December 12, 2021

Magritte pela manhã

 


As pinturas de Magritte intendem criar espanto e também algum desconforto que provoque o pensamento.
Por exemplo, nesta obra a guache, da qual Magritte fez variantes, vemos uma torre claramente medieval, a levantar voo, suspensa no ar, desenraizada. O que provoca espanto é ver as raízes da torre como coisas vivas -porque são raízes de árvore; o que causa desconforto é a aparente ausência de sentido provocada pela sua descontextualização - não há cenário, a torre não está inserida num contexto que nos ajude a percebê-la e ao seu movimento. Está só ali, em nossa frente e não podemos desviar o olhar dela para outros pormenores da pintura, porque não existem. O autor quer-nos a pensar. Ora, o que podemos pensar?

Podemos pensar que a árvore está desenraizada como uma maneira de nos confrontarmos com o preguiçoso conforto de sempre ajuizarmos e julgarmos a realidade a partir das nossa próprias raízes. Uma maneira de dizer que para pensar e ver o que é, temos de nos desenraizar, em parte, de nós próprios.

Podemos olhar para a torre transformada em árvore e pensar que todo o objecto é várias coisas ou melhor, se pode metamorfosear em outras coisas: aqui, uma torre medieval morreu mas dela brota uma outra forma de vida, uma árvore.

Podemos pensar que temos muitas torres medievais arruinadas dentro de nós que podemos metamorfosear em princípios vivos. Que podemos metamorfosear-nos a nós próprios e não estamos destinados a ser uma coisa fixa para a vida. Podemos desconstruir-nos e construir-nos.

Podemos pensar que o autor faz uma analogia com a criatividade própria dos artistas que exploram um filão qualquer e que a certa altura, quando esse filão, essa fase que os alimenta, começa a perder a força e a cintilação, arrancam-na de si e dela fazem nascer um outro ser, um outro filão criador.

Podemos pensar nas épocas históricas: por exemplo, como a época medieval, donde sai esta torre, foi o solo de onde germinaram as raízes renascentistas.

Podemos pensar, a partir daqui, na natureza de todas as metamorfoses, físicas, mentais e espirituais.

Hoje, fez-me pensar em Assange, preso numa torre figurativamente medieval nos seus contornos impenetráveis e na mentalidade de quem o mantém preso.  E na sua metamorfose em herói, que o é, a partir da ruína da sua vida particular, cerceada tão cedo e há tanto tempo.

Um observador que perceba, por experiência profissional, de pintura e de técnicas de pintura poderá ainda pensar outras ideias que a mim, que não tenho os conhecimentos dessa experiência, me estão vedadas e, no caso desse observador ser grande conhecedor de Magritte, ainda poderá retirar outros prazeres e ensinamentos da obra.

Outro dia li aí num jornal, já não lembro qual, um indivíduo -já não lembro quem- dizer que não é preciso nenhum conhecimento para apreciar qualquer obra de arte pois basta olhar e sentir alguma coisa. Não estou de acordo. É certo que há pessoas com uma inclinação tão grande para a arte que desde muito pequenos mostram grande sensibilidade estética. E é verdade que podemos olhar para uma obra e sentir logo qualquer coisa,  sobretudo se são obras figurativas de grande impacto, mas não sendo obras desse género e não tendo as pessoas nenhum ponto de apoio para fazer uma abordagem às obras, não sabem, nem o que pensar delas, nem o que sentir. Nem sequer são capazes de dizer se gostam. São, muitas obras, como as torres medievais: quase impenetráveis. 

Quanto mais conhecemos, não apenas da obra e do autor, mas de outros assuntos também, e quanto mais rica é a nossa experiência de vida, maior é o prazer e os conhecimentos que retiramos dela. O prazer que se sente com uma obra é proporcional aquilo que somos capazes de pensar dela, ao tipo de relação que somos capazes de estabelecer entre a obra e a nossa vida física, emocional e mental, mais o que sabemos da experiência humana, da vida dos outros, das sociedades, da realidade, enfim. 

Uma obra estética é como uma conversa com o artista: ele quis mostrar-nos qualquer coisa que para ele faz (ou dá) sentido a uma parte da realidade, que para ele é significativa e quis partilhar essa ideia ou emoção connosco. É como uma poesia, só que pictórica, icónica. Quanto mais rica é a nossa linguagem, mais possibilidade temos de penetrar na obra, compreender a sua linguagem e metamorfoseá-la numa experiência que nos enriqueça.

A apreciação estética desenvolve-se e educa-se, da mesma maneira que se educam os sentimentos.




René Magritte

La folie Almayer

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