April 02, 2023

Abril, Primavera

 

(da correspondência entre Camus e Simone du Beauvoir - com tradução minha. Esta paixão clandestina agora revelada nestas cartas inéditas foi sem dúvida a fonte da "famosa" disputa entre Camus e Sartre.)


Paris, le 12 octobre 1951

« Ma tendre Sissi,

Vous savez que je ne suis pas un homme de grandes effusions. “C’est au sentimentalisme qu’on reconnaît la canaille”, écrivait Meyrink, et de même, je me méfie des épanchements trop démonstratifs. Pourtant, chacune de nos rencontres fait naître en moi un lyrisme que je cherche sottement à réprimer. Vous savez bien, vous aussi, qu’il n’y a de salut que dans l’art et dans l’action. Eh bien – vous conjuguez pour moi les deux. Que rêver de plus, dans la rencontre entre deux êtres ? Vous êtes ma musique, mon âme, ma peinture, mon [illisible], la Grâce et la Providence tout à la fois, et tout simplement une camarade telle que je ne croyais plus en connaître, dans la solitude de cette voie que l’un comme l’autre nous avons choisie (si ce n’est elle qui nous a élus). Un artiste sans muse n’est que bien peu de chose. Cette platitude, vous m’excuserez, est d’ailleurs valable pour tout homme, probablement. De l’action, donc ! Là encore, vous m’en donnez tant. Cela suffirait presque à une existence complète : une lumière pour la nuit du quotidien, et vos “tentacules de ténèbres” (envoûtante expression dans votre bouche), lorsque le besoin de retrait se fait trop pressant face à toute l’agitation du monde. Quelle meilleure chora, comme disaient les Grecs, que vos bras ? Avant vous, j’ai désormais l’impression d’avoir vécu le sacerdoce d’un escroc. Or, la vérité est la chose la plus brillante et la plus nue qu’il soit lorsqu’elle éclate. Voilà sans doute pourquoi nous passons tous notre vie dans la pénombre ; mais précisément, il ne s’agit que d’une semi-obscurité, puisque l’autre versant est si étincelant que nous devons nous en protéger comme par des jalousies que l’on tire. Je ne digresse pas – ce que je cherche maladroitement à exprimer, c’est que je ne peux plus m’aveugler, de cette fierté dérisoire que tirent les mâles de leur indépendance, qu’elle soit matérielle, sociale ou affective : je vous aime, ma Sissi. Je prends la mesure de ces paroles dont vous vous plaignez que je suis d’ordinaire trop économe. Je sais aussi ce qu’elles signifient dans la situation qui est la nôtre. Enfin, oui, je vous aime. Et cela me rend heureux. Pourquoi donc se priver du bonheur lorsqu’il surgit ? Vivons !

P.S. : Viendrez-vous rue de Bellechasse la semaine prochaine ? René me l’a fait entendre hier. J’en ai l’espoir.

Albert »

 

Lettre d’Albert Camus à Simone de Beauvoir (1951)

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[non daté]

« Cher vieux puma,

Quel plaisir de te lire à nouveau. Chacune de tes lettres m’enchante, et me tire de ma torpeur sèche. Si tu me voyais le matin, à guetter derrière la banne les allées et venues du facteur comme une gamine amoureuse, tu rirais sans doute bien de moi. Je te sais flatteur, mais quand bien même, il est de ces instants où toute déterminée qu’elle soit à rester maître de son destin comme de ses attaches, une femme ne peut que s’abandonner aux sourdes inclinations de son sexe. La tendresse seule ne suffit pas, elle exige d’autres plaisirs ; toi seul sais apaiser ce désir qui me consume. Ou plutôt l’attiser, délice infernalement céleste.

J’entends ce que tu me dis. Je me livre moi aussi sans retenue. Tu sais bien (et en cela je me l’admets autant à moi-même qu’à toi) que je ne trouve véritablement que dans tes bras ce réconfort dont je me languis tant. Après tant de nuits délaissée, sans parler de ces mornes après-midi où Il daigne à peine m’adresser la parole, occupé à courir les jupons de je ne sais quelle ingénue transie devant ses tirades, ton humanité, l’accueil bienveillant de ton oreille à mes humeurs changeantes, tes plus infimes attentions même, me font un bien souverain. Je me surprends à te parler de soif étanchée, d’appétit comblé, de sensualité réveillée Moi aussi, je me sens presque stupide de le formuler ainsi. Qu’il en soit ainsi : nous voilà deux à être étonnés de la naïveté de nos corps. N’est-ce pas la définition de l’innocence ?

Ce que tu penses valable pour les mâles, comme tu dis, l’est aussi pour nous autres, mon cher ; néanmoins, pourquoi étouffer le feu qui triomphe enfin de l’hiver ? L’amour est un enfant effronté, glorieux et impudique. Et tous nos sentiments, même interdits (qui l’a décrété ?) seront toujours mille fois plus nobles, et beaux, et vivants, que cette situation dont ll me fait souffrir, qui devient franchement ridicule. Du reste, je ne sais quel genre de femme je serais à dénigrer l’amour. Voilà l’inélégance qu’Il m’arrache : j’en suis réduite, suprême indignité, à m’en plaindre à un tiers. À toi qui me manques tant, Albert. Ta voix pénétrante, ton sourire félin, ton souffle chaud sur ma nuque solitaire. Toi, mon oasis dans le désert. Mes pensées t’accompagnent toujours, n’en doute pas. Je ne puis attendre de te voir samedi. Je fais tout mon possible pour venir dès le dîner expédié.

Amoroso,

Ta tienne »

La réponse de Simone de Beauvoir à Albert Camus (1951)

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Tradução:


Paris, 12 de Outubro de 1951

"Minha doce Sissi,

Sabe que não sou um homem de grandes efusões. "Meyrink escreveu: 'Podes ver um patife pelo seu sentimentalismo' e, da mesma forma, desconfio das efusões que são demasiado demonstrativas. No entanto, cada um dos nossos encontros dá origem a um lirismo em mim que tento, insensatamente, reprimir. Também sabe que só há salvação na arte e na acção. Bem, você combina os dois em mim. Que mais sonhar no encontro entre dois seres? Sois a minha música, a minha alma, a minha pintura, a minha [ilegível], Graça e Providência de uma só vez e muito simplesmente uma camarada tal como eu nunca pensei poder conhecer, na solidão deste caminho que ambos escolhemos (se não foi ela que nos elegeu). Um artista sem musa é apenas uma pequena coisa. Esta platitude, se me permite, aplica-se provavelmente a todos os homens. Acção, então! Mais uma vez , é tanto o que me dá. Seria quase suficiente para uma existência completa: uma luz para a noite da vida quotidiana e os seus "tentáculos de ténebras" (expressão enfeitiçante na sua boca), quando a necessidade de retirada é demasiado premente face a toda a agitação do mundo. Que melhor coro, como disseram os gregos, do que os vossos braços? Antes de vós, agora sinto-me como se tivesse vivido o sacerdócio de um vigarista. Mas a verdade, quando irrompe, é a coisa mais brilhante e mais nua que existe. É provavelmente por isso que todos passamos as nossas vidas no escuro, mas é apenas uma semi-escuridão, já que o outro lado é tão brilhante que temos de nos proteger dele como se estivéssemos a desenhar persianas. Não estou a divagar - o que estou desajeitadamente a tentar expressar é que já não me posso cegar para o orgulho irrisório que os homens têm na sua independência, seja ela material, social ou emocional: amo-te, minha Sissi. Tomo a medida destas palavras, das quais se queixam que normalmente sou demasiado parcimonioso. Também sei o que elas significam na nossa situação. Finalmente, sim, amo-vos. E isso faz-me feliz. Porque nos havemos de nos privar da felicidade quando ela chega? Vamos viver!

P.S.: Vem à Rue de Bellechasse na próxima semana? René disse-me isso ontem. Espero que sim.

Albert".

Carta de Albert Camus a Simone de Beauvoir (1951)



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"Querido velho puma,

Que prazer em voltar a ler-te. Cada uma das tuas cartas me encanta e acorda-me do meu seco torpor. Se me visses de manhã, a ver as idas e vindas do carteiro atrás da janela como uma garota apaixonada, provavelmente rias-te de mim. Sei que és lisonjeiro, mas mesmo assim, há momentos em que, por mais determinada que esteja em permanecer mestre do seu destino e dos seus laços, uma mulher só pode render-se às inclinações surdas do seu sexo. A ternura por si só não é suficiente, requer outros prazeres; só tu sabes como apaziguar este desejo que me consome. Ou melhor, para o alimentar, infernal deleite celestial.

Eu ouço o que dizes. Também eu me entrego sem restrições. Sabes muito bem (e nisto admito tanto para mim como para ti) que só nos teus braços  posso realmente encontrar o conforto por que anseio. Depois de tantas noites de negligência, para não falar daquelas tardes sombrias em que Ele mal se digna falar comigo, ocupado que está a perseguir as saias de uma qualquer ingénua embevecida com as suas tiradas, a tua humanidade, a amável recepção do teu ouvido às minhas mudanças de humor, até as tuas ínfimas atenções, fazem-me um bem soberano. Dou por mim a falar de sede saciada, apetite satisfeito, sensualidade despertada... Também eu me sinto quase estúpida para pôr as coisas desta maneira. Assim seja: aqui estamos nós, os dois, espantados com a ingenuidade dos nossos corpos. Não é essa a definição de inocência?

O que pensas que é bom para os homens, como dizes, também é bom para o resto de nós, meu querido; no entanto, porquê abafar o fogo que finalmente triunfa sobre o Inverno? O amor é uma criança sem vergonha, gloriosa e impudica. E todos os nossos sentimentos, mesmo que proibidos (quem o decretou?) serão sempre mil vezes mais nobres, bonitos e vivos, do que esta situação qual ele me faz sofrer, que se está a tornar francamente ridícula. Além disso, não sei que tipo de mulher seria eu para denegrir o amor. Esta é a inelegância que Ele me provoca: sou reduzida, suprema indignidade, a queixar-me a um terceiro. A ti, de quem sinto tanta falta, Albert. A tua voz penetrante, o teu sorriso felino, a tua respiração quente no meu pescoço solitário. A ti, meu oásis no deserto. Os meus pensamentos estão sempre contigo, não duvides. Mal posso esperar para te ver no sábado. Farei os possíveis para ir assim que o jantar terminar.

Amoroso,

Toda Tua".

Resposta de Simone de Beauvoir a Albert Camus (1951)


4 comments:

  1. Não tinha ideia deste romance - que deu em nada, ou apenas em breve recordação; e hesito sobre divulgar tais intimidades, ainda que as considere dignas e mesmo algo pedagógicas. Mas sempre julguei que Sartre era, enquanto ser humano, inferior a Simone. A Camus admiro sem reservas.

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  2. Ninguém tinha ideia deste romance. As cartas estavam na mão de um coleccionador que só agora as divulgou e parece que vão publicá-las todas. A Philomag conseguiu autorização para publicar estas duas antecipadamente.
    Como assim, deu em nada? Isto aqui parece-me muito e, na verdade, nenhum deles destruiu as cartas. Não sabemos o que se passou ao certo entre eles. Até há pouco, nem sequer sabíamos que se tinha passado alguma coisa entre eles.
    Divulgar coisas íntimas é sempre polémico, embora à distância, quando as pessoas são já figuras históricas e não têm parceiros vivos, parece mais pedagógico e menos violador.
    Eles podiam ter deitado as cartas fora, se não as queriam publicadas, o que era expectável, sendo ambos figuras públicas e famosas, portanto, talvez não se importassem que fossem publicadas. Embora no caso dele, dado que morreu muito repentina e inesperadamente, podemos pensar que, o não deitá-las fora antes de morrer não foi um acto propositado.
    Sartre, como pessoa, faz-me lembrar o Woody Allen. Não sei ao certo porquê. Vaidoso. 'Entitled', como dizem os anglo-saxões. Se estivesse vivo agora, os 'woke' davam cabo dele. Enfim, dizem que mudou durante a guerra. As obras dele parecem indicar isso.

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  3. É minha convicção que as cartas se guardam pelo que contêm de íntimo e de lembrança. Destruí-las parece a quem as possui um acto de vandalismo e sacrilégio, não se destrói o que é ou foi sagrado. Julgo bastante difícil atirar fora pedaços de alma e verdade afectiva. Hoje, a questão está mais que resolvida, a tecla de delete reduz a zero sms, mails e o mais. Porque não se tem para com eles o mesmo enlevo.
    Gosto imenso de Woody Allen, não consigo vê-lo humanamente como um Sartre. E nem me parece vaidoso, mas pode ser. Sei-o de livros e filmes e li muito mais opiniões sobre o filósofo francês que sobre Woody cujo humor admiro (parece que só os europeus é que lhe acham graça). E, ao invés de muita gente, prefiro os filmes que realiza e também interpreta, onde me parece estar sempre a fazer de si mesmo.
    Bom dia

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  4. Destruir cartas não é um acto que nasceu com o delete da internet. Sempre se destruíram cartas. E muitos que as conservam não o fazem por amor, mas por poder e controlo, porque onde há amor, nada se perde. E na realidade, hoje a internet preserva tudo, mesmo o que se quer 'delitar', ao contrário do que em tempos acontecia. E para quê escrever hoje cartas de amor, onde a pessoa se revela intimamente ao outro (como se vê nestas cartas deles), se com a internet as pessoas devassam os outros na sua intimidade e matam todo o prazer e importância da descoberta? O romance transformado em serviços de informação... Onde fica a beleza da alma? Qual verdade afectiva...?
    Pode-se gostar do humor do Woody Allen (também gosto) mas não há como negar a sua imensa vaidade. Sim, ele faz dele mesmo nos seus filmes e isso ainda expõe mais esse seu carácter. Estou a lembrar-me do seu mais famoso filme, 'Manhattan', onde ele interpreta um homem de meia-idade (a idade que tinha) que persegue sexualmente uma garota de 16 anos e põe-na no filme a ser sua amante apaixonada como coisa absolutamente normal.. isto antes de ele mesmo, na vida real, deixar a mulher para perseguir a filha adoptiva de 13 anos... é preciso não ter noção das coisas e de si mesmo e ainda, ter um ego do tamanho do planeta...
    E, de facto, sei porque é que associo o Woody Allen ao Sarte. É porque nos seus filmes há um diálogo constante de teor muito existencialista. Sartre, no entanto, mudou com a guerra, saiu do seu individualismo e virou os olhos para a sociedade. Já Woody Allen parece nunca sair de si mesmo.

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