March 13, 2021

Leituras ao entardecer - Deflacionar a identidade

 


(o resultado de ir ler para a banheira é a revista ficar neste estado....)

E se deflacionássemos (um pouco) a identidade?
Alexandre Lacroix

A questão da identidade, tão quente por estes dias, sempre me pareceu estar intimamente relacionada com esta frase de Friedrich Nietzsche, em O Crepúsculo dos Deuses: "A necessidade de uma fé poderosa não é a prova de uma fé poderosa, mas antes o oposto."

O que o filósofo aponta com esta fórmula é que o fanático ou dogmático não suporta o seu verdadeiro estado, que é o de não acreditar em nada e que, precisamente, procura numa afirmação ultrajante e maximalista da sua fé um remédio para este tumulto interior, esta vertigem de ignorar a origem do Universo, bem como o significado profundo da condição humana. 
Se Nietzsche estiver psicologicamente certo, o fanático não faz senão confessar, sem saber, que duvida e que abomina esta dúvida. 

Esta frase aplica-se bastante bem ao nosso tempo, se substituirmos "fé" por "identidade". Diz: "A necessidade de uma identidade poderosa não é a prova de uma identidade poderosa, é antes o oposto. "O que a pessoa que afirma com veemência e implacavelmente a sua identidade não pode suportar é não saber quem é. Mas essa é a natureza da condição humana: ninguém tem acesso a um conhecimento completo de si mesmo, ninguém pode compreender-se a si próprio como essência. É tão insuportável, esta incerteza sobre si mesmo, esta ameaça permanente de um desmoronamento interior, que nos apressamos a apreender uma identidade externa (uma nacionalidade, uma raça, um género...), como um ecrã ou uma máscara que gostaríamos de colocar por cima da falha.

É verdade que esta forma de ver a questão da identidade se deve em grande parte ao facto de que a minha própria linhagem está a afundar-se rapidamente na noite.
 Sou de Poitou, da parte de meu pai; através da minha mãe, de Borgonha. As suas famílias não eram nem religiosas nem poderosas. E muito rapidamente, se eu recuar na árvore genealógica, mergulha-se no anonimato, ou seja, nas vidas minúsculas daqueles que compuseram  ao longo dos séculos, a paisagem europeia, os pequenos camponeses do continente europeu, obrigados à corveia. 
Claro que posso apresentar isto como uma espécie de épico glorioso - estas pessoas eram trabalhadoras, humildes, abnegadas - mas a realidade é que não desempenharam um papel significativo na História e que não há muito para dizer sobre eles. Viveram perto da terra, das estações, das culturas, como a maioria dos seres humanos antes de nós, e isto desde o sedentarismo, desde os primórdios da agricultura no Neolítico. 
Se eu quisesse fazer, a partir destas origens, uma identidade e reivindicá-la como minha, sentir-me-ia ridículo. Eles estavam dispersos. Fizeram o que puderam. Lutaram para sobreviver e para sair da pobreza o melhor que puderam.

Esta perspectiva explica a minha tendência para pensar na identidade como um presente envenenado. Quer que um ser humano perca o contacto consigo mesmo? Nada mais fácil. Ofereça-lhe uma identidade. Diga-lhe que os seus antepassados foram vítimas de opressão e injustiças, ou foram protagonistas de um dos maiores dramas da história, ou até que tem costelas de nobreza e que certos feitos estão ligados ao seu nome. Dê-lhe a garantia de que pertence a um grupo, a uma linhagem e ele apressar-se-á nesta oportunidade de escapar à mediania indiferenciada, mas também ao tumulto que todos sentem quando se agarraram com sinceridade à pergunta: "Quem sou eu?" Não será isto correr o risco de convencer o sapo de que é um boi?

(tradução minha)

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