Calhou hoje rever este filme, On the Basis of Sex, sobre a advogada e juíza do Supreme Court dos Estados Unidos, Ruth Bader Ginsburg, que morreu há um ano e tal.
Já tinha visto o filme, mas mais para ver como ela (eles, porque o marido também argumentou) argumentou o caso da discriminação de género no Supremo Tribunal, o que mudou a lei e fez jurisprudência. Hoje vi o filme na totalidade.
Ruth Ginsburg foi uma mulher notável, mas o marido dela também. Eram ambos estudantes em Harvard, ele dois anos à frente dela e ela uma das três mulheres do seu curso. Isto no início dos anos cinquenta do século passado. O Dean da faculdade era um machista empedernido e um parvalhão profissional.
Quando ela começou a estudar tinham já uma filha e ajudavam-se um ao outro, repartiam todas as tarefas, dentro e fora de casa. Nesse ano ele ficou doente com um cancro testicular, fez várias cirurgias e radiação, numa altura em que os tratamentos eram ainda mais bárbaros do que são hoje e a esperança de sobrevivência era de 5%.
Para além de cuidar dele e da filha enquanto ele esteve doente, o que foram mais de dois anos, ela assistia às suas aulas e às aulas dele. Ia às aulas dele tirar apontamentos e buscar bibliografia e depois dactilografava-lhe os trabalhos, entregava, tratava de tudo. Enfim, fez dois cursos ao mesmo tempo. Foi a primeira no seu curso.
Ele sobreviveu à doença (veio a morrer de cancro cinquenta anos depois) especializou-se em direito fiscal, foi logo contratado e era um advogado brilhante. Ela não conseguiu que ninguém a contratasse por ser mulher, o que lhe diziam na cara, de maneira que foi dar aulas para uma Universidade em Nova Iorque onde ambos vivam.
Quando ela pega no caso que mudou a lei, foi ele que a desafiou e juntou-se a ela na defesa do caso, contra a opinião da firma dele que achava que ia ser um fiasco que iria dar mau nome à firma. O resto é história.
O que achei interessante neste filme foi a perspectiva. Normalmente estes filmes de advogados focam-se na pessoa e na seu trabalho e passam-se muito dentro dos tribunais, mas este filme dá-nos o contexto da carreira dela.
Ela e o marido faziam um casal extraordinário. Numa época em que estava escrito na lei que as mulheres deviam estar em casa a tratar das crianças e em que os homens tratavam as mulheres como se fossem crianças de três anos, o marido dela tinha uma maneira de ver o mundo e uma mentalidade que ainda nos dias de hoje é difícil de encontrar.
Não sei se ela teria conseguido tudo o que conseguiu sem o apoio dele, porque ela teve tantos obstáculos e ninguém a levava a sério por ser uma mulher, apesar de ser a primeira do curso, assim como ele não teria chegado onde chegou -ou talvez nem tivesse acabado o curso- sem o apoio dela quando esteve doente.
Fui pesquisar se as coisas eram mesmo assim porque ele parece ser demasiado bom para ser verdade. Mas era mesmo assim, não é uma idealização romântica à americana. Isso impressionou-me mesmo porque eram um casal com as suas coisas, claro, mas com um respeito mútuo e uma capacidade de se ajudarem e compreenderem um ao outro, uma fé um no outro, raras. Um filme muito inspirador.
Ruth Ginsburg and Marty Ginsburg
Sabe que, por vezes, penso que, com tanto feminismo, gente acordada, educação para todos, etc., estamos num caminho inverso ao iniciado parcamente no século passado? Por outro lado, também não me parece que adotar os comportamentos e vícios dos homens seja o melhor caminho.
ReplyDeleteOu então sou eu que estou velho e um produto do XX.
Não se consegue mudar o estado de coisas de milhares de anos de repente e de maneira limpa sem avanços e recuos, perturbações, forças a lutar contra. O problema das revoluções é que durante muito tempo, antes de haver uma nova ordem acordada (de acordo, não de woke), é viver-se um certo caos de experimentação não pensada.
ReplyDeletePrecisamos de um novo modelo de organização social que corrija os erros do passado e responda aos problemas actuais inteiramente novos.
Este assunto é tão complexo que se calhar tem de ser abordado por partes e ir-se resolvendo sectorialmente. Mas é um assunto fascinante para pensar porque tem muitos desafios cativantes.