July 10, 2022

É fácil falar de maneira a todos estarem de acordo: é só reduzir o discurso a princípios gerais




Difícil é extrair deles as políticas de maneira consensual. Por exemplo, neste artigo Cândida Almeida diz frases como: 
- todo o ser humano deve ser preparado para viver em sociedade num espírito de paz;
- ministrar noções sobre a igualdade de género e de oportunidades, a não discriminação, a aceitação da diferença, a tolerância... são obrigações do Estado;
 tratar as pessoas de acordo com a dignidade humana, alertar para a desestruturação da sociedade e do Estado se capturados pela corrupção, prevenir a gravidez indesejada das adolescentes, chamar a atenção para a gravidade da violência no namoro e da violência doméstica...
Depois diz que há pais que não concordam com estes princípios porque proíbem os filhos de ir a estas aulas. Ora, como a Ex-diretora do DCIAP muito bem sabe, há um vasto oceano a separar as declarações de princípios gerais e as formas da sua aplicação (se não houvesse não havia ideologias e partidos diferentes uns dos outros), de maneira que não querer a disciplina não é igual a ser contra aqueles princípios.

Exemplos: todo o ser humano deve ser preparado para viver em sociedade num espírito de paz; [aceitar] a não discriminação, a aceitação da diferença - vejamos: como é que a guerra que o ex-SE, agora ministro da educação fez aos alunos e seus pais, com atropelos à legislação sobre os poderes do conselho de turma, se coaduna com o espírito de paz e a aceitação da diferença que prega - diferença de opiniões, de posições, etc? E que interessa pregar a paz e a aceitação da diversidade e depois na prática fazer guerra a quem é diverso?

Pode dizer-se, como a autora do artigo diz, que os pais não são donos dos filhos, o que é verdade, mas o Estado também não o é.  
Compete ao Estado programar a educação e a cultura, desde que não o faça segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. Aqui não quero ser mal-educada, mas esta afirmação é estúpida porque toda a educação tem por base opções filosóficas, estéticas, políticas, etc. Até em disciplinas como a Matemática ou a Biologia, quanto mais a Cidadania que pressupõe um certo tipo de organização política e social com certos valores.

Pode dizer-se, como ela diz, que As disciplinas constantes do programa de educação adoptado pelo Estado são obrigatórias e os pais não podem impedir os filhos de as frequentar.  Isso estaria tudo muito certo se a disciplina de Cidadania tivesse tido o consenso social que esta autora tanto cita, mas não teve e foi uma imposição unilateral do senhor João Costa apoiada pelos partidos da geringonça. Ora, no mesmo espírito de cidadania que advoga, as disciplinas que interferem nos valores não consensuais das sociedades devem ser acordadas antes de impostas unilateralmente.

Cândida Almeida refere que não faz sentido abrir uma excepção a estes pais porque é um precedente grave já que poderia levar a que outros, por exemplo, não quisessem que os filhos aprendessem História. Vejamos: se a sociedade como um todo discordasse do modo como o programa de História é dado, ele tinha que ser mudado... isso é a democracia. É por isso que temos de lutar constantemente por esses valores. Porque eles não são garantidos. Porém, lutar pelos valores não é impô-los unilateralmente. Por exemplo, no Texas há escolas onde se ensina o criacionismo paralelamente ao evolucionismo. É assustador? Pois é, mas é a democracia a funcionar. As pessoas de lá não acreditam na ciência. A maneira de mudar este estado de coisas não é impôr, contra as pessoas, o conhecimento científico como um dogma, mas apoiar a Ciência no sentido de a tornar mais forte e credível. Por exemplo, de cada vez que um governo encomenda uma tese de mestrado ou de doutoramento (que depois é desacreditada) para fazer passar uma política, está a cavar a sepultura da credibilidade científica... e depois tanto faz que tenha uma disciplina a pregar as virtudes da Ciência...

Podemos dizer que os pais dos dois rapazes são intransigentes em termos das políticas acerca da sexualidade. Também me parece que são, mas têm o direito de o ser e de educar os filhos nos valores em que acreditam. Não se pode pregar a inclusão e depois perseguir os que pensam de maneira diferente. Não somos uma sociedade comunista onde se defende que a pessoa não existe para si, que a única justificação para a existência da pessoa é servir a sociedade e que o Estado pode dispor da pessoa como entende melhor. Ou já somos e não dei por nada?

Ao contrário de Cândida Almeida que só fala de princípios mas está fora das escolas e não sabe o que lá se passa, entendo essa disciplina uma inutilidade. 
Os temas que aborda são abordados em outras disciplinas, sendo que a diferença é que ao serem abordados nas disciplinas próprias, os professores têm formação para as trabalharem de modo objectivo e consequente, ao passo que como as coisas são agora, em que qualquer professor pode ser chamado a trabalhar esses temas, eles são abordados de maneira subjectiva e muitos vezes enviesada. Às vezes até com a ignorância da superficialidade.

A sexualidade, por exemplo, é abordada em vários anos escolares na disciplina de Biologia por professores que têm formação para tal - as diferenças sexuais, a reprodução, a contracepção, etc. Também é abordada na disciplina de Psicologia (uma disciplina facultativa que em meu entender devia ser obrigatória no 12º ano) - a perspectiva freudiana, a sexualidade infantil, a educação psicossexual, a diversidade da expressão da sexualidade, etc. 

É muito diferente estes temas serem abordados por pessoas que os estudam do que ser trabalhada por curiosos, que é o que acontece agora. Estes temas podem ser abordado por um professor de inglês, de geografia, de matemática, de moral, etc. Como consequência, limitam-se a repetir diretrizes do catecismo do ministro ou a ir buscar uns filmes e umas ideias à internet e na maioria das vezes repetem-nos no ano a seguir e os alunos ouvem todos os anos as mesmas coisas. É uma inutilidade e só na cabeça da Cândida Almeida e de outras pessoas que falam da escola com a maior ignorância do que lá se passa é que esta disciplina forma cidadãos tolerantes, críticos, etc. Deixa-me rir... 

No secundário é um bocadinho melhor porque não é uma disciplina com carga horária própria (embora o ex-SE, agora ministro quisesse, muito irresponsavelmente, a certa altura, que os professores dedicassem 25% do tempo anual de aulas com ela...) mas consiste em haver temas e nós, cada um na sua disciplina, trabalhar para um tema a partir de uma rubrica do programa. Por exemplo, o tema pode ser, 'Comportamentos de Risco' e o professor da disciplina aproveita uma rubrica do programa que tem que ver com o assunto e dá-lhe uma abordagem que inclua o tema.

Em suma: as coisas são complexas e apenas dizer, 'o Estado tem obrigação de formar jovens e há pais que são contra a lei' é desonesto.

A disciplina de Cidadania é, para mim, essencial e necessária à formação e desenvolvimento harmonioso da personalidade da criança.

A Convenção dos Direitos da Criança diz que criança é todo o ser humano menor de 18 anos e que importa prepará-la para viver uma vida individual na sociedade e ser educada no espírito dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas e em particular num espírito de paz, dignidade, tolerância e solidariedade. Ministrar noções sobre a igualdade de género e de oportunidades, a não discriminação, a aceitação da diferença, a tolerância... são obrigações do Estado garantindo que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Para cumprimento destes desígnios humanistas e democráticos importa esta disciplina, na qual devem ser expostos os direitos e deveres de todos/as: tratar as pessoas de acordo com a dignidade humana, alertar para a desestruturação da sociedade e do Estado se capturados pela corrupção, prevenir a gravidez indesejada das adolescentes, chamar a atenção para a gravidade da violência no namoro e da violência doméstica... Nem todos pensam assim. Dois irmãos, alunos em escola de Famalicão, são proibidos pelos pais de frequentar as aulas de Cidadania. Com todo o respeito, fazem mal. Os pais não são donos dos filhos. Compete ao Estado programar a educação e a cultura, desde que não o faça segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. A primazia na educação dos filhos é dos pais, incumbindo ao Estado cooperar, democratizar a educação de modo a que esta contribua para a igualdade de oportunidades, o desenvolvimento da personalidade, do espírito de tolerância e compreensão mútua, da solidariedade e responsabilidade. Comentava a deputada Isabel Moreira não imaginar pessoa com bom senso proibir a frequência de aulas de História só por não lhe agradar o modo como são tratados os Descobrimentos. As disciplinas constantes do programa de educação adoptado pelo Estado são obrigatórias e os pais não podem impedir os filhos de as frequentar. As matérias versadas em Cidadania devem abrir ao mundo o pensamento das crianças e saídas para os problemas sem as influenciar na escolha de um determinado caminho. Com o devido respeito, discordo do MP que defende transferir para a escola a responsabilidade pela guarda daqueles jovens. Não é viável, nem efectivável, a escola não está preparada para assumir responsabilidades parentais. Há que apurar das consequências negativas presentes e futuras, da deficiente formação da personalidade das crianças no âmbito dos Direitos Humanos e da preparação para a vida colectiva e individual face à postura intransigente dos pais. Então decidir-se-á, de acordo com o superior interesse daquelas, da sua eventual colocação temporária em estabelecimento apropriado, considerando que têm direito a um saudável e harmonioso desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.

Cândida Almeida - *Ex-diretora do DCIAP

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