A ministra da Agricultura emitiu uma "nota de esclarecimento" esclarecedora. Para o Governo, Luís Dias, o agricultor em greve de fome, vale mais morto que vivo.
por João Paulo Batalha
Nenhum português maior de idade se devia espantar com a frieza e a desumanidade de que Portugal é capaz contra os seus cidadãos mais fracos, mas confesso que nem eu esperava, 15 dias depois, ainda estar a escrever sobre a greve de fome do Luís Dias.
O Luís Dias está hoje no 24º dia de greve de fome em frente ao Palácio de Belém. Comecemos pelo elementar: quando um cidadão faz greve de fome em frente à Presidência da República, seja por que razão for, as instituições deviam interessar-se pelo caso. Perceber o que se passa e agir. Mesmo que o cidadão fosse, por hipótese, motivado por algum distúrbio mental, caberia ao Estado tomar medidas para protegê-lo.
O Luís Dias não sofre de distúrbio mental. Sofre a agonia lenta de uma situação de injustiça que o Governo deixa arrastar, provocando a morte lenta de uma exploração agrícola e a ruína completa, por exaustão, do Luís e da Maria José Santos, que nessa exploração investiram tudo o que tinham. Em greve de fome há 24 dias, era preciso que as instituições o ouvissem e agissem. Prontamente.
O Luís Dias foi amavelmente recebido pela Casa Civil do Presidente Marcelo, que tomou nota do seu protesto, encaminhou-o para o gabinete do primeiro-ministro e disse que não podia fazer mais nada. O gabinete do primeiro-ministro encaminhou o caso para o gabinete da ministra da Agricultura – precisamente onde o problema reside desde o início. Na semana passada, ao 15º dia de greve de fome, o secretário de Estado da Agricultura lá se dignou reunir com o Luís. Anunciou uma auditoria ao caso, mas o que era necessário para resolver o problema – atalhar o lento estrangulamento da justiça administrativa e pedir à provedora de Justiça para calcular uma indemnização justa pelos erros que o próprio Estado já reconheceu ter cometido – ficou de fora.
24 dias depois, não só ainda ninguém resolveu o problema como, pior (muito pior!), percebemos entretanto qual é a verdadeira preocupação do Governo. Numa lacónica "nota de esclarecimento" publicada ontem, o Ministério da Agricultura preocupa-se com uma única coisa: transferir para o Luís Dias a responsabilidade pela situação que os serviços do Ministério da Agricultura criaram e que o Governo escolhe agora encobrir.
Depois de dizer que "lamenta a situação do Senhor Luís Dias e continua empenhado, como sempre tem estado, em encontrar soluções, dentro do quadro legal e comunitário vigente", o Governo explica em poucas palavras que concedeu um apoio à reconstrução da exploração do Luís e da Maria José; e que esse dinheiro está à espera deles, para reembolsar as despesas de recuperação que o Luís e a Maria José terão de adiantar do seu bolso.
O que não diz esta "nota de esclarecimento" é que o Governo demorou dois anos a abrir a candidatura ao apoio de reconstrução, e que só o fez depois de muita insistência, de muita litigância e da intervenção da provedora de Justiça, que reconheceu que o Estado descriminou o Luís e a Maria José quando os deixou dois anos pendurados. Numa exploração agrícola, o estrago que não se arranja hoje degrada-se amanhã. Dois anos depois, os prejuízos acumulados eram de 1,75 milhões de euros. O Governo diz que tem 140 mil para o Luís e a Maria José.
Onde antes a política se dedicava a lidar com a realidade, hoje é apenas e só um exercício de construção de uma narrativa – não importa se falsa. Quando vemos políticos, comentadores e políticos comentadores a ensaiar guerras ideológicas na televisão, é isso que estão a fazer: forjar narrativas para consumo da sua clientela. A realidade que se lixe. A realidade não vende – e eles não saberiam o que fazer com a realidade, mesmo que vendesse.
No caso do Luís e da Maria José, a ministra da Agricultura Maria do Céu Antunes – ela própria experiente no carrossel de favorecimentos e amiguismos –, escolheu ontem a sua narrativa: da nossa parte está tudo bem, o Governo "continua empenhado, como sempre tem estado, em encontrar soluções". Se o Luís morrer, o problema é dele.
Não é nova a tática de culpar a vítima. O que é chocante é vê-la aplicada, com frieza assassina, a um cidadão em greve de fome há quase um mês, já hospitalizado duas vezes nos últimos dois dias e em risco de dano irreversível para a sua saúde ou a sua vida. "Tem fome? Coma. Se não tem pão, coma brioche". A vida de um infeliz, entre dez milhões de infelizes, não vale que chegue para travar a máquina trituradora de um Estado violento e desigual.
Estes psicopatas governam-nos. E sim, estes psicopatas governam-se.
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