A leitura vai no 32 mas eu já vou umas leituras mais à frente. De vez em quando guardo uma hora e gravo três ou quatro, à cautela, porque não quero falhar se acontecer mais à frente não ter tempo para ler.
Começa a ser evidente que Tolstói constrói as personagens masculinas com densidade, complexidade, profundidade e estrutura e constrói as femininas superficiais, estúpidas e levianas ou ingénuas virginais, cujos interesses se resumem ao romance e ao casamento e pouco mais. A única personagem feminina (pelo menos, até agora) que ele descreve como inteligente, culta e bonita é Vera, mas acrescenta logo a seguir que ninguém gosta muito dela porque deixa as pessoas desconfortáveis e não sabe o seu lugar na sociedade, que é como quem diz, a sociedade não precisa de mulheres inteligentes. E não a desenvolve enquanto personagem.
Aliás, ao contrário das personagens masculinas que evoluem ao longo da história -Pierre sendo o que mais se transforma e busca incessantemente o sentido da vida, mas também o príncipe Andrei- as mulheres não evoluem. Só fala delas para dizer se são bonitas ou feias, se estão apaixonadas por este ou aquele... Natacha, sabemos, há-de evoluir mas dentro do tema do costume.
Os homens têm vidas dissolutas. Pierre, por exemplo, casa com Helene por luxúria, mas Helene é leviana e ele, puro.
Sim, eu sei que é preciso pensar que esta é uma obra escrita há mais de 150 anos e que reflecte a mentalidade de então (Voltaire não declarou que Madame Du Châtelet [uma grande intelectual da época a quem Voltaire abifou ideias] tinha sido "um grande homem que teve o único defeito de ter sido mulher"?), mas cansa. Desilude.
Quando li estes livros era muito nova e estas coisas não me saltavam tão à vista. Esta mentalidade ainda era muito 'normal'. Mas agora, desilude um bocado. Tolstói é um homem que observa as pessoas e pensa -isso é notório no livro- e a sua complexidade, mas parece que nunca observou ou falou com mulheres. Há muitas mulheres no tempo dele, na Rússia a e fora da Rússia que pensam, que escrevem.
Aliás, os salões que as mulheres então organizavam (como aqui a mulher de Pierre a quem ele chama estúpida) e onde reuniam intelectuais, artistas e políticos, começaram pela razão de que as mulheres estavam proibidas de instruir-se mais que a formação básica e estavam proibidas de participar na vida política, na vida universitária, artística, no mundo do trabalho, etc, e esses salões eram a maneira que tinham de convierem com as pessoas, fazerem perguntas, inteirarem-se de assuntos científicos, literários, falarem de livros, participarem da vida política, estética, etc. Não eram reuniões de coscuvilhices. Foram muito importantes e influentes nos séculos XVIII e XIX até à altura em que as mulheres puderam começar a estudar nas universidades no início do século XX, depois da 1ª Guerra. Assim que tiveram acesso ao ensino e à cultura, isso desapareceu.
Pierre, no livro, é um ingénuo a quem todos enganam mas é retratado como uma pessoa profunda e em evolução. Natacha, Sónia, Mária, são todas ingénuas mas sem evolução.
Enfim, poucos são os homens capazes de se libertarem dos preconceitos da sua educação e mentalidade da época. As pessoas andam com os pais às costas, por assim dizer e não se libertam. Não usam os olhos de ver.
Ler não é a mesma coisa que ver filmes. Já vi várias interpretações do Guerra e Paz. Excepto um filme russo de 1966, nenhuma adaptação da obra é fiel ao livro e as personagens são quase irreconhecíveis.
Um filme é uma interpretação. O realizador escolhe os actores e orienta-os segundo a sua interpretação e os seus interesses comerciais e nós ao vermos o filme, em vez de pensarmos por nós mesmos e usarmos a imaginação para reconstruir o mundo que o autor cria na nossa mente e assimilá-lo à nossa experiência de vida, limitamo-nos a observar as imagens que o realizador do filme imaginou e a assimilar a interpretação dele.
Continuo a achar que Guerra e Paz é uma grande obra do período das guerras napoleónicas, da vida e administração da Rússia da época, da vida da corte, das ideias que então fervilhavam e das transformações sociais e políticas. Da complexidade do ser humano. Tolstói, além de ser um grande conhecedor da história russa, é um bom leitor das emoções e motivações humanas. Masculinas. O linguagem dele sobre as mulheres é que manifesta o típico olhar masculino sobre as mulheres.
Lecture de la tragédie "L'orphelin de la Chine" de Voltaire dans le salon de madame Geoffrin (Malmaison, 1812) - estão aqui retratados todos os intelectuais da época, desde Diderot a Montesquieu.
No comments:
Post a Comment