Qual é o pior filme que alguma vez viu ou livro que já leu? Não apenas algo de que não gostasse muito, ou que fosse um pouco aborrecido, mas algo que o fizesse sentir-se...pior de alguma forma. Sujo, talvez.
A arte é incrivelmente poderosa, e pode fazer sobressair as nossas partes mais escuras e diminuir o nosso melhor. E foi por isso que Platão pensou que devia ser evitada.
Os antigos gregos adoravam a poesia. Mas a sua poesia não era do tipo "lê na tua cabeça". Era quase sempre representada ou falada em voz alta e acreditava-se que o drama era uma forma de educar moralmente as massas (adultas). Na verdade, a palavra grega para "realizador" - didaskalos - também podia significar professor.
Para Platão, no entanto, ensinava todas as coisas erradas.
Já vimos como Platão divide a alma humana em três partes: desejo (Eros), paixão (Thumos) e o intelecto (Logos). Para Platão, o Logos era o aspecto mais elevado do nosso eu, com Thumos em segundo lugar e Eros num distante terceiro lugar. O objectivo de ser humano era utilizar e alimentar o Logos e diminuir o Eros - para celebrar a nossa razão sobre os nossos impulsos corporais, a nossa racionalidade humana sobre a nossa biologia animalista.
O problema da arte é que ela chafurda no passional. Industria deliberadamente para nos fazer 'sentir' certas coisas e para suspender os nossos intelectos. Quer que passemos horas com as nossas emoções mais básicas. Gostamos de arte que nos faz chorar, ou rir, ou sentir amor - todos eles terrestres, vulgares e degradantes.
Além disso, a arte é a antítese da verdade. O propósito mais elevado do Logos é procurar a verdade. Porém, o artista é alguém que cria ilusões para nos atrair. O actor é um mentiroso, o pintor um propagandista e o escritor um intrujão. Quanto mais gostamos de arte, mais aprendemos que a falsidade é boa. E qualquer coisa que esconda a verdade deve ser, segundo Platão, evitada.
É claro que não somos tão puritanicamente idealistas como Platão. Mas será que se pode aprender alguma coisa com ele? Hoje em dia, a arte, especialmente a Netflix ou os blockbuster de Hollywood, tem o hábito de entorpecer os nossos sentidos e de nos afastar do mundo real. Talvez o ponto de Platão seja que talvez devêssemos apreciar e beneficiar mais do mundo real e não das estrelas de cinema e TV que nos enganam com deslumbramentos.
Talvez eu esteja a ler mal o meu Platão, mas a ideia de que ele sugere que se evite a arte é claramente exagerada. Na "República", a arte é depurada de uma finalidade pedagógica, ou seja, não tem um papel funcional dentro da narrativa platónica da sociedade ideal (a "nobre mentira"). Mas daí a dizer que deve ser evitada de todo e por toda a gente vai um passo maior do que a perna.
ReplyDeleteAté porque a alegoria da carruagem que sobe a montanha, no Fedro, dá tanta importância ao cavalo que puxa para a esquerda como ao cavalo que puxa para a direita, ambos controlados pelo cocheiro - e ambos devem ser alimentados q.b., caso contrário a carruagem não anda.
O que me estará a escapar?
Não estou totalmente de acordo com a interpretação deste autor -Jonny Thomson-, nomeadamente quanto à ideia de Platão repudiar a arte por fazer v ir ao de cima o nosso lado mais 'sujo', como ele diz. No entanto, Platão considera que toda a actividade não-pedagógica deve ser evitada, não é verdade? Uma vez que toda a vida é uma pedagogia de preparação para a morte e que essa preparação se faz evitando os caminhos dos sentidos, que afastam da verdade e desenvolvendo os caminhos da razão, que aproximam da verdade, a Arte, sendo uma actividade de desenvolvimento das emoções e sensações, não tem lugar nesta pedagogia. Logo, deve ser evitada. É a conclusão lógica.
ReplyDeleteNo Fedro esse mito dos dois cavalos não fala do que o homem 'deve' ser mas do que efectivamente, 'é' - é um ser composto por impulsos, alguns dos quais são nobres, apolíneos (os do cavalo branco) e outros são nefastos e bestiais (os do cavalo negro); se o cavalo negro não é dominado e controlado o homem perde-se nesses impulsos baixos, perde as asas, que são o desejo do Belo e da Verdade. Portanto, sim, nós temos um lado irracional e bestial e o amor é uma espécie de loucura, mas só é positivo se for uma pedagogia, se por seu intermédio aspiramos ao Belo em si e às Ideias, caso contrário caímos na Doxa, nas ilusões, nas paixões dos sentidos e cada vez mais nos afastamos do caminho do Inteligígel. Ora, uma vez que a Arte é ilusão muito afastada da Ideia,é cópia de cópia, não serve a pedagogia necessária ao caminho da Verdade. Parece-me que é isto.
Isso faz-me sentido, mas confesso que ainda não me sinto inteiramente persuadido.
ReplyDelete1. Na República X, naquela metáfora das três camas, apesar de a cama do cenógrafo estar mais distante da cama do demiurgo do que a do marceneiro, Platão em rigor não parece estar a menosprezar a cama do cenógrafo no que ela é (cópia de cópia), mas no mau uso que dela se pode fazer (mera cópia). A conclusão a que chega é que ela não serve para a pedagogia dos guardiães. Mas isso não quer dizer que não sirva de todo, mormente que não sirva para o uso para o qual foi feita originalmente. A crítica aqui parece ser exclusivamente dirigida ao papel social e educativo da arte, não à arte propriamente dita e à sua natureza de objectivação da mimesis (neste caso, mimesis do Belo).
2. Na tal pedagogia para a morte, vista sobretudo a partir do Fédon, aí sim faz mais sentido integrar uma crítica da arte como consequência de uma critica dos sentidos. Porém, eu leio a metáfora do cocheiro do Fedro de maneira distinta: vejo nela claramente um elemento normativo e não apenas descritivo. Por um lado, não é só o cavalo negro que tem de ser domado, são ambos. E ambos têm de ser incitados, caso contrário não se sobe. Por outro lado, é o falhanço em controlar o equilíbrio entre ambos os cavalos que permite ao cavalo negro empurrar a carroça para o precipício e à alma de encarnar numa das 9 categorias. O tipo de alma em que se encarna depende do tipo de controlo e sabedoria que se consegue antes da encarnação. (Algo que também já se prenuncia no mito de ER, em que as almas escolhem que tipo de alma irão ter.) A propedêutica para a morte pode então ser interpretada como uma aprendizagem da técnica do cocheiro, do que se pode fazer para, a cada encarnação, incitar os cavalos a subir cada vez mais alto, em direcção ao inteligível. Neste contexto, não se poderia afirmar que a arte pode ter uma função (mesmo que imperfeita) a desempenhar nesta propedêutica, sobretudo quando o cocheiro ainda não consegue subir muito alto?
Sim, reconheço que tem razão em que há uma interpretação diferente na República, na metáfora das camas: se por um lado toda a arte mimética representa a aparência das coisas, por outro lado isso deve-se mais a uma ambiguidade entre a coisa sensível e a sua imagem que a uma questão de verdade/falsidade.
ReplyDeleteNão estou a ver que se possa separar completamente a questão pedagógica da questão da mimesis, pois a arte é para ser vista e, nesse sentido, é preciso pensar no efeito que produz em quem a vê.
Parece-me que tem razão quando diz que o problema não é a arte mas o uso que dela se faz, ou melhor, o problema é o estado [racional] de quem a vê, quer dizer, um ingénuo tomará a imagem por verdadeira, coisa que Sócrates, não-ingénuo, nunca faria. E ainda, como diz Sócrates relativamente às ilusões sensíveis dos objectos que estão metade dentro de água e metade fora e ora parecem côncavos, ora convexos, foi para isso que se inventou o cálculo e a medição, para corrigir, com critérios racionais as visões aparentes.
A sua interpretação do mito dos cavalos alados faz mais sentido que a minha - é mais completa.
Fiquei com uma dúvida: ambos os cavalos têm de ser igualmente incitados (a sabedoria consistindo em saber guiá-los com prudência e direcção) ou há uma hierarquia entre eles? Quer dizer, o cocheiro guia o branco que por sua vez guia o outro?
Estou de acordo consigo em que dizer que a arte deve ser evitada é ir longe demais, pois o que deve é educar-se para saber olhar a arte com juízo racional, não ingénuo.
Aliás esta questão parece-me muito actual: querer ter entidades a 'garantir' a verdade e outras a proibir sites em vez de educar as pessoas para ajuizarem, não ingenuamente, a informação.
(notei que o André se refere aos cavalos como o da direita e o da esquerda. Quer isso dizer que considera incorrecto falar em cavalo branco e negro?)
1. Se bem entendo, ambos os cavalos têm de ser incitados, um por chicote, o outro por palavra e persuasão; o cavalo branco é descrito como obediente, o que significa que corre (e pára) apenas porque comandado; demais, aquando da excitação do cavalo negro pela visão do amado, o cocheiro tem de puxar ambas as rédeas. Por isso, ambos têm de ser incitados, mas há claramente uma hierarquia no incitamento. O cavalo negro dá muito mais trabalho do que o branco.
ReplyDelete2. Pois é, bem visto, só agora reparei que falo em direita e esquerda por vezes referindo-me aos cavalos. Felizmente, não é efeito do síndrome do politicamente correcto que hoje invade todo o mundo (sobretudo a academia). Esse ainda não mostra sintomas visíveis em mim. Creio que os meus termos derivam da interpretação normativa que faço da alegoria, visto que, enquanto leitor, me imagino sempre no lugar e na perspectiva do cocheiro.
O cavalo negro dá muito mais trabalho, disso não há dúvida! A linguagem de Platão neste mito é muito freudiana.
ReplyDeleteNão me ponho no lugar do cocheiro mas num lugar imaginário de espectadora da corrida do conjunto. Às vezes no lugar dos cavalos - de um e de outro.
André, obrigada por esta pequena conversa. Sobretudo gostei de ouvir a sua voz.