April 04, 2022

A propósito de um artigo de Bagão Félix - parte II



Intitulado, Guerra(s) e ética(s)


A começar pelo fim e recuando (mas não como o exército de Putin).


2. Há um estranho (e injusto) paradoxo nesta invasão. Apesar de vivermos tempos de completa globalização, a intensidade moral de uma guerra continua a variar em função da proximidade geográfica e do sentimento de aproximação social, cultural e psicológica do seu impacto. Outros conflitos em África, no Médio Oriente, na Chechénia ou noutra parte do planeta, acontecem longe de nós e distantes da nossa consciência. De repente, como que acordamos para o que agora está mais próximo. A barbárie, a violência indiscriminada, a morte de inocentes, a ameaça de uma guerra nuclear, estão agora perto dos nossos olhos.
Esta ‘vizinhança’ tem-se manifestado, pelo acentuado e corajoso conjunto de sanções contra a Rússia, e, noutro plano, pelas cadeias de solidariedade dos países que acolhem famílias e pelos apoios que, por todo o lado, brotam.

Não vejo aqui nenhum paradoxo. Bagão Félix fala como se esta guerra fosse igual a tantas outras, mas não é. Esta guerra tem um Presidente que todos os dias está no Parlamento dos países europeus e nas redes sociais a contar o que se passa e a documentar o que os atacantes fazem, hora a hora. Entrou-nos pela casa adentro como um familiar. Ele e os soldados e a população em geral que postam nas redes sociais o 'filme' dos acontecimentos em tempo real. Não é uma guerra com uns jornalistas que mostram umas imagens de atrocidades no meio de destroços na TV por uns minutos e mais nada. Na Síria, por exemplo, durante muito tempo nem se percebeu que guerra era aquela ou que se estava a passar. Nunca tivemos a voz dos oprimidos. Esta guerra tem uma população que ficou, como o seu Presidente, no terreno, a lutar. A coragem dele e do seu povo inspiraram os europeus a também ter coragem. Em 2014 a Crimeia também era vizinha e nada disto se passou. Faltou-lhe, então, um líder à altura, capaz de convocar e reunir esforços. 
Depois, é verdade que a proximidade da guerra tem importância, mas não por serem vizinhos (em 2014 já o eram) e sim porque o desfecho da guerra implica alterações reais no mapa europeu e na vida e dia-a-dia do futuro dos europeus. E se se tem recebido muito bem os ucranianos refugiados é em parte porque temos uma história comum de refugiados de déspotas com tendências imperialistas aqui na Europa e porque os que fogem são mulheres e crianças. As mulheres com formação académica, logo relativamente fáceis de integrar, sem grandes custos sociais. Ainda ontem vi nas notícias que os refugiados médicos já estão a trabalhar... E, muito importante, a maioria dos refugiados pede asilo temporariamente, porque querem voltar à Ucrânia assim que a guerra acabar. Se bem nos lembramos, a Alemanha, quando foi da guerra da Síria, começou por abrir as portas a toda a gente e foi inundada por um milhão de refugiados, a maioria homens novos, sem formação académica e a quererem ficar definitivamente. Difíceis de integrar (recorriam às mesquitas) e até de recolher, porque é diferente aceitarmos em nossas casas uma mulher com formação académica e uma ou duas crianças do que um homem de 20 e tal anos, sozinho (ou que veio com outros homens idênticos), sem perspectivas de se integrar socialmente por falta de formação, vindo de uma zona cheia de gente do Daesh.

1.A guerra voltou ao Velho Continente. Uma invasão de um país soberano, que, depois do fim da Guerra Fria, se julgaria impossível. (...)
Uma guerra nunca tem subjacente a ética do bem. «Toda a guerra, de si, já contraria a ética», como afirmou João Paulo II. Mesmo o conceito tomista de ‘guerra justa’, dependente da finalidade de quem a promove e do modo como é conduzida, dificilmente se poderia justificar no actual século. 

Uma guerra verdadeiramente libertadora tem características de justiça. Por exemplo, o que se passa agora no Afeganistão onde uma minoria predadora com costumes bárbaros e mentalidade esclavagista -os talibãs- tomaram conta do poder contra a maioria da população e agem como carcereiros e carrascos, sobretudo das mulheres. É como estar a ver o retorno da escravatura, numa altura em que se tentar lidar com o que foi a escravatura ocidental e não fazer nada, como se fosse normal que uma meia dúzia de homens predadores tomassem todas as mulheres de um país como reféns e escravas dos seus desejos de poder e de líbido. 
É pior deixar que aconteça ou até negociar com esses criminosos, como têm feito os EUA, a Noruega, a ONU -é uma cumplicidade com a predação- do que libertá-los, mesmo sabendo que a guerra leva sempre a destruição e miséria a muitos. De maneira que, às vezes, a guerra tem uma intenção ética de livrar as pessoas de grandes males. A guerra de resistência a Hitler foi uma guerra com intenção ética.
Dizer que a guerra, porque é violência, nunca tem uma intenção ética é dizer que a justiça, porque é violência, nunca tem uma intenção ética. Um juíz, ao condenar uma pessoa ao encarceramento, pratica violência - embora dentro de um quadro legal e em representação do povo e não em seu nome próprio, o acto de condenar alguém ao sofrimento e dor que representa a cadeia (ou a morte em alguns países) é uma violência à qual a pessoa não pode fugir. A pessoa ouve a sentença, sentada ou em pé, sem se rebelar porque sabe que se se revoltar é arrastada à força pela polícia que a guarda. Ainda há pouco tempo vimos Rendeiro num tribunal começar a tremer involuntariamente ao ouvir a sentença de que ia continuar preso. Portanto, se uma guerra se inclui num quadro legal e de representação das Nações da Terra, Unidas, em defesa de princípios humanos fundamentais e tem um fim de libertar pessoas e povos de predadores, tem um fim ético, apesar da violência que leva consigo. É claro que a guerra é sempre o último recurso, quando mais nada funciona, o que por vezes é o caso com líderes psicopatas, predadores, criminosos violentos.

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