May 10, 2021

Leituras pela manhã - O que é um filósofo?




O Que É Um Filósofo? Um tolo com a cabeça na lua?

por Simon Critchley

Há tantas definições de filosofia como há filósofos - talvez haja ainda mais. Após quase três milénios de actividade e desacordo filosófico, é pouco provável que cheguemos a consenso e não quero certamente acrescentar mais ar quente à nuvem vulcânica do incognoscível. O que eu gostaria de fazer é dar o pontapé de saída às coisas, fazendo uma pergunta ligeiramente diferente: O que é um filósofo?

Como disse Alfred North Whitehead, a filosofia é uma série de notas de rodapé a Platão. Deixe-me arriscar acrescentar uma nota de rodapé olhando para a definição provocadora do filósofo de Platão que aparece no meio do Teeteto, numa passagem que alguns estudiosos consideram uma "digressão". Longe de ser uma nota de rodapé para uma digressão, este momento em Platão diz-nos algo extremamente importante sobre o que é um filósofo e o que faz a filosofia.

Sócrates conta a história de Tales, que foi segundo alguns relatos o primeiro filósofo. Tales estava a olhar tão atentamente para as estrelas que caiu num poço. Diz-se que alguma criada trácia espirituosa que passava perto fez uma piada às custas de Tales - que na sua ânsia de saber o que se passava no céu não tinha conhecimento das coisas à sua frente e aos seus pés. Sócrates acrescenta, na tradução de Seth Benardete, "A mesma piada aplica-se a todos aqueles que se dedicam à filosofia".

O que é, então, um filósofo? A resposta é clara: um motivo de riso, um tolo distraído, o objecto de inúmeras piadas desde 'As Nuvens', de Aristófanes, até à 'História do Mundo' de Mel Brooks: Parte I. Sempre que o filósofo é obrigado a falar sobre as coisas a seus pés, ele dá não só à rapariga trácia mas ao resto da multidão, aso a uma gargalhada. A falta de jeito do filósofo nos assuntos mundanos fá-lo parecer estúpido ou, pelo menos, "dá a impressão de uma simples tolice". Resta-nos uma definição bastante Monty Pythonesca do filósofo: aquele que é tolo.

Mas, como sempre com Platão, as coisas não são necessariamente como parecem e Sócrates é o maior dos ironizadores. Primeiro, devemos recordar que Tales acreditava que a água era a substância universal a partir da qual todas as coisas eram compostas. A água era, por assim dizer, a pedra filosofal de Tales. Por isso, ao cair num poço, ele inadvertidamente pressionou a sua reivindicação filosófica básica.

No entanto, há uma camada de ironia mais profunda e perturbadora, que eu gostaria de descascar mais lentamente. Sócrates introduz a digressão ao fazer uma distinção entre o filósofo e o advogado. O advogado é obrigado a apresentar um caso em tribunal e o tempo é essencial ao caso. Nos processos judiciais gregos, foi atribuído um tempo estritamente limitado para a apresentação de casos. O tempo era medido com um relógio de água -uma clepsidra-, que literalmente, significa, 'roubar o tempo', como um kleptes grego, um ladrão. O júri e, por implicação, toda a sociedade, vivem com a constante pressão do tempo. A água do fluxo do tempo ameaça constantemente afogá-los.

Pelo contrário, poderíamos dizer, o filósofo é a pessoa que tem tempo ou que leva tempo. Teodoro, o interlocutor de Sócrates no Teeteto, introduz a digressão com as palavras: "Não estaremos nós à vontade, Sócrates?" A resposta deste último é interessante. Ele diz: "Parece que estamos". Como sabemos, em filosofia as aparências podem ser enganadoras. Mas o contraste básico aqui é que entre o advogado, que não tem tempo, ou para quem tempo é dinheiro, e o filósofo, que leva sempre tempo. A liberdade do filósofo consiste em passar livremente de tópico para tópico ou simplesmente passar anos a regressar ao mesmo tópico por perplexidade, fascínio e curiosidade.

Levando isto um pouco mais longe, podemos dizer que filosofar é levar o seu tempo, mesmo quando não tem tempo, quando o tempo está constantemente a pressionar nas suas costas. Como diz Wittgenstein: "É assim que os filósofos devem saudar-se uns aos outros: 'Leve o seu tempo'. "De facto, poderia dizer-vos algo sobre a natureza do diálogo filosófico para confessar que a minha atenção foi recentemente chamada a esta passagem de 'Teeteto' em discussões de lazer com um estudante de doutoramento.

Sócrates diz que aqueles que estão na pressão constante dos negócios, como advogados, políticos, corretores de hipotecas e gestores de fundos de cobertura, tornam-se "dobrados e atrofiados" e são obrigados a "fazer coisas tortuosas". O homem mesquinho é sem dúvida bem sucedido, rico e extraordinariamente melífero mas, acrescenta Sócrates, "pequeno na sua alma, sagaz e embusteiro". O filósofo, pelo contrário, é livre em virtude da sua extraterritorialidade, pela capacidade de cair em poços e parecer tolo.

Sócrates acrescenta que o filósofo não vê nem ouve as chamadas, leis não escritas da cidade - ou seja, os costumes e convenções que regem a vida pública. O filósofo não mostra respeito pela patente e privilégios herdados e desconhece o elevado ou baixo nascimento de alguém. Nem ocorre ao filósofo aderir a um clube político ou a um partido privado. Como Sócrates conclui, só o corpo do filósofo reside dentro das muralhas da cidade, porque em pensamento, o filósofo está noutro lugar.

Isto parece sonhador, mas não é. A filosofia deve vir com o tipo de aviso de saúde que se encontra nos maços de cigarros europeus: a filosofia mata. Aqui abordamos a ironia profunda das palavras de Platão. Os diálogos de Platão foram escritos após a morte de Sócrates. Sócrates foi acusado de mostrar impiedade para com os deuses da cidade e de corromper a juventude de Atenas ensinando a razão. Foi obrigado a falar em tribunal em defesa destas acusações, a falar contra a clepsidra, aquele ladrão do tempo. Ficou sem tempo e sofreu a consequência: foi condenado à morte e forçado a suicidar-se.

Um par de gerações mais tarde, durante as revoltas contra o domínio macedónio que se seguiram à morte de Alexandre o Grande em 323 a.C., o antigo tutor de Alexandre, Aristóteles, escapou de Atenas, dizendo: "Não permitirei que os atenienses pequem duas vezes contra a filosofia". Desde os antigos gregos até Giordano Bruno, Spinoza, Hume, e até ao vergonhoso processo judicial que impediu Bertrand Russell de ensinar no City College de Nova Iorque em 1940 sobre a acusação de imoralidade sexual e ateísmo, a filosofia tem sido repetida e persistentemente identificada com blasfémia contra os deuses, quaisquer que sejam os deuses.

Nada é mais comum na história da filosofia do que a acusação de impiedade. Por causa da sua ridícula alteridade e falta de respeito pela convenção social, patente e privilégio, os filósofos recusam-se a honrar os velhos deuses, o que os torna politicamente desconfiados e até perigosos. Será que coisas tão sombrias ainda podem acontecer na nossa era alegremente iluminada? Isso depende de onde se lança os olhos e de quão perto se olha.

Talvez a última gargalhada seja com o filósofo. Embora o filósofo pareça sempre ridículo aos olhos dos mesquinhos e daqueles obcecados em manter o status quo, o contrário acontece quando o não-filósofo é obrigado a dar conta da justiça em si mesmo ou da felicidade e da miséria em geral. Longe de ser eloquente, insiste Sócrates, o mesquinho fica "perplexo e gagueja".

Pode-se objectar que ridicularizar o gaguejo de alguém não é uma coisa muito agradável de se fazer. Benardete assinala com razão que Sócrates atribui todo o tipo de virtude a filósofos excepto a moderação. Nutrido em liberdade e não se sujeitando ao tempo dos outros, há qualquer coisa de terrivelmente estranho nos filósofos, algo monstruoso ou semelhante aos deuses ou a ambos ao mesmo tempo. É por isso que muitas pessoas sensatas continuam a pensar que os atenienses tinham razão em condenar Sócrates à morte. Deixo a decisão por vossa conta. Não podia julgar.


(tradução minha)

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