June 22, 2021

Tolstói

 


Vou no fim do livro, no Epílogo (que tem mais de cem páginas, diga-se de passagem) e está dividido em duas partes, sendo a primeira parte de conclusão da vida das personagens principais e considerações sobre as mulheres e a vida conjugal. A segunda parte são reflexões políticas e isso.

As cerca de dezasseis páginas da primeira parte custam-me mais a ler que as mil que já li e ainda não consegui lê-las sem fazer excesso de comentários irritados e estragar a leitura gravada o que é um duplo castigo, o de ler e ter de reler aquela porcaria.

É nestes capítulos que Tolstói expõe a sua ideia do que é o casamento ideal e a mulher ideal: a mulher ideal é escrava do marido (palavras dele), vive para o marido e a sua função social é parir e obedecer ao marido. Não é um ser humano completo, não tem um fim em si mesma, como todos os seres humanos, é uma extensão do marido e este é o seu fim. Uma vez casada não há necessidade da mulher ter uma vida no mundo fora da casa em que lhe fazem os filhos e os põem no mundo. O marido, que deve dedicar-se à mulher, pode ter desejos e vida mundana pois é o senhor à roda de quem tudo gira.

Opiniões próprias de um talibã dos mais fundamentalistas. E muito hipócrita dado o que foi a sua vida com as mulheres.

Tolstói está a descrever o seu casamento. Para quem não sabe, desde que o pai levou a um prostíbulo aos 13 anos, Tolstói ficou viciado em sexo. Quando resolveu casar, já muito adulto, escolheu uma rapariga com 18 anos acabados de fazer. Enquanto ele ia a prostíbulos e se metia com as camponesas (deve ter violado uma data delas convencido que era um grande sedutor... não estamos a vê-las negarem-se ao amo de quem eram servas...) obrigou a mulher, Sophie, a ter 13 filhos, mantinha-a em casa e nem deixava que os médicos a tratassem (ela teve um tumor). Mais tarde na vida escreveu que o casamento é uma desilusão...  LOL ... como se aquele contrato com uma garota que mantinha presa aos partos fosse um casamento e houvesse da parte dele alguma intenção amorosa. O que havia era luxúria. Ela, que também deixou diários, queixava-se muitas vezes que ele a obrigava todas os dias a satisfazer-lhe os desejos sexuais mesmo que ela não quisesse... 

Fica notório nesta primeira parte do epílogo, em que ainda aparecem as personagens principais, que ele não sabe o que é uma relação sentimental ou amorosa com uma mulher, nem uma relação de amizade com mulheres porque ele via as mulheres unicamente pelo prisma do desejo sexual e da procriação. 

Tolstói, sabemo-lo, porque ele deixou diários, desprezava-se a si mesmo por não controlar a líbido e por andar sempre em prostíbulos (teve doenças venéreas) mas culpava as mulheres - dizia que a culpa era das mulheres que existiam para tentar sexualmente os homens - já que a sua função natural e instintiva era a de 'caçarem' homens para procriar.

Como é que um indivíduo tão inteligente a ler de modo complexo e profundo as sociedades, as motivações dos políticos e dos homens (mesmo com erros - o ódio dele a Napoleão é indisfarçável e polui as suas análises, aqui e ali), é tão simplório quando se põe a falar das mulheres? Um pavão, troglodita. O pensamento dele neste aspecto está ao nível do do taberneiro. É um choque, não estamos à espera de tanta estupidez. 

Aqui se vê como a inteligência e a mentalidade são coisas diferentes pois ele, como a maioria dos homens, mesmos os mais inteligentes que ele (como a maioria dos filósofos, por exemplo), são prisioneiros da ignorância que vem com os preconceitos e da sua posição de poder, que assenta na força, mas pressupõem, iludidos acerca de si mesmos, ser assente na superioridade.

Enfim... espero que a segunda parte do epílogo redima de algum modo esta primeira que estraga um bocado o livro, quer dizer, no fim de uma obra tão boa termos estas bacoradas parvónias.

As opiniões de Tolstói sobre as mulheres são sobretudo perniciosas pela razão de Tolstói, no seu tempo ter sido considerado um grande sábio. Acontece muito confundir-se a mestria ou mesmo sabedoria em uma área (no caso dele, a política, a arte militar, a administração pública e o comportamento dos homens nessas áreas) com a sabedoria total e completa sobre todos os domínio da vida. Como ainda vemos hoje-em-dia nos Ayatollahs, que por serem especialistas em religião, são considerados sábios sobre tudo e mais alguma coisa e a sua palavra é lei.

No seu tempo, Tolstói foi visto da mesma maneira que hoje certos povos vêm os Ayatollahs e da mesma maneira que no Ocidente, onde a religião é o dinheiro, se olham para pessoas que fizeram muito dinheiro -como o Gates e o Musk, por exemplo- como sábios, quando o que eles têm a mais que nós é o terem acesso a informação privilegiada que vem com esse tipo de riqueza.

A mentalidade e opiniões de Tolstói, sendo ele considerado um sábio, no seu tempo, tiveram, infelizmente, grande repercussão. No seu modo de ver, o amo é o paizinho dos servos que para ele trabalham. O imperador é o paizinho da nação. Esta mentalidade manteve-se depois da revolução bolchevique porque as mentalidades não mudam por decreto-lei: Estaline falava de si como o pai da nação. Vemos que no nosso país, Cunhal se via como o paizinho dos comunistas que guiava. Não havia ali paridade política, nem autonomia nem democracia. Putin também se vê assim. Tolstói via-se como alguém que mudaria o mundo com as suas ideias, como ele põe Pierre a dizer no livro.

Vemos como ainda hoje e figura de Salazar como 'pai' da nação continua a fazer-se sentir no modo submisso e infantil como o povo espera um salvador, um paizinho que os guie e proteja. E os próprios, os que ocupam os assentos do poder, tal como Tolstói, habituam-se de tal maneira às maneiras submissas dos outros que se vêem assim como Tolstói se via: importantes, sábios e líderes naturais. O princípio do Iluminismo no que respeita à autonomia do ser humano face a 'paizinhos', sejam da religião, sejam da política, está longe de ter sido alcançado.

Enfim, estou encalhada nesta dúzia e meia de páginas mais difíceis de ler que as outras mil anteriores.


1 comment:

  1. Eu li os diários da mulher dele,quando saiu o livro...

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