de ter o privilégio de ler um livro da pensadora Myisha Cherry, intitulado Failures of Forgiveness, que resume eloquentemente a maioria das críticas de esquerda-liberal ao perdão, que cresceram em visibilidade ao longo das últimas décadas.

Cherry, em particular, é céptico quanto ao perdão porque sobrecarrega a parte lesada com esforço moral - na minha opinião, não há como contornar este facto - e também porque o perdão nos Estados Unidos parece ser valorizado numa base racial, sendo o perdão do negro, das injustiças dos brancos altamente valorizado e elogiado como nobre, sem qualquer tipo de simetria. 
Cherry salienta que tal enfoque indevido no perdão Negro redirecciona a energia emocional para longe da reparação de ofensas racistas e, em vez disso, obriga as pessoas a esperar perdão e misericórdia, em vez de combater as injustiças sistémicas subjacentes que criaram as ofensas iniciais. Isto leva a uma crítica mais ampla do papel do perdão na sociedade e nas relações interpessoais em geral, onde Cherry se preocupa que o perdão possa tornar-se uma prática encorajada pelos poderosos, a fim de manter o seu estatuto de opressores.

E assim os críticos do perdão, à direita e à esquerda, parecem sustentar largamente que a prática é ou pode ser (de facto) prejudicial em si mesma, tanto para a pessoa que foi injustiçada e tem a opção de perdoar (que ao fazê-lo pode declarar a sua falta de auto-respeito, renunciar à raiva legítima e convidar mais ofensas contra si própria e outros membros idênticos da sociedade) e para a pessoa que fez mal e que está a ser perdoada (que ao fazê-lo correria o risco de ser considerada menos do que moralmente responsável pelos seus actos, e portanto menos do que igual em termos de dignidade humana; e que poderia também inferir que as acções moralmente erradas são isentas de consequências)

A nível pessoal, o perdão é apenas um processo difícil e doloroso. É emocionalmente penoso envolver uma pessoa que o prejudicou num processo de transformação em direcção ao perdão e reconciliação, possivelmente para o seu bem mas, muito mais para o deles. 
Ser confrontado com um verdadeiro pedido de desculpas é uma experiência estranha e desarmante: um dia está a viver a sua vida, injustiçado, enraivecido e no seu direito de se sentir assim e, no dia seguinte, a própria pessoa que o pôs nessa posição de estar zangado e indignado aparece com algumas palavras que são difíceis de ouvir e cuja intenção é roubar-lhe a sua aura protectora e socialmente sancionada de raiva. 

Não é de admirar quanto escrutínio se faz ao perdão. Muitas vezes, é mais confortável simplesmente rejeitá-las. Mas, porque penso que vale a pena levá-las a sério, e perdoar, vou argumentar a seu favor.



Aprendi muito sobre a vida observando as pessoas e o seu comportamento como jornalista, mas aprendi ainda mais sobre estas coisas como mãe. Os meus filhos em breve terão sete e quatro anos e eles sabem que geralmente os adultos não lhes permitem fazer mal uns aos outros. (De facto, o meu marido, que é advogado e licenciado em Filosofia, tornou esta regra comum ainda mais explícita na carta das condições da mesada da nossa filha mais velha onde prevê que um dólar possa ser deduzido da quantia por "magoar consciente e voluntariamente a sua irmã"). Mas sendo pessoas espertas, já sabem que existe uma grande excepção a esta regra geral: autodefesa, incluindo a reivindicação dos direitos de cada um. É por isso que quando encontro as minhas filhas envolvidas em algum tipo de combate, ambos me contam a mesma história moral: eu não lhe estava a fazer nada e ela bateu-me primeiro.

Esta história é geralmente verdadeira em qualquer conflito. E as raparigas aprenderam a contá-la porque é eficaz. Nós, como sociedade, preocupamo-nos com quem instiga o conflito versus quem simplesmente responde. Isto porque basicamente respeitamos o direito de um indivíduo, quando ferido, de fazer vingar os seus direitos, ou expressar a sua raiva, ou reafirmar a sua agência, etc. 
O que fazemos nesses casos, como sociedade, não é tanto dar às pessoas um conjunto prescrito de comportamentos ou contramedidas a serem tomadas em qualquer caso de injustiça - não existe uma lista específica de projectos de vingança socialmente prescritos - mas sim um conjunto de limitações morais preexistentes sobre o que uma pessoa pode fazer a outra pessoa. Fazemo-lo porque consideramos que ambas as partes envolvidas no conflito o merecem.

Embora diga às minhas filhas que não me interessa quem começou o quê e que nenhuma delas deve bater na outra, quando posso razoavelmente apurar quem realmente instigou o conflito, tomo medidas para inverter a sua acção e por vezes para as punir, enquanto a outra criança é normalmente a beneficiária de algum tipo de reparação. Deixem-me dar-vos um exemplo.

Suponhamos que estão a brincar juntas quando a  mais nova descobre um vestido que gosta. Quando começa a vesti-lo, a mais velha decide que gostaria de ser ela a usar o vestido, por isso tira-o à irmã mais nova e veste-o ela própria. Como retaliação, a mais nova puxa o cabelo da mais velha, exigindo que o seu vestido seja devolvido. A algazarra chama-me a atenção e depois de ouvir ambos contarem a mesma história, castigo ligeiramente a minha filha mais nova por puxar o cabelo da sua irmã, mas depois ordeno à minha mais velha que devolva o vestido à sua irmã mais nova e castigo-a fortemente por o ter tirado em primeiro lugar. Do ponto de vista da minha filha mais velha, a sua irmã mais nova está a divertir-se: não só recebeu o vestido, como também lhe puxou o cabelo e ainda recebeu esse presente!

Isto acontece porque a mais nova estava a operar num estado de excepção moral. Estava a comportar-se num estado em que as regras normais de moralidade - a proibição geral de puxar o cabelo da 
irmã - não se aplicavam. Gostaria que ela não atacasse a sua irmã em geral, então castiguei-a por isso, mas não me pronunciei contra ela e acabou por não ser punida - de facto, acabou por conseguir o que queria. 

Pode-se imaginar como é tentador para uma criança uma brecha como esta - representa a oportunidade não só de obter o que se deseja, mas também a oportunidade de satisfazer um desejo mais sombrio, tipicamente reprimido e, a única condição prévia para o fazer é ser injustiçada em primeiro lugar. Como podem imaginar, "ela bateu-me primeiro!" é algo de um estatuto prezado entre as crianças pequenas, justamente por esta razão.

Mas serão estes estados de excepção moral igualmente atractivos para os adultos? É possível que os adultos também sejam atraídos por estados de excepção moral, nos quais podem não só prosseguir projectos de vingança que normalmente seriam proscritos socialmente, mas também fazê-lo com plena sanção social? Penso que sim. 
Considere os meios de comunicação social, onde as pessoas vão frequentemente procurar algo com que se zangar, para poderem expressar a sua raiva de formas que normalmente seriam proibidas, mas que são permitidas apenas em casos de terem sido injustiçadas. 
Se o utilizador das redes sociais não tivesse procurado um exemplo de alguém a fazer algo ofensivo ou ultrajante, não teria nenhuma raiva para descarregar, mas parece-me que adquirir raiva e o direito de descarregar é precisamente a questão. (A televisão por cabo também oferece muitas razões para se irritar com as pessoas e gritar com elas).

Num fórum em que ambos participámos para a Boston Review, a pensadora Agnes Callard observou uma vez que, se uma pessoa é alvo de maldade e se zanga com a outra pessoa, não há nenhuma razão lógica para que essa raiva se extinga, nunca. Claro que a pessoa zangada pode fartar-se dessa emoção ou simplesmente optar por abandoná-la, mas não há nenhuma razão lógica, uma vez que a raiva é sentida na ofensa inicial, para que se deixe de sentir raiva - mesmo depois de se ter vingado. 

Acredito que Callard tem toda a razão a este respeito, e que a sua observação se confirma na vida quotidiana, onde podemos ver as pessoas a alimentarem rancores durante décadas. 
Também significa que as pessoas podem entrar em estados de excepção moral e permanecer lá indefinidamente se assim o desejarem e não há nenhuma razão lógica para lhes pôr fim. Uma vez que uma pessoa tenha sido injustiçada, ela foi injustiçada perpetuamente; portanto, uma vez que uma pessoa tenha entrado num estado de excepção moral, ela pode lá permanecer perpetuamente.

Isto cria um problema para a sociedade. Há pouco disse que quando uma pessoa é objecto de vingança, nós, como sociedade, consideramos que merece ser sujeita a uma punição. E por que razão é este o caso? Porque sentimos que, através da prática de maus actos, as pessoas renunciam a certos direitos que as protegem, geralmente, desses comportamentos de punição. É isto que quero dizer quando digo que imaginamos que em casos de vingança ambas as partes "merecem": o vingador merece o seu estado de excepção moral por ter sido injustiçado, e o malfeitor merece o seu próprio estado de excepção moral único por ter feito o mal.

Isto significa que as pessoas que cometem erros se tornam menores do que o resto - através da prática de actos ilícitos, sustentam um tipo de lesão moral que diminui os seus direitos. Se você, como eu, é o tipo de pessoa que acredita que a sociedade funciona melhor quando todos temos igual dignidade e igual estatuto moral, então é evidente que os estados de excepção moral criados quando as pessoas se enganam umas às outras são antitéticos a uma boa sociedade. A melhor opção seria que nunca ninguém errasse com ninguém. Mas a opção mais realista, quando confrontada com o facto de os estados de excepção moral serem desejados e potencialmente permanentes, é geralmente aconselhar o perdão.

Deste ponto de vista, o perdão não é tanto um sinal de respeito por si próprio, como um sinal de respeito por um certo tipo de sociedade. É uma resposta ao facto de ter sido injustiçado que recusa intencionalmente um estado de excepção moral e devolve ao que o injustiçou o seu estatuto inicial de igualdade moral. 
Para mim, isto é um pré-requisito para uma sociedade verdadeiramente igualitária.

E é fácil dar exemplos da vida real desta teoria do perdão. 
Estou actualmente a trabalhar num caso de pena de morte no Texas em que uma reclusa assassinou brutalmente a irmã de um homem, usando um bloco inteiro de facas de talhante durante um assalto, em 1993. Embora o homem tenha passado anos com raiva da assassina e tenha apoiado a sua condenação à morte, desde então renunciou à raiva, devido a mudanças na sua própria vida e passou a sentir de forma diferente sobre a pena de morte. 
Desde que a perdoou que tenta anular a sua execução - invertendo definitivamente a expressão mais extrema de desigualdade que a humanidade pode reunir. Embora em tempos tenha visto a vida dela como muito inferior à sua e à dos outros, ao ponto de defender que o Estado lha tirasse, agora vê a vida dela como valiosa e a valer a pena ser salva. Este é o trabalho do perdão.

Para mim, esta é uma visão do papel e propósito do perdão que deixa em aberto uma vasta gama de formas para que o perdão tome forma - condicional e incondicional, instantânea e retardada, com e sem reservas. Exige, a meu ver, a inclusão da misericórdia, uma vez que poupar um indivíduo a uma punição justificada pela sua ofensa, é fundamental para a restauração dos seus direitos e dignidade. Mas isto não exige que um indivíduo que tenha feito mal seja inteiramente poupado de consequências, uma vez que algumas consequências são justificadas por outros factores que não a própria ofensa - por exemplo, os actos de reparação dos danos.

Mas talvez o mais importante desta ampla leitura do perdão é que ela recomenda não tanto um tipo específico de prática de perdão, mas sim um tipo específico de pessoa - um tipo de perdão. Foi isto que acabei por decidir quando tentei organizar a minha mente sobre como lidar com histórias de assassinos condenados e papas reformados. 

Não é tanto que todos os casos de delito devam ser perdoados nos mesmos termos ou da mesma forma mas sim que todos os casos devem ser vistos com um olho perdoador, abordados com uma abertura a essa transformação nos sentimentos, sobre os quais Griswold escreve. 

Deveríamos estar sempre abertos a mudar as nossas mentes sobre as pessoas e as suas acções, tanto nas interacções interpessoais directas em que temos de perdoar, como naquelas que, nos dias de hoje, mantemos enquanto espectadores, em que formamos juízos morais uns sobre os outros sem interacções directas. 

(Nesses casos, podemos não ter exactamente o direito de perdoar, pois nós próprios podemos não ter sido injustiçados, embora possamos estar zangados indirectamente; no entanto, essa raiva é suficiente para fazer valer a pena abordar o assunto com uma disposição de perdão, uma vez que sugere uma incipiente desigualdade de estatutos morais).


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