Há pouco tempo dei-me ao trabalho de ver o filme, "State Funeral" (2019). O funeral a que o título alude é o de Estaline. O filme, que é um documentário, é composto de imagens estatais dos cinco dias que passaram entre Estaline morrer e o funeral realizar-se. É difícil de ver porque é mais do mesmo durante duas horas, mas para quem não tem ideia do que era a vida infernal no regime soviético e quer ter, é necessário engolir aquilo tudo até à náusea para ter um pequeníssimo vislumbre do que é viver constantemente à beira de enlouquecer numa sociedade governada por loucos, assassinos e imbecis.
O filme começa com a morte dele. Os altifalantes de propaganda que estão activos 24 horas por dia (isso fez-me lembrar os primeiros anos a viver aqui em Setúbal que tinha os altifalantes da sede do PCP, na rua das camionetas, aos berros, todo o santo dia a vomitar catarinas eufémicas, povos unidos, paz, pão e habitação, discursos de propaganda... não se podia passar por ali...) começam a dar a notícia da morte dele, com o relato do boletim médico até à cor da urina, entrecortado com frases do género, 'agora que o nosso líder nos deixou estamos sozinhos', 'ele que tinha um coração puro e só pensava no bem do povo', 'ele que era a nossa luz', 'trabalhadores, juntos vamos deixar Estaline orgulhoso do nosso comunismo', 'vamos ser cada vez mais comunistas', 'Estaline foi uma grande perda para a humanidade', várias vezes se referem a ele com o termo, 'sagrado'... um inferno... para nós um inferno de duas horas mas para os coitados que lá viviam foram cinco dias até o enfiaram no mausoléu ao lado do outro empalhado que já lá estava em adoração religiosa.
O filme não é só dos russos de Moscovo, não. Chegam soviéticos de todos os países do Pacto de Varsóvia ao beija-mão. Nas fábricas, convocam-se os trabalhadores, nem que estejam em casa a dormir, para irem lá ouvir os discursos do camarada-chefe sobre as virtudes sagradas de Estaline. Todos batem palmas com cara de quem tem de fazer pose, não vá o diabo do maluco que se segue tecê-las. Fez-me lembrar a história que Soljenítsin conta no 'Gulag' dos trabalhadores que depois de um discurso de Estaline batiam palmas e ninguém queria ser o primeiro a deixar de bater as palmas com medo de ser acusado de anti-comunista e então ficaram naquilo de bater palmas até quase desmaiarem.
No dia do funeral, na Praça Vermelha, estão lá todos os chefes, desde Nikita Khrushchov (com aquele perfil tão parecido, na barriga e formato da cabeça, a Hitchcock) e Molotov a Malenkov e Beria - estes dois, grandes facínoras, especialmente Beria que gostava de ser ele mesmo a torturar os presos.
Muita gente vai ver o caixão, nesses dias em que está exposto (no dia do funeral morrem muitos esmagados). Muitos choram - uma infantilidade embaraçosa de ver, essa de chorar a morte de um assassino alucinado que matou o seu próprio povo à fome, com trabalhos forçados e tortura - mas outros, também muitos, têm uma cara zangada e parece que foram lá só para ter a certeza que o homem estava mesmo morto.
Vale a pena ver porque se percebe um bocadinho, mesmo para quem não conhece os factos e a história da URSS, o nível de alucinação infernal em que as pessoas eram obrigadas a viver.
O comunismo é uma ideologia que em todos os países em que foi implantado só trouxe inferno e loucura ao próprio povo que esmaga. Gerações inteiras sacrificadas às mãos de loucos, de assassinos, de ditadores sanguinários. Não há uma única excepção.
O filme existe por aí com legendas.
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