O mundo é uma realidade universal, desarticulada em bilhões de realidades individuais.
Miguel Torga nasceu neste dia de 12 de agosto em 1907 em São Martinho de Anta.
AR LIVRE
Ar livre, que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!
Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte...
De par em par, pois então?!
Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)
Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre, como se tem
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!
Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!
Laureado com numerosos prémios literários nacionais e internacionais, foi candidato a Prémio Nobel da Literatura." noticiasdonordeste.pt
Ter um destino é não caber no berço onde o corpo nasceu, é transpor as fronteiras uma a uma e morrer sem nenhuma.
(Torga poeta inteiro)
Orfeu rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis…
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como que usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
(Torga telúrico)
Alentejo
A luz que te ilumina,
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar!...
(Torga nordestino)
Nirvana
Paz das montanhas, meu alívio certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo, sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.
(Torga existencialista)
Livro de Horas
Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
Proveniente de uma família humilde de camponeses sem grandes recursos económicos teve uma infância rural dura, que lhe proporcionou conhecer a realidade do campo, feita de árduo trabalho contínuo. Após uma breve passagem pelo seminário de Lamego, emigrou com 13 anos para o Brasil, onde durante cinco anos trabalhou na fazenda de um tio, em Minas Gerais, como capinador, apanhador de café, vaqueiro e caçador de cobras. Como prémio, o tio há-de pagar-lhe o curso de Medicina.
De regresso a Portugal, em 1925, concluiu o ensino liceal e frequentou em Coimbra o curso de Medicina, que terminou em 1933. Exerceu a profissão de médico em São Martinho de Anta e em outras localidades do país, fixando-se definitivamente em Coimbra, como otorrinolaringologista, em 1941. Miguel Torga era ligado inicialmente ao grupo da revista Presença. Faleceu em 1995.
A maior desgraça que pode acontecer a um artista é começar pela literatura, em vez de começar pela vida.
De personalidade veemente e intransigente, foi poeta presencista, numa primeira fase associado ao grupo da Presença que cedo abandonou - o Presencismo foi a segunda fase do modernismo português, teve início no ano de 1927 com a publicação da Revista Presença: Folha de Arte e Crítica. A Revista Presença reuniu aqueles que não participaram do Orfismo em virtude de divergências estéticas. Ao contrário do Orfismo, que tinha como objetivo apresentar uma poesia que rompesse com os padrões literários vigentes, chocando e provocando a crítica e o público, sobretudo a burguesia, o Presencismo tinha como ideal interrogar o sentido da existência humana.
Adotou o pseudónimo Miguel Torga, em homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica, Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno, e ainda à torga, planta brava da montanha com fortes raízes.
A sua extensa obra aborda, entre outros temas, o drama da criação poética, o desespero humanista, o sentimento telúrico, a problemática religiosa, o iberismo e o universal.
Defensor da liberdade e da justiça, teve obras censuradas, foi vítima de perseguição política e esteve preso, apesar de nunca ter aderido a qualquer partido político. noticiasdonordeste.pt
“Registo de Adolfo [Correia] Rocha, de pseudónimo Miguel Torga”
pertencente ao fundo “PIDE” do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
(Torga resistente)
Ar livre, que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!
Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte...
De par em par, pois então?!
Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)
Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre, como se tem
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!
Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!
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Laureado com numerosos prémios literários nacionais e internacionais, foi candidato a Prémio Nobel da Literatura." noticiasdonordeste.pt
Nunca renegou as suas origens e sentiu-se sempre próximo das pessoas simples da região onde nasceu. É difícil escolher um poema ou um conto para o representar:
Publicou um total de 40 volumes: romances, contos, peças de teatro, poesia e diários. A obra de Miguel Torga exala o cheiro da terra, revela um amor dominante pelas coisas concretas e retrata o povo simples do norte de Portugal, cujos mistérios e mitos ganham entrada na obra lírica e narrativa do autor. O estilo deliberadamente arcaico da Torga possui a vividez e originalidade da língua dos agricultores do norte de Portugal. Na sua concisão, a sua prosa espelha a robustez da sua pátria rural. mertinwitt-litag.de
Torga não tem heterónimos, assina sempre com o mesmo pseudónimo e, reconhecemo-lo no que escreve. Ainda assim, tem muitos rostos ou sensibilidades.
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Orfeu rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis…
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como que usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
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Alentejo
A luz que te ilumina,
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar!...
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Nirvana
Paz das montanhas, meu alívio certo.
O girassol do mundo, aberto,
E o coração a vê-lo, sossegado.
Fresco e purificado,
O ar que se respira.
Os acordes da lira
Audíveis no silêncio do cenário.
A bem-aventurança sem mentira:
Asas nos pés e o céu desnecessário.
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(Torga existencialista)
Livro de Horas
Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
Casa Museu Miguel Torga (onde tenho que ir)
1. Acredito firmemente que deveria ter obtido o Nobel.
ReplyDelete2. Os meus poemas preferidos são "Viagem" e "Desfecho", uma inspiração de vida e o outro um retrato da minha relação com o divino.
3. É muito mal tratado atualmente, porque a ideologia de esquerda não o suporta.
Prefiro outro desfecho. E difícil escolher um poema preferido dele. Depende tanto do estado de ânimo. Mas se for de resistência gosto do que publiquei. Se for de amor gosto de Apelo. Sei lá. Gosta da prosa dele. Era uma pessoa bravia e romântica.
ReplyDeleteAs facções políticas rejeitarem poetas ou escritores por questões partidárias é um sinal de incultura, de falta de sensibilidade estética e de parvoíce.
Torga é uma presença cheia de luz e fica menos breu.
Vou aparecer como anónima porque o meu telemóvel é estúpido
Este ano, borrifei-me para as propostas de leitura do ME e propus aos alunos do 10.° ano que fizessem a análise de um conto (sorteado) de Torga (era uma análise simples, basicamente as categorias da narrativa, dado que o objetivo era levá-los a conhecer o escritor). Tive de explicar a mensagens dos contos à maioria dos alunos, absolutamente incapazes de os perceber. Daqui a dois anos, estarão a tirar 12, 13, 14 e 15 naquele arremedo de exame nacional.
ReplyDeleteCoitado do Torga!
Ainda não li toda a prosa dele.
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