Parece-me que devemos tratar a história como nos tratamos a nós mesmos: com honestidade e sem medo, mas com espaço para crescer e melhorar.
Uma pessoa na sua vida particular, se quer modificar-se para melhor, crescer enquanto pessoa, o que leva uma vida inteira a fazer-se, tem que olhar o seu passado sem medo, sem hipocrisia e com honestidade. E assumi-lo. Não para se massacrar com os erros e as falhas porque isso não deixa ninguém crescer, mas para os superar, para se prevenir, porque muitos erros e falhas cristalizam-se e tornam-se o carácter, uma segunda natureza, pelo hábito, se não estamos cientes dele e prevenidos.
Quem não está em contacto com as pessoas que já foi, corre o risco de essas pessoas surgirem quando menos espera a fazer as mesmas coisas, a cair nos mesmo alcapões onde já se caiu. Portanto, é necessário visitar o passado e conviver com ele. Aceitar que já fomos aquelas pessoas, que fizemos aquelas coisas e compreender as suas causas ou razões para evitar repeti-las. Também não esquecer -no caso de termos tendência para a excessiva auto-crítica- que fizemos outras coisas com valor e não apenas aquelas criticáveis. Depois tentamos, em cada crise, conscientes dos perigos, não cair nos mesmos alçapões.
Penso que um país deve fazer o mesmo com a sua história: conhecê-la com honestidade, sem hipocrisia e sem medo. Conviver com ela para que os erros do passado não surjam constantemente e se cristalizem em hábitos do presente. Conhecer as suas causas e razões. Valorar aquilo que fizemos de positivo e ter esse equilíbrio como base para crescer.
Tivemos racismo na nossa história? Sim. Quem iniciou a mercância de escravos africanos que depois todos os outros imitaram, infelizmente, fomos nós. Mas não foi só isso que fizemos. Pusemos os países e povos do mundo a falar uns com os outros nessas viagens de exploradores. Nós não fomos para África para escravizar nem escravizámos negros por o serem. Se fossem brancos ou de outra cor qualquer tinhamos à mesma feito mercância deles, pela simples razão de termos a força das armas connosco e vermos nisso um negócio rentável. Era a mentalidade do tempo.
Estive há pouco tempo a ler umas novelas de Mérimée. Numa delas sobre o rei Carlos IX e a época do massacre dos huguenotes, ele começa por dizer, que uma pessoa não pode julgar o passado com os critérios do presente, que um assassinato em 1500 não tem o mesmo peso e repulsa que no século XIX em que ele escreve. Um fidalgo matava um inimigo à traição, pedia desculpa e ia jantar como de costume sem que ninguém lhe fizesse má cara. Dá depois o exemplo de Mehemet-Alí, que reinava no Egipto na época dele, o século XIX, que se consolidou no poder porque um dia convidou os chefes dos mamelucos, que o desafiavam, para jantar no seu palácio e assim que os viu lá dentro mandou fechar as portas e fuzilou-os todos e atirou-os do alto da muralha para a rua - como ainda hoje os árabes fazem aos gays em alguns países. No entanto, acrescenta ele, 'nós franceses damo-nos com ele e temos negócios com os egípcios, sendo que se alguém aqui em França fizesse tal coisa, ou na Europa, era motivo de cortar relações e sanções.'
O mesmo podemos dizer de nós mesmo, agora no século XXI: damo-nos com os árabes que matam e decapitam opositores, mulheres que andam sem lenço na cabeça, gays, cristãos, etc. E muitos mantêm escravos, mas há, no Ocidente, quem defenda que devemos respeitar a cultura deles.
Portanto, temos que saber olhar para a nossa história, não para chamarmos nomes uns aos outros, mas para compreendermos os acontecimentos na sua complexidade e podermos crescer positivamente a partir daí. Isto não se faz com insultos e degradação constantes de parte a parte que é uma acção que envenena qualquer ambiente, qualquer possibilidade de diálogo ou de reconciliação, com o nosso passado e uns com os outros, no presente.
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