August 06, 2022

Zelensky - o que faz um líder

 



Li este livro. O livro é escrito por um jornalista e isso vê-se na maneira como escreve. Se alguém espera que o autor tenha algum insight sobre o presidente da Ucrânia, desiluda-se. Não há aqui literatura, nem abordagem psicológica ou sociológica da personagem, apenas política. O livro não nos dá pistas da pessoa, só do político.
Porém, o autor descreve os factos explicando e contextualizando, de maneira a podermos perceber a importância de certos eventos, de certas declarações no contexto daquele país, etc. 
Apresenta os desenvolvimentos políticos desde a candidatura de Zelensky à presidência, na noite de passagem de ano de 2018, até à data de Abril deste ano. Conta as peripécias da campanha eleitoral, quem o rodeava, o que foi dito nos jornais e o que se sabe sobre os primeiros tempos da presidência, os amigos e os opositores, bem como episódios da sua vida anteriores -quase todos ligados ao programa de TV que produzia e interpretava- que explicam em parte a sua ascensão ao poder. O autor não é, neste livro, nem a favor, nem contra Zelensky. Tenta ser desapaixonado.

Percebemos que todos subestimaram Zelensky, mesmo os que o desafiaram para que se candidatasse. Esperavam manobrá-lo. Os opositores, dentro e fora da Ucrânia, subestimaram-no porque o viram sempre como o ex-comediante; ninguém pensava que ele ganhasse as eleições. Poroshenko estava convencido que ia ganhar as eleições, assim que as pessoas vissem um debate na TV entre si mesmo e o politicamente impreparado ex-comediante, ignorante dos processos da governação do Estado. Foi o oposto do que esperava. 

Percebemos que as pessoas votaram nele justamente por ser uma pessoa fora do aparelho, do sistema político. O discurso dele era populista: ia acabar com as benesses, com a corrupção, com o amiguismo, com os instalados, com a guerra nos territórios ocupados... Na verdade, depois de eleito tentou fazer isso mesmo, mas começou com uma razia ao parlamento e seus negócios bem como a todos os seus satélites. Ou seja, incomodou muita gente com poder e só lhe sobraram os amigos pessoais, da TV e alguns opositores de Poroshenko para trabalhar. Gente impreparada como ele para governar um país, muitos dos quais começaram imediatamente a tentar obter benesses. O oligarca dono da estação onde ele trabalhava pensou logo que ele ia ser uma marioneta nas suas mãos. Todos e cada um pensaram que podiam manipular a sua ignorância e ingenuidade em seu favor.. 

Ele estava um bocado perdido e a situação era difícil. Aos poucos começou a descartar os amigos dos cargos porque em vez de ajudar atrapalhavam a governação. Fez vários erros que foram aproveitados pelos ressabiados. Segundo o autor, Zelensky estava a querer representar o papel de um líder, mas sem conseguir sê-lo. No entanto, percebemos que era bem intencionado e queria mesmo mudar o status quo do país e modernizá-lo, só que não sabia como, não tinha pessoas competentes de confiança à sua volta e a situação era muito complicada, com Putin a destabilizar.

Em Dezembro de 2019, na reunião do Grupo da Normandia (é um grupo diplomático criado em junho de 2014, com o objetivo de encontrar resolução pacífica para o conflito que se seguiu à agressão militar da Rússia na Crimeia. Fazem parte dele: a Rússia e a Ucrânia como as nações em confronto e a Alemanha e a França como mediadores), realizada em França, na primeira vez que Zelensky teve oportunidade de falar directamente com Putin, como há muito queria, temos um vislumbre da sua potencialidade de líder.
Nas imagens do inicio da reunião vemos Zelensky nervoso e Putin entre o divertido e o desdenhoso. Não sabemos o que falaram entre eles directamente, mas vemos que a reunião não correu bem, nem para Zelensky que queria ter resolvido vários problemas (talvez ingenuamente) nem para Putin que esperava capitulações do presidente ucraniano, sempre referido na imprensa como, 'o ex-comediante de TV'. 

Na conferência de imprensa, no final da reunião, vemos um Zelensky diferente e nada nervoso - talvez, falando directamente com Putin, se tenha apercebido de que é um KGB merdoso de mau carácter. 
Zelensky diz que combinaram trocar prisioneiros mas pouco mais foi feito e fala sem entusiasmo nenhum, como se fosse uma perda de tempo. Putin fala na necessidade de cumprir os acordos de Minsk. Zelensky responde convidando os jornalistas todos para irem ao Donbass ver o resultado das bombas das forças ocupantes. Fala sempre na Rússia como as forças ocupantes, fala na recuperação da Crimeia ucraniana ocupada. Putin irritado tira o auricular enquanto Zelensky fala e começa a fazer desenhos com ar de desinteresse e Zelensky, vendo que o irritou, ainda insiste mais no assunto. Isto passa-se nos últimos dez minutos da conferência. Muito interessante, porque vê-se neste Zelensky o Zelensky que agora conhecemos, seguro de si e sem medo nenhum de Putin, nem de afrontá-lo ou de capitalizar o seu mau carácter.

Fica-se a pensar, depois de ler o livro: quantos políticos bem intencionados que querem mudar o sistema, "livrá-lo de pragas" como diz Zelensky na campanha eleitoral, estão [sempre] votados ao desastre porque o sistema, com excepção de poucas democracias muito adultas (mas mesmo assim vulneráveis, como se vê pelos EUA) não deixa. Mina todo o trabalho que tentam fazer e aproveita-se da inexperiência desses outsiders um pouco ingénuos para os destruir. Na Ucrânia isso não aconteceu porque Putin interveio com uma invasão tão terrorista e brutal que levou a que todos se unissem contra ele em volta do seu presidente, que teve a oportunidade de fazer vir ao de cima as suas qualidades de liderança. 

Nas democracias não há milagres. Há leis que responsabilizam os desonestos, os oportunistas, os lobistas saqueadores e que incentivam à participação política dos cidadãos ou... há o desastre. Infelizmente o nosso país está muito longe de ter honestidade na política, legislação de responsabilização e incentivo à participação dos cidadãos que trata como menores mentais. Por isso estamos a resvalar nos índices da democracia.




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