August 01, 2021

Leituras pela manhã - 'solitários, desadaptados e invisíveis do mundo'

 


Uma Literatura à beira do amanhecer

Por Richard Zenith

Uma tarde, enquanto navegava na livraria inglesa localizada a meio caminho entre dois dos escritórios onde trabalhou durante algumas horas, quase todos os dias, Fernando Pessoa avistou uma cópia do livro Ulysses de James Joyce. O escândalo gerado pela sua publicação parcial em The Little Review, entre 1918 e 1920, pode não ter chegado à atenção de Pessoa, mas em 1933 ele sabia tudo sobre o seu estatuto de celebridade como livro proibido, considerado obsceno e ainda indisponível no Reino Unido e nos Estados Unidos. A cópia que ele viu - e comprou - era da edição de dois volumes da Odyssey, publicada em Dezembro de 1932, na Alemanha. Ambos os volumes chegaram até nós em perfeitas condições, sem sequer uma marca de lápis fugaz. A única prova de que Pessoa leu realmente Ulisses, ou o suficiente para saber que não queria ler mais é o comentário lacónico que rabiscou, em português, num pedaço de papel:

A arte de James Joyce, como a de Mallarmé é a arte preocupada com o método, com a forma como é feita. Mesmo a sensualidade de Ulisses é um sintoma de intermediação. É um delírio onírico - do tipo tratado pelos psiquiatras - apresentado como um fim em si mesmo.

Uma literatura à beira do amanhecer.

A reacção pouco entusiástica de Pessoa ao livro lembra o comentário de Virginia Woolf num registo diário, escrito pouco depois da publicação do romance completo em Paris, em 1922: "Quando se pode ter carne cozinhada, porquê tê-la crua?" Pode também recordar-nos a reacção muito mais positiva de Edmund Wilson na crítica de livro que escreveu para 'A Nova República': "O Sr. Joyce consegue dar o efeito de mentes humanas não editadas, à deriva sem rumo, indo de uma trivialidade para outra, confuso e desviado pela memória, pela sensação e pela inibição. É, em suma, talvez a radiografia mais fiel jamais tirada da consciência humana comum".

Ao contrário de qualquer destes escritores, Pessoa não estava interessado em representar a consciência humana na literatura; queria analisá-la e, se possível, expandi-la. O seu 'Livro do Desassossego' medita frequentemente sobre a natureza e os limites da consciência e sobre a sua relação com o inconsciente. Bernardo Soares lembra repetidamente ao seu leitor ideal que a consciência nos engana, tomando-a solipsisticamente como a medida da realidade. Somos largamente governados, insiste ele, por instintos inconscientes e a nossa vida, como a de qualquer outro animal, está dependente da dimensão externa. Para Pessoa havia também a realidade, ou a possibilidade real, de uma dimensão espiritual, sendo todo o nosso drama humano um mero análogo de algum outro tipo de vida.

Joyce e Pessoa tinham uma característica invulgar em comum: a 'brontofobia'. Se uma tempestade se levantasse enquanto ele e Nora iam de carro para algum lugar, Joyce ordenaria imediatamente ao condutor que desse meia-volta e os levasse para casa. Pessoa, por outro lado, não se sentia a salvo das convulsões do tempo, mesmo quando se encontrava em segurança dentro de casa. Uma tarde, ele e o pintor José de Almada Negreiros estavam a conversar calmamente no 'Café Martinho da Arcada' quando uma tempestade se abateu sobre eles. Almada Negreiros, assertivo na sua arte e impetuoso no seu comportamento, correu para a porta para que pudesse deleitar-se com a visão da chuva a jorrar sobre a Praça do Comércio, enquanto relâmpagos crepitavam e trovões ressoavam. Quando se virou para dizer alguma coisa a Pessoa, parou a meia-entrada, surpreendido por não ver ali ninguém. Olhando mais de perto, notou um sapato preto a sair de debaixo da sua mesa, onde o seu amigo, tremendo, se tinha abrigado.

Joyce e Pessoa, que tinham ambos rejeitado o catolicismo desde o início, ainda mantinham um sentimento de humildade assombrosa em relação aos caprichos da natureza e ambos estavam inclinados a ver sinais místicos nos pormenores estranhos da vida, significados simbólicos nas coincidências do quotidiano. Joyce fez uso desta inclinação na sua escrita, que está entrelaçada com sinais e símbolos, para transmitir a maravilha da vida e a nossa percepção da mesma. Leu uma série de livros de místicos e teosofistas, e os seus próprios livros, especialmente 'Ulisses', estão semeados de alusões às doutrinas do Hermetismo, Cabala e alquimia; no entanto, também ridicularizou aqueles que, como Yeats, atribuem grande importância ao ocultismo. Os símbolos e doutrinas esotéricas serviram Joyce, ao que parece, como metáforas para o lado oculto da consciência humana e para os mistérios difíceis de decifrar da vida na Terra. Ele não teve paciência para a ideia de que este mundo é apenas uma sombra de algum outro lugar mais perfeito. Pessoa, pelo contrário, usou a sua escrita para ir em busca de algo antes e depois de símbolos, palavras e da vida que conhecemos.

A busca de Deus por Pessoa era uma busca da língua e a sua busca da língua era uma busca de Deus. Mas ele não era um inovador linguístico como James Joyce, que inventou milhares de novas palavras e mesmo novas formas de sintaxe para o seu trabalho mais desafiante, Finnegans Wake (1939). Pessoa empurrou suavemente contra as fronteiras do português e do inglês, cunhando neologismos ocasionais e usando palavras de novas formas, mas não fez qualquer tentativa de reinventar a língua. Aspirava, mais simplesmente, a usar o vocabulário e a gramática recebidos com precisão, para fazer com que a língua se aproximasse das coisas que ela denota. O seu projecto linguístico tem algumas semelhanças com o de outro contemporâneo, Ludwig Wittgenstein. 

Alberto Caeiro, em particular, soa por vezes como o clarificador compulsivo das 'Investigações Filosóficas'. No poema 45 de "O Guardador de Rebanhos", por exemplo:

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.

Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.

Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes.

 

Num outro poema, o poeta da natureza, Caeiro, censura São Francisco de Assis pelo antropomorfismo que percorre o seu "Cântico do Sol":


Porquê chamar à água minha irmã se a água não é minha irmã?

Para a sentir melhor?

Sinto-a melhor bebendo-a do que chamando-lhe algo...

Irmã, ou mãe, ou filha.

 

Para Pessoa-Caeiro, as palavras são devidamente utilizadas apenas quando e na medida exacta em que são necessárias.

Depois de Caeiro ter deixado de poetizar, em 1930, Bernardo Soares continuou a sua campanha em nome de uma linguagem límpida e precisa, radiográfica, embora com um resultado bastante diferente. Caeiro tinha celebrado o mundo exterior, tudo o que se conhece através da visão, audição, e os outros sentidos. Orgulhava-se de ser "superficial", afirmando que a realidade não tem "profundidade" interior, excepto no nosso pensamento confuso. Soares, enquanto via tudo com não menos clareza, interiorizou o mundo e depois - numa reviravolta instantânea - externalizou as suas sensações sobre ele. 

O seu mundo incluía coisas sonhadas e imaginadas, assim como coisas vistas. Caeiro tinha dito: "Eis o mundo!" Soares utilizou a sua ciência da linguagem para se tornar o mundo que contemplava de perto, transformando-se nas passagens primorosamente compostas que formam 'O Livro do Desassossego':

Eu sou, em grande medida, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em frases e parágrafos, pontuo-me a mim próprio. [...] Transformei-me na personagem de um livro, de uma vida que se lê.

Foi uma dolorosa metamorfose, conseguida ao preço de uma solidão intransigente. A tentativa do guarda-livros assistente de viver uma vida completamente independente, dedicada apenas às suas sensações do que viu, sentiu, e sonhou - sem concessões - provou ser quase insuportável, embora de forma alguma infrutífera. "Toda esta insistência estúpida em ser auto-suficiente! Toda esta consciência zombeteira das sensações fingidas! Toda esta imbróglio da minha alma com estas sensações", desabafa Soares num momento de exasperação, moldando linguisticamente ainda mais sensações em mais uma passagem cintilante do seu sumptuoso diário, deixado para quem quer que se mova, inspire, ou pelo menos divirta-se.

À espreita do implacavelmente solitário Soares estava Pessoa não-quase-solitária. 'O Livro do Desassossego' tende a ser distorcido de forma autobiográfica, mas por vezes Pessoa e Soares coincidem perfeitamente. Se a experiência descrita numa passagem do livro escrita a 8 de Setembro de 1933, aconteceu de facto ou apenas na imaginação de Pessoa faz pouca diferença, mas suponho que tenha sido factual.

A irmã de Pessoa e a sua família passavam este Verão, como o Verão anterior, na sua casa em São João do Estoril e só regressariam a Lisboa em Outubro. O pequeno quarto de dormir de Pessoa, situado no meio do apartamento na Rua Coelho da Rocha, foi invadido por livros assim como papéis empilhados na mesa, na cómoda e na mesinha de cabeceira ao lado da sua cama. Ao ficar sozinho no apartamento, ele e os seus papéis e livros espalhavam-se pela sala de jantar, cobrindo quase todos os centímetros da mesa em forma oval. Quatro ou cinco cinzeiros inundados de pontas de cigarro. Aqui e ali, um copo vazio ainda cheirava a brandy. Noite fora, depois de ter terminado de escrever e enquanto a sua insónia o mantinha acordado, Pessoa ou andava ou sentava-se na escuridão, fumando. Numa tal noite de Setembro, olhando pela janela para a cidade adormecida, o poeta vê - ou imagina Soares ver - uma única lâmpada a iluminar uma janela alta à distância. Todas as outras janelas são rectângulos pretos. Sem atenuar a sua solidão, essa única luz fá-lo sentir pelo menos provisoriamente pertinente:

Um fio invisível liga-me ao proprietário desconhecido da lâmpada. Não é a circunstância mútua de estarmos ambos acordados; nisto não pode haver reciprocidade, pois a minha janela é escura, de modo que ele não me pode ver. É outra coisa, algo totalmente meu que está relacionado com o meu sentimento de isolamento, que participa na noite e no silêncio e que escolhe a lâmpada como âncora porque é a única âncora que existe.

Pessoa, que sempre se encolheu à mera ideia de pertencer a um colectivo, qualquer colectivo, configurou em 'O Livro do Desassossego' uma forma absurdamente ténue de solidariedade: indivíduos isolados que, envolvidos pelo silêncio e mistério ou talvez pelo simples nada, se apercebem de que há outros imersos nesse mesmo mistério ou no nada. Ele tinha chegado a um ponto na sua vida em que se identificou com uma "comunidade": consistia nas pessoas solitárias, desadaptadas e invisíveis do mundo.


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