May 04, 2021

A filosofia é uma actividade de desassossego

 


Já no fim de uma conversa sobre alguns dos mais profundos puzzles metafísicos sobre a natureza da existência humana, o filósofo Galen Strawson fez uma pausa e perguntou-me: "Já falou com mais alguém que tenha recebido um e-mail estranho?" Depois foi a um ficheiro no seu computador e começou a ler as mensagens alarmantes que ele e vários outros professores tinham recebido ao longo dos últimos anos. Alguns eram queixosos, outros abusivos, mas todos eram ferozmente acusadores:
"No ano passado todos vocês desempenharam um papel na destruição da minha vida", escreveu uma pessoa. "Perdi tudo por vossa causa - o meu filho, o meu parceiro, o meu emprego, o meu lar, a minha saúde mental". Tudo por vossa causa, disseram-me que eu não tinha controlo, como não era responsável por nada do que faço, como o meu belo filho de seis anos não era responsável pelo que fazia... Adeus, e boa sorte com o resto da vossa existência cancerosa, má e patética". "Apodreça na tua própria merda, Galen", lê-se noutra nota, enviada no início de 2015. "A tua mulher, os teus filhos, os teus amigos, manchaste todos os seus feitos [sic] merdoso de um cabrão", escreveu a mesma pessoa, que subsequentemente avisou: "Vou dar cabo de si". Dias depois, debaixo da linha de assunto "Olá", lia-se, "Vou-te apanhar". "Esta era uma em que tínhamos de envolver a polícia", disse Strawson. A partir daí, as ameaças violentas cessaram.

Não é inaudito que os filósofos recebam ameaças de morte. O filósofo australiano Peter Singer, por exemplo, recebeu muitas, em resposta ao seu argumento de que, em circunstâncias altamente excepcionais, poderia ser moralmente justificável matar recém-nascidos com deficiências graves. Mas Strawson, tal como outros que receberam ameaças, tinha apenas expressado uma posição num debate antigo acerca da liberdade, onde negam que os seres humanos possuem livre arbítrio. 

Argumentam que as nossas escolhas são determinadas por forças que escapam ao nosso controlo - talvez predeterminadas até ao big bang - e que, por conseguinte, ninguém é, nunca, totalmente responsável pelas suas acções. Ao ler os e-mails, Strawson, que dá a impressão de alguém que perdoa muito mais as falhas dos outros do que as suas próprias, viu-se empatizar com a angústia dos seus assediadores. "Penso que para estas pessoas é apenas uma catástrofe existencial", disse Strawson. "E acho que consigo ver porquê".

Oliver Burkeman in The clockwork universe: is free will an illusion?

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Nunca recebi ameaças de morte mas tenho frequentemente alunos a manifestar o seu desconforto com a filosofia. A primeira vez que isso aconteceu foi para aí no segundo ano em que dei aulas nesta escola. Uma turma muito interessante e interessada. Era no tempo em que se falava dos gregos e os alunos gostavam sempre das querelas entre Sócrates e Platão, por um lado e os sofistas, por outro. A discussão entre o  racionalismo/idealismo e o relativismo no conhecimento punha os alunos todos a discutir. Um dia, um rapaz que se sentava lá no fundo e era dos alunos mais participativos, estendeu o braço com o dedo a apontar-me e disse, um bocadinho exaltado, 'a professora está a dar-me cabo da vida. Já não sei em quem acreditar. Afinal há verdade ou não há verdade? A professora põe-nos na dúvida mas depois não diz a resposta e deixa-nos na dúvida. Isso não se faz. Estou desorientado', dizia ele. 
Isto acontece muito, nomeadamente nesta questão que aqui se aborda neste artigo sobre o determinismo e o livre-arbítrio. Há sempre alunos que desatinam. O que é bom sinal. É sinal que a filosofia desassossega, desacomoda, perturba e faz pensar. Mas pronto, não gostaria de receber ameaças de morte... livra!

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