Segunda-feira saí da escola pelas cinco da tarde. Vinha andando a remoer a cena de um problema de um aluno quando já perto de casa, passo por uma rapariga que me diz olá. Confesso que fiquei a olhar para ela, percebendo muito bem que devia ser uma ex-aluna, mas sem saber quem, até que ela sorriu e vi logo quem era. Uma rapariga da idade do meu filho que foi minha aluna aí há quase 20 anos. Uma pessoa muito focada, estudiosa e voluntariosa que sabia o que queria. Ela é psicóloga. Então contou-me que a filha mais velha, que vai fazer sete anos, aos quatro apareceu-lhe um linfoma, assim do nada. Anda desde então em tratamentos, já teve que interrompê-los porque teve um AVC como reação a um dos medicamentos da quimioterapia. Entrou este ano para a escola, mas tem problemas de concentração, compreensão e memória por causa da químio. Perdeu o cabelo todo. Tem problemas de imagem, inseguranças que não são próprias daquela idade. Entretanto teve outro filho. A vida dela tem sido um inferno. Disse-me que está no trabalho mas desconcentrada e sem vontade, Uma pessoa que adora a profissão, mas está sempre numa grande angústia pela filha.. Disse-me que ela e o marido também tiveram o cancro, por vicariação. Uma miúda tão nova e com estes problemas todos às costas. Abalou-me. Acabei esta semana o tema da filosofia da religião com o problema do mal - o mal moral e o mal natural, como este do cancro da filhinha da S. Nenhum argumento a favor da existência de Deus nos convence da coexistência do mal como possibilidade e muito menos da sua utilidade. É claro que podia haver um Deus maligno, ao modo cartesiano. Pelo menos faz mais sentido quando se olha para estes sofrimentos inúteis. Enfim, cheguei a casa curvada com o problema daquele aluno, mais o do outro que ainda é pior, mais o desta rapariga cuja filha tem um cancro desde os quatro anos. Passei o o dia de ontem com uma nuvem na cabeça por causa destes problemas. Hoje um amigo disse-me que talvez a realidade seja relacional. Talvez não existam substâncias, objectos no sentido da física tradicional, mas interações quânticas, filosóficas e talvez sejamos apenas em função dos outros, do modo como nos afectam e os afectamos a eles. Ao modo do Sofista de Platão: se interages comigo e me afectas és real. E vice-versa.
Estou muito ligado à Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro. Se a sua ex-aluna precisar de alguma ajuda para / com a filha (ou mesmo para ela) que diga, que estamos cá para isso.
ReplyDeleteObrigada. Vou dizer-lhe. Não sei se ela conhece essa associação. Ela pareceu-me muito fragilizada.
ReplyDeletePoderia citar Eça (sem qualquer espécie de humor): "eu conheço a situação; é medonha". Passei por isso, só posso imaginar o que vai no coração dessa mãe. Mas é para estas (e por estas) famílias que a Acreditar existe.
ReplyDeletePois, eu lembro-me do que me disse e sei que, infelizmente, sabe o que ela está a passar.
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