May 28, 2021

Leituras pela manhã - o auto-conhecimento é um super-poder (se não for uma ilusão)

 


Há uns dias vi um filme de ficção científica passado num planeta onde uma colónia constituída só de homens tem a particularidade de não terem pensamentos privados. Todos conseguem ler o conteúdo da mente de todos (o ruído é constante porque ouvem-se uns aos outros a pensar) e eles passam parte da sua vida a inventar esquemas para tentar bloquear os pensamentos que querem privados. Uma rapariga despenha a nave em que viaja perto da colónia e ficamos a saber que a colónia já teve mulheres, mas as mulheres não tinham a mente pública como os homens e estes começaram a ressentir-se delas poderem ler-lhes os pensamentos mantendo-se privadas de maneira que as relações de desconfiança foram-se agravando ao ponto dos homens terem acabado por matá-las a todas. 

O filme pareceu-me uma metáfora excelente da reacção das sociedades relativamente a alguns filósofos, como Sócrates, por exemplo, que parecia conhecer a mente dos outros melhor que eles mesmos e com isso ter causado muito ressentimento. Se ele 'lia' tão bem a mente dos outros era porque esses outros tinham pensamentos muito comuns, de senso-comum, fáceis de inferir a partir de sinais e de raciocínio lógico.

Agora este artigo fez-me lembrar esse filme e alguns filósofos.


O auto-conhecimento é um super poder - se não for uma ilusão

Parece que sabemos muito sobre o conteúdo das nossas próprias mentes. Sabemos, por exemplo, que queremos que os nossos amigos e família sejam saudáveis, que pretendemos pagar a conta de electricidade deste mês, que acreditamos que Myanmar foi anteriormente chamada Birmânia, ou que estamos a experimentar uma sensação particular, como a dor. Os filósofos têm um termo para tal (alegado) conhecimento de factos sobre as nossas próprias mentes: auto-conhecimento.

Datando pelo menos de René Descartes, no século XVII, pareceu a vários filósofos que não só possuímos auto-conhecimento, mas que também há algo de especial sobre a natureza de algum do auto-conhecimento que possuímos. Podemos começar a ver porquê, investigando o nosso conhecimento da mente de outras pessoas. Considere, por exemplo, como pode vir a saber que um amigo seu está a sofrer de uma dor de cabeça. A forma de conhecer este facto é através de observações do comportamento do seu amigo ou através do seu testemunho. Talvez ele ponha a cabeça nas mãos, ou tome alguns analgésicos, ou simplesmente lhe diga que está a sofrer. Mas o mesmo não acontece com a forma como o seu amigo sabe que ele próprio está a sofrer. Ele não tem de se observar-se a si próprio a segurar a cabeça nas mãos, a tomar medicamentos, ou a ouvir-se pronunciar as palavras "Estou a sofrer" para possuir este auto-conhecimento. Seja o que for que ele use para saber que está a experimentar uma sensação (quer seja o que os filósofos chamam introspecção, ou outro meio) parece proporcionar-lhe uma forma mais única e pessoal de conhecer a sua mente.

Por outras palavras, temos uma forma de conhecer factos sobre o conteúdo da nossa própria mente, tais como as nossas sensações ou algumas das nossas atitudes, através de um meio que ninguém mais pode usar para conhecer esses mesmos factos. Chamemos a esta característica do nosso auto-conhecimento a característica única de primeira pessoa.

Há outro aspecto do nosso auto-conhecimento que tem levado os filósofos a acreditar que é especial: é o facto de ser altamente seguro. O conhecimento de que estamos a sofrer, por exemplo, é mais seguro do que o conhecimento que qualquer outra pessoa possui em relação a este facto. Se o seu amigo diz que está a sofrer, é inútil questioná-lo porque ele é uma autoridade epistémica no que diz respeito ao facto que afirma. Ele tem um conhecimento epistemicamente seguro do facto em questão -
é mais seguro do que o conhecimento que qualquer outra pessoa possui sobre este facto. Esta é a característica de autoridade epistémica do auto-conhecimento.

Os filósofos que pensam que há algo de especial em alguns dos nossos auto-conhecimentos têm tipicamente em mente uma variante de singularidade pessoal ou de autoridade epistémica ou uma combinação destas duas características. O termo que usaram para falar de tal especialidade é, acesso privilegiado. Do seu ponto de vista, de que sou solidário, trata-se de possuir um conhecimento autoritário dos factos sobre a mente, através de um meio exclusivamente pessoal de primeira pessoa.

Os filósofos discordam sobre se temos ou não um acesso privilegiado - e, em caso afirmativo, quanto dele temos. Historicamente, a resposta mais popular a esta pergunta tem sido a de que temos tal acesso a alguns dos factos sobre a nossa mente, e que, quando se trata das sensações que uma pessoa está actualmente a experimentar, como a dor, ou algumas atitudes que possuímos, não há nenhum obstáculo, em princípio, que nos impeça acesso privilegiado a tais estados. 
Mais recentemente, porém, tem havido um crescente cepticismo em relação a esse acesso privilegiado. As razões para tal cepticismo - adiantadas, tanto por filósofos como por psicólogos - são variadas, matizadas e por vezes convolutas: alguns, por exemplo, oferecem dados empíricos de experiências de psicologia social que alegadamente demonstram que as pessoas caracterizam de modo rotineiro, erroneamente, o conteúdo da sua mente; alguns concentram-se em afirmações metafísicas sobre a natureza das nossas atitudes, argumentando que, dado o que são estes estados, simplesmente não somos capazes de possuir acesso privilegiado à maioria deles.

Não vou examinar aqui se temos ou não acesso privilegiado a alguns factos sobre as nossas mentes. O que quero explorar em vez disso é se alguma coisa de valor nos falta se não tivermos esse acesso. Por outras palavras, que valor é que falhamos se os cépticos sobre o acesso privilegiado estiverem correctos. 

A minha posição será que, se nos faltar o acesso privilegiado aos factos sobre as nossas mentes, algo de valor significativo estará ausente das nossas vidas cognitivas. Mais especificamente, falharíamos em possuir um tipo de controlo robusto sobre os factos sobre as nossas mentes, controlo esse que nos ajuda a alcançar mais eficazmente os nossos objectivos.

Em apoio a esta afirmação, façamos uma experiência de pensamento. Imagine um futuro em que os neurocientistas descobrem uma forma de implantar um chip no seu cérebro cuja única função é fornecer-lhe informação sobre o conteúdo da sua própria mente. Chamemos a tal implante Super Siri. Pergunte ao Super Siri se acredita que está a chover lá fora ou se teme que esteja a ser vigiado ou se espera que ganhe a lotaria, e o Super Siri dá uma resposta: "sim" ou "não". Ao contrário de Siri no meu telefone, o Super Siri é altamente fiável. Fornece consistentemente verdades sobre a sua mente quando lhe faz uma pergunta e sabe que é altamente fiável. Mas, eis o reverso: o Super Siri também torna esta informação sobre a sua mente publicamente disponível, e assim, com um pouco de esforço, outros podem aprender os mesmos factos da mesma forma que você.

Por conseguinte, possuir um conhecimento altamente justificado dos factos sobre a sua mente através do Super Siri implica possuir um conhecimento que não é unicamente um conhecimento pessoal de primeira pessoa. Isto porque outros são capazes de usar Super Siri, também, para conhecer os mesmos factos sobre a sua mente que você aprende através deste dispositivo. Devido a isto, parece que cede uma grande quantidade de controlo sobre tais factos. Em vez de outros terem de confiar em si - no seu comportamento ou testemunho - para saberem o que está na sua mente, podem simplesmente verificar o Super Siri. Assim, embora possa ter um conhecimento altamente seguro através de Super Siri, a troca é que cederia uma quantidade significativa de controlo sobre tais factos se Super Siri fosse a sua única forma de os conhecer.

Numa linha semelhante, imagine que Super Siri é uma forma única e pessoal de conhecer factos sobre a sua mente, porque, em parte, não torna as suas descobertas publicamente disponíveis. A reverso, desta vez, porém, é que Super Siri não é uma forma altamente fiável de conhecer factos sobre o conteúdo da nossa mente, e por isso não nos proporciona o tipo de conhecimento epistemicamente seguro que teríamos se tivéssemos acesso privilegiado. 
Se fosse este o caso, teríamos menos controlo sobre os factos relevantes do que teríamos se tivéssemos uma forma mais fiável de os conhecer. Isto porque outros poderiam potencialmente aprender sobre tais factos através de meios alternativos, terceiras pessoas - meios que lhes permitissem ter um conhecimento tão seguro, se não mais seguro, de tais factos. Na medida em que outros já se encontram numa posição tão forte, senão mesmo mais forte, epistémica, em relação a tais factos, o nosso controlo sobre quem fica e quem não fica a saber de tais factos seria mais limitado. Se o controlo a que me tenho referido é diminuído porque ou a característica exclusivamente pessoal de primeira pessoa ou a característica epistémico-autoridade não é satisfeita, então é ainda mais óbvio que tal controlo seria diminuído se os meios pelos quais conhecemos as nossas próprias mentes carecessem destas duas características.

Super Siri oferece uma visão sobre o que há de valioso em ter acesso privilegiado à nossa mente. Na minha opinião, o acesso privilegiado é valioso porque é necessário para se ter um tipo particular de controlo robusto sobre o conteúdo das nossas mentes. O controlo em questão é uma questão de ser capaz de manter em privado factos particulares sobre as nossas mentes ou revelar certos factos àqueles que escolhemos - e só através de acesso privilegiado é que podemos ter um controlo tão robusto. Quando temos acesso privilegiado a algum facto, não só somos autoridades epistémicas nessa altura, como também é provável que continuemos a ser autoridades. Somos os únicos que podemos utilizar este acesso privilegiado para termos um conhecimento autoritário deste facto. Outros têm de confiar em nós para possuírem conhecimento dos factos a que temos acesso privilegiado.

E eis o ponto importante para os nossos propósitos: tal controlo é extremamente valioso para nós. Só conseguiremos atingir os nossos objectivos se tivermos o controlo de factos privados - sem controlo, não temos qualquer hipótese. Seria impossível aos jogadores de póquer fazer bluff se não tivessem controlo sobre factos sobre a sua própria mente. Um professor de matemática tem mais hipóteses de motivar o seu aluno em dificuldades a aprender, se o aluno não tiver consciência de que o instrutor acredita que não é um aluno forte.

Pode pensar que tal controlo é valioso apenas porque nos proporciona um tipo de privacidade relativamente a factos sobre as nossas mentes. Mas há casos em que proporcionar a outros o conhecimento seguro dos nossos pensamentos é importante para atingir um objectivo específico. Um amante afastado, por exemplo, tem muito a ganhar em poder informar a seu ex-parceira de que ainda quer estar com ela. Se ele não lhe puder dar tal conhecimento seguro, então não é provável que eles se voltem a juntar.

Somos criaturas orientadas para os objectivos e a posse de acesso privilegiado torna mais provável que sejamos capazes de atingir os nossos objectivos. Se as versões de Super Siri discutidas acima fossem a única forma de podermos conhecer o conteúdo das nossas mentes, então teríamos menos controlo sobre factos sobre as nossas mentes do que teríamos se tivéssemos acesso privilegiado a tais factos, e por isso seríamos agentes menos bem sucedidos.

Concentrei-me em grande parte no que alguns poderiam ver como factos relativamente triviais sobre as nossas mentes, tais como factos sobre as nossas sensações e algumas atitudes. Mas note-se que estes estados determinam, em parte, porque é que agimos da forma como agimos. E são as nossas acções que iluminam o tipo de pessoas que somos. 
Dado isto, se temos acesso privilegiado a factos sobre o que desejamos e pretendemos, então este conhecimento torna mais provável que sejamos capazes de determinar por que razão agimos da forma como agimos. O acesso privilegiado permitir-nos-ia um tipo de controlo epistémico sobre factos sobre as nossas mentes que têm grande peso sobre o tipo de pessoas que somos. Tais factos são os factos mais íntimos que existem sobre nós. 
Se os cépticos estiverem certos sobre a nossa falta de acesso privilegiado às nossas mentes, então não possuiríamos algo que tenha um valor significativo. Isto não é, em si mesmo, razão para pensar que temos realmente acesso privilegiado, mas é uma razão para nos preocuparmos se o temos.

Jared Peterson

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