Texto de Manuel Castelo-Branco
Há 25 anos o poder político amnistiou Otelo e restantes condenados no caso do grupo terrorista FP-25 de Abril. Porque é que isto acabou assim? Ensaio de Manuel Castelo-Branco, filho de uma das vítimas.
Cumprem-se, a 1 de Março, 25 anos sobre a aprovação pela maioria parlamentar composta pelo PS e pelo PCP, da amnistia aos condenados das Forças Populares 25 de Abril (FP-25 de Abril) – o maior grupo terrorista criado em Portugal em democracia e responsável, em gravidade e quantidade dos crimes perpetrados, pelo maior número de acusados, pelo maior volume de roubos e o maior numero de vítimas mortais.
A história das FP-25 de Abril é, antes de mais, a história das suas vítimas. Quatorze cidadãos inocentes, dois terroristas mortos em assaltos a bancos e um outro assassinado, por vingança, por se ter tornado dissidente da organização. Decorreram pouco mais de seis anos entre o primeiro assassinato, “à queima roupa”, do GNR Henrique Hipólito e a perseguição policial seguida de tiroteio que vitimou o agente da PJ Álvaro Militão. No total, 17 vítimas mortais: um bebé de 4 meses, morto num atentado após o rebentamento de uma bomba colocada na parede de casa, ao lado do seu berço, destinada ao seu avô; dois GNR emboscados e mortos por vingança, depois de um assalto falhado na Malveira; cidadãos anónimos que estavam no local errado à hora errada; empresários considerados perigosos burgueses e agentes do capitalismo; agentes da autoridade e um alto funcionário do Estado — o director-geral dos Serviços Prisionais, que, no cumprimento do dever e no exercício das suas funções, foi baleado cobardemente com dois tiros na nuca. Gaspar Castelo-Branco era um homem sem medo, corajoso, um servidor público e cumpridor da lei, que pagou com a vida a defesa do estado de Direito e da democracia. Entre as vítimas, nenhum político, nenhum “banqueiro”, nenhum grande empresário, gestor público ou autarca. Na sua maioria, cidadãos anónimos e relativamente desprotegidos e inocentes.
A estes assassinatos, adicionam-se ainda mais de duas dezenas de baleamentos, normalmente nas pernas — porque havia que fazer ajoelhar o capitalismo — que, quase por milagre, não resultaram em maior número de mortes, mas que deixaram as vítimas com sequelas físicas e psíquicas para o resto da vida. A organização foi ainda responsável por vários assaltos a bancos e empresas, cujo produto dos roubos superou, a valores de hoje, os 5 milhões de euros. A mais espetacular dessas acções resultou no roubo de 108 mil contos pertencentes ao Banco Fonsecas e Burnay — o equivalente hoje a cerca de 2,6 milhões de euros.
Na verdade, se fizermos uma comparação entre as várias organizações terroristas de outros países, no rácio de assassinatos por milhão de habitantes, as FP-25 de Abril estariam claramente na liderança desse campeonato, ao lado das Brigadas Vermelhas, GRAPO ou Baader-Meinhof e não muito distante de grupos terrivelmente mortíferos como a ETA e o IRA. As FP-25 de Abril não foram um fenómeno passageiro nem lateral na sociedade da década de 80. A sua intimidação foi sentida em todo o País, de Norte a Sul, em todas as classes sociais e sectores de actividade.
A história das FP-25 de Abril é, antes de mais, a história das suas vítimas. Quatorze cidadãos inocentes, dois terroristas mortos em assaltos a bancos e um outro assassinado, por vingança, por se ter tornado dissidente da organização. Decorreram pouco mais de seis anos entre o primeiro assassinato, “à queima roupa”, do GNR Henrique Hipólito e a perseguição policial seguida de tiroteio que vitimou o agente da PJ Álvaro Militão. No total, 17 vítimas mortais: um bebé de 4 meses, morto num atentado após o rebentamento de uma bomba colocada na parede de casa, ao lado do seu berço, destinada ao seu avô; dois GNR emboscados e mortos por vingança, depois de um assalto falhado na Malveira; cidadãos anónimos que estavam no local errado à hora errada; empresários considerados perigosos burgueses e agentes do capitalismo; agentes da autoridade e um alto funcionário do Estado — o director-geral dos Serviços Prisionais, que, no cumprimento do dever e no exercício das suas funções, foi baleado cobardemente com dois tiros na nuca. Gaspar Castelo-Branco era um homem sem medo, corajoso, um servidor público e cumpridor da lei, que pagou com a vida a defesa do estado de Direito e da democracia. Entre as vítimas, nenhum político, nenhum “banqueiro”, nenhum grande empresário, gestor público ou autarca. Na sua maioria, cidadãos anónimos e relativamente desprotegidos e inocentes.
A estes assassinatos, adicionam-se ainda mais de duas dezenas de baleamentos, normalmente nas pernas — porque havia que fazer ajoelhar o capitalismo — que, quase por milagre, não resultaram em maior número de mortes, mas que deixaram as vítimas com sequelas físicas e psíquicas para o resto da vida. A organização foi ainda responsável por vários assaltos a bancos e empresas, cujo produto dos roubos superou, a valores de hoje, os 5 milhões de euros. A mais espetacular dessas acções resultou no roubo de 108 mil contos pertencentes ao Banco Fonsecas e Burnay — o equivalente hoje a cerca de 2,6 milhões de euros.
Na verdade, se fizermos uma comparação entre as várias organizações terroristas de outros países, no rácio de assassinatos por milhão de habitantes, as FP-25 de Abril estariam claramente na liderança desse campeonato, ao lado das Brigadas Vermelhas, GRAPO ou Baader-Meinhof e não muito distante de grupos terrivelmente mortíferos como a ETA e o IRA. As FP-25 de Abril não foram um fenómeno passageiro nem lateral na sociedade da década de 80. A sua intimidação foi sentida em todo o País, de Norte a Sul, em todas as classes sociais e sectores de actividade.
O contexto
As FP-25 de Abril nasceram a 20 de Abril de 1980, tendo como dirigentes principais Otelo Saraiva de Carvalho, José Mouta Liz e Pedro Goulart. Otelo era o cabeça de cartaz e a marca da organização, com o seu passado como dirigente militar envolvido no 25 de Abril, como ex-candidato presidencial em 1976 com 16.46% dos votos e como comandante da Região Militar de Lisboa e do Copcon no período negro que se seguiu ao golpe de 11 de Março, responsável por um clima de intimidação permanente concretizado pela emissão de vários mandados de captura em branco e pela ameaça de fuzilar fascistas no Campo Pequeno. Apesar de ter sido um dos derrotados do 25 de Novembro e da sua subsequente prisão, foi rapidamente libertado. Em Dezembro de 1980, concorreu novamente à Presidência, não conseguindo desta feita mais do que 1,45% dos votos (metade da votação de Tino de Rans nas recentes eleições presidenciais de Janeiro de 2021).
Já José Mouta Liz era quadro do Banco de Portugal desde antes do 25 de Abril, tendo sido nomeado pelo Ministério das Finanças como o responsável pelos saneamentos, nos meses do Verão Quente do pós-11 de Março de 1975.
Por fim Pedro Goulart, do qual pouco se conhece da sua carreia como economista, além do rasgado elogio fúnebre no site Esquerda.net, e do seu passado de acção terrorista como membro fundador das PRP/BR e posteriormente com um fortíssimo papel na liderança das FP-25 de Abril.
Em Abril de 1980, data das primeiras bombas e assassinatos das FP-25 de Abril, há muito que tinha passado o fervor revolucionário. A alternância eleitoral era já uma realidade e, após três eleições legislativas, quatro partidos — PS, PSD, CDS e PPM — já tinham passado pelo governo de Portugal. Sá Carneiro era nessa data primeiro-ministro e o general Ramalho Eanes seria reeleito Presidente da República nesse mesmo ano. O País preparava-se para alterar a Constituição, extinguindo o Conselho da Revolução e retirando-lhe parte da carga ideológica profundamente marxista. O sector financeiro era quase totalmente público, tal como a maioria dos órgãos de comunicação social. Nesse ano, era assinado o acordo de pré-adesão à CEE, do qual Portugal se viria a tornar membro efectivo seis anos mais tarde. Mesmo que os anos em que as FP-25 de Abril estiveram activas não tenham apresentado os mesmos níveis de crescimento que o país conhecera nas décadas anteriores, mesmo após as duas intervenções do FMI, não havia adversativa possível que justificasse o recurso à violência armada.
Prisão e julgamento
Desde muito cedo que a Polícia Judiciária conheceu algumas das actividades das FP-25 de Abril, já que muitos dos seus membros e dirigentes tinham origem nas PRP/Brigadas Revolucionárias cuja deriva de extremismo, radicalidade e perigosidade tinha sido seriamente abalada com a operação policial de 1978, que resultou na prisão dos dirigentes Carlos Antunes e Isabel do Carmo. Na verdade, a violência armada das PRP/BR, consubstanciada em dois assassinatos e dezenas de assaltos a bancos e atentados à bomba, era já um marcado prenúncio daquilo que viriam a ser o Projecto Global e as FP-25 de Abril.
Sem que aos olhos do público tal fosse totalmente transparente, estabeleceu-se o chamado Projeto Global, com um com caráter assumidamente subversivo e que articulava várias componentes legais e outras clandestinas: uma componente político-legal consubstanciada num partido político, a Força de Unidade Popular (FUP); a Estrutura Civil Armada (FP-25 de Abril), responsável pelas acções armadas e violentas, designadamente assaltos, raptos, execução de atentados e assassinatos; a componente Quartéis, liderada por Otelo e que visava recrutar militares para o movimento; e, finalmente, a componente Óscar, que fazendo uso da alcunha de Otelo na guerra colonial capitalizava a sua elevada notoriedade, procurando atrair elementos da sociedade civil.
Na verdade, as FP-25 de Abril tornaram-se numa organização mais estruturada, com objectivos políticos mais definidos, com maior financiamento (as chamadas “recolhas de fundos”) e muito mais violenta e mortífera. Apesar de alguns dos seus membros estarem já identificados, passaram mais de quatro anos até que a PJ tivesse matéria suficiente para desencadear a operação Orion. A 19 de Junho de 1984, a maior operação policial desencadeada no pós-25 de Abril resultou na prisão de 42 terroristas, entre operacionais e dirigentes das FP-25 de Abril. Incluindo os três dirigentes máximos da organização: Otelo Saraiva de Carvalho, Mouta Liz e Pedro Goulart.
Pouco mais de um ano depois, em Outubro de 1986, teria inicio o julgamento, o que, atendendo à complexidade do processo e à gravidade dos crimes, foi um passo invulgarmente rápido e um sintoma de que nem tudo estaria mal na investigação criminal em Portugal. A sentença acabou por condenar Otelo Saraiva de Carvalho e Pedro Goulart a 15 anos de prisão, e Mouta Liz a 13 anos. Penas semelhantes foram aplicadas também à generalidade dos réus, com condenações bastante pesadas e próximas da moldura penal máxima existente à época – 20 anos. É importante salientar que neste julgamento não estavam a ser julgados os crimes de sangue – as mortes, os assaltos ou os atentados à bomba — mas tão só e apenas os crimes de associação terrorista e o de atentado contra o Estado de Direito. Para a condenação contribuíram, e muito, vários documentos apreendidos em casa de Otelo Saraiva de Carvalho, nomeadamente os seus manuscritos, bem como toda a documentação apreendida na sede da FUP.
O julgamento das FP-25 de Abril foi o maior e mais mediático do século XX português, recebendo, inclusivamente, a designação de “julgamento do século”. Teve centenas de sessões, acompanhamento jornalístico internacional e até ameaças de morte contra elementos do aparelho do Estado, juízes e procuradores do Ministério Publico. Cá fora, os terroristas ainda em liberdade, junto de alguns evadidos, continuavam a escalada de terror com o assassinato de um dissidente da organização e de um agente da PJ, morto numa operação policial.
A sentença deu como provada a liderança de Otelo Saraiva de Carvalho do Projeto Global (PG), que pressupunha e articulava a existência de um partido político e de um exército revolucionário. Esta era a componente armada do PG, que, tendo sido fundado e dirigido por Otelo Saraiva de Carvalho, Pedro Goulart e Mouta Liz, entre outros, era uma “organização terrorista que visava a destruição, pelas armas, do regime democrático português”, correspondendo, “à sua escala, às Brigadas Vermelhas Italianas e, parcialmente, à RAF Alemã” e com modelos organizacionais e de actuação muito semelhantes aos do IRA e da ETA.
Para o Ministério Público, não existiam quaisquer dúvidas e as suas alegações finais foram muito claras, afirmando que “os réus terroristas se propunham a criar a instabilidade permanente em Portugal, pondo em causa a paz pública e a economia nacional, bem como as instituições do Estado”. Considerou ainda que esta organização utilizou métodos semelhantes aos das Brigadas Vermelhas, em Itália, ”utilizou toda a metodologia historicamente conhecida de organizações terroristas similares no âmbito do terrorismo urbano europeu, designadamente, após as prisões, a tentativa de manipulação dos meios de comunicação; a intimidação de magistrados, testemunhas e réus colaborantes com a justiça; e ainda a utilização de artifícios processuais tendentes a impedir a celeridade do julgamento, numa tentativa de soltar os elementos que se encontravam presos no termo da prisão preventiva”. E, na verdade, quase o conseguiram.
No recurso apresentado pelos terroristas condenados, as penas foram confirmadas pelo Tribunal da Relação em 1987. O acórdão da Relação de Lisboa manteve a condenação de 40 dos arguidos e a absolvição dos restantes, confirmando aquilo que tinha sido já decidido no Tribunal Criminal.
Ainda assim, o Ministério Público e novamente os arguidos, por razões diferentes, interpõem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que confirmou a condenação, agravando as penas para alguns arguidos, confirmou a absolvição dos restantes, mas isentou os arrependidos do cumprimento da pena. Mais ainda, determinou que o processo de extinção da FUP (Força de Unidade Popular – braço político-legal do Projecto Global) deveria ser decidido pelo Tribunal Constitucional, visto os tribunais comuns não terem competência para o efeito.
O Ministério Público, bem como alguns dos arguidos, recorreu para o Tribunal Constitucional, que publicou a sua sentença em Fevereiro de 1989. Esta, pela sua complexidade, veio criar um autêntico novelo jurídico, cujas consequências seriam imprevisíveis no caso. De uma forma simples e facilmente entendível para alguém sem formação jurídica, o Tribunal Constitucional veio obrigar à reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação. No entanto, pelo facto de não existirem gravações das audiências em tribunal, a reapreciação da prova obrigaria à repetição do julgamento, do qual resultaria uma nova sentença. Esta era, na sua grande maioria, baseada em provas documentais, complementadas pela explicação de alguns dos dissidentes da organização terrorista. Era, no entanto, convicção generalizada no meio jurídico próximo do processo que a repetição do julgamento teria provavelmente o mesmo desfecho para os arguidos.
E porque não foram gravadas as sessões do julgamento? A tecnologia existia e não seria inédito. De facto, aquando do início do julgamento, as gravações tinham sido propostas pelo Tribunal de Primeira Instância, com o intuito de proteger os acusados, conferindo-lhes precisamente o direito de usarem a prova produzida no julgamento a seu favor. Estes recusaram a gravação, tendo inclusive recorrido ao Tribunal da Relação, que lhes deu razão. Foi uma armadilha, criada com o propósito de gerar mais um facto processual, que muito beneficiou os arguidos quando o Tribunal Constitucional obrigou à reapreciação da prova.
Em Maio de 1989, os autos voltaram ao Supremo Tribunal de Justiça que, em conformidade com a decisão do Tribunal Constitucional, anulou a sentença inicial do Tribunal da Relação de 1987. Em Setembro, a Relação de Lisboa proferiu um novo acórdão, condenando 42 arguidos e absolvendo 15.
Entretanto, os vários recursos interpostos, assim como a constante transição do processo entre cada um dos tribunais, impossibilitavam que a sentença transitasse em julgado, confirmando a prisão definitiva dos arguidos.
Assim sendo, rapidamente se esgotou o prazo máximo de três anos previsto para a prisão preventiva. Apesar da incompreensão geral, e mesmo tendo já sido acusados de outros crimes chamados de sangue, os arguidos foram libertados em Maio de 1989. A libertação dos terroristas gerou, de um lado, surpresa e indignação, e, do outro lado, um festim e júbilo entre a esquerda radical, que se revê neste legado, tratando os terroristas como presos políticos e esquecendo os seus atentados, roubos e os crimes mais mortíferos. Mais uma vez sem qualquer respeito para com as várias vítimas da organização terrorista. O Estado era agora o alvo de criticas, por parte dos acusados, por não ter feito justiça, assumindo os terroristas o papel de vítimas e oprimidos pelo sistema democrático. Uma inversão total de valores.
É neste ponto que nos encontramos no final da década de 80: enquanto os tribunais discutem a complexidade jurídica do processo, os arguidos festejam a liberdade. Passaram cinco anos sobre a Operação Orion, que desmantelou a organização e prendeu os seus dirigentes, e dois anos sobre o ultimo assassinato cometido pelas FP-25 de Abril. No entanto, para a generalidade da população, a sensação de que não se tinha feito justiça era bastante evidente.
Criou-se, assim, aquilo que Mário Soares veio a chamar um “imbróglio jurídico”, para justificar a sua intervenção política no processo. Os factos tinham sido dados como provados na primeira instância, mas, como não tinha havido gravação de prova, era impossível reapreciá-la na Relação. Esta entendia que a Constituição não obrigava a apreciar a prova duas vezes e que tal cabia exclusivamente à primeira instância. O Constitucional entendia o contrário, e ordenava a anulação do acórdão e, sendo necessário, a repetição do julgamento de forma a que se permitisse a reapreciação da prova na segunda instância.
Nos vários recursos apresentados, quer pelos arguidos quer pelo Ministério Publico, o tribunal nunca pôs em causa a prova dos crimes, antes a possibilidade de reapreciação dos mesmos. Nisto, o Tribunal da Relação, o Supremo ou o Constitucional foram bastante assertivos. Aliás, as penas foram sendo confirmadas ou por vezes agravadas, de cada vez que o processo subia aos tribunais superiores. Não existiam divergências quanto à matéria de facto. O Constitucional, porém, entendeu que a possibilidade de reapreciação da prova estava limitada pela inexistência de gravações ou registos sobre a audiência. Não apontou vícios na apreciação dos factos, mas entendeu que a impossibilidade dos réus reclamarem a reapreciação dos mesmos criava um problema de forma, insanável, o que obrigaria à repetição do julgamento. Trata-se de uma questão talvez importante dentro da filosofia do Direito, mas totalmente indecifrável e incompreensível para o cidadão comum.
Com o vai e vem do processo entre instâncias, os autos rumaram, pela última vez, ao Tribunal Constitucional e por lá ficaram. Antes do acórdão final, o poder político antecipou-se, amnistiando “as infracções de motivação política cometidas entre 27 de Julho de 1976 e 21 de Junho de 1991”, nas quais se incluíam, naturalmente, as cometidas pelas FP-25 de Abril.
Um novelo complexo, mas não estaríamos num impasse. O sistema judicial teria por si a capacidade para resolver o problema, nomeadamente com a repetição do julgamento dos crimes de associação terrorista, se fosse essa a posição a prevalecer. É certo que demoraria tempo, mas era entendida pelo Ministério Publico como possível, sem necessidade de o poder político se imiscuir no poder judicial, criando uma profunda injustiça. É nestas bolandas, desta vez com a nova subida do processo ao Constitucional, que se dá a aprovação da amnistia pela Assembleia da Republica.
A amnistia e os crimes de sangue
Tirando um pequeníssimo período em que, fruto de uma confusão de nomes, se suspeitou de uma eventual ligação entre as FP-25 de Abril e o PCP, a investigação, prisão e julgamento sempre suscitaram as maiores reservas em Mário Soares e em altas figuras socialistas. A eventual ligação das FP-25 de Abril ao PCP teria sido o fim deste partido, garantindo ao PS e a Mário Soares uma total hegemonia à esquerda. No entanto, o PCP nada tinha a ver com Otelo e o seu grupo terrorista e a postura do Presidente da República alterou-se radicalmente. De tal forma que, em 1986, o general Carlos Azeredo, chefe da Casa Militar da Presidência da República, informa a família de Gaspar Castelo-Branco – director-geral dos Serviços Prisionais, assassinado com dois tiros na nuca pelas FP-25 de Abril — que o Presidente tinha rejeitado a sua condecoração, proposta pelo Governo. Era este o primeiro sinal inequívoco de que Mário Soares queria uma solução política para Otelo, antes de qualquer solução judicial. Era este o sinal de que tudo faria para impedir a condenação de Otelo.
Não eram as FP-25 de Abril que Mário Soares queria salvar, mas a memória histórica de Otelo Saraiva de Carvalho, enquanto capitão de Abril. Aliás, ter Otelo como dirigente, foi o melhor salvo conduto que as FP-25 de Abril poderiam ter tido. A Otelo, tudo era permitido e tudo lhe era desculpado. Não existem dúvidas de que a condenação de Otelo era uma “pedra no sapato” para alguma esquerda — ele era a marca ou a bandeira do 25 de Abril. Questioná-lo poderia pôr em causa a revolução e, no limite, todo o papel da esquerda, que se arvorava na liderança da mesma.
Durante a prisão de Otelo, o julgamento e principalmente após a sentença condenatória, o envolvimento de Mário Soares e Almeida Santos foi crescente e interventivo. António Almeida Santos, deputado socialista, ex-ministro, ex-secretário-geral do PS, futuro Presidente da Assembleia da República e, nessa altura, Presidente da Comissão Parlamentar dos Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias, visitava Otelo na prisão, sem nunca ter mostrado qualquer sinal de solidariedade ou proximidade para com as vítimas, ou sequer repúdio público pelos crimes cometidos.
Não que Almeida Santos concordasse com os actos, objectivos ou métodos da organização, mas uma superior complacência, ou quiçá cegueira ideológica, relegava os crimes e as vítimas à posição de um pormenor incómodo que importava esquecer. Na verdade, apesar de todos os desmentidos, Almeida Santos era o verdadeiro negociador: intermediando as condições da amnistia entre as FP-25 de Abril, o Parlamento e o Governo. Mário Soares arquitetou-a e Almeida Santos implementou-a. De fora, ficavam as vítimas, e todos aqueles que dentro do aparelho do Estado ou dentro do poder judicial, com coragem e sentido de dever, tinham feito cumprir a lei e defendido o Estado de Direito.
Acresce, por outro lado, a ala esquerda do PS, que no início dos anos 90 era constituída por ex-militantes da extrema-esquerda, que aos poucos iam engrossando as fileiras socialistas, desiludidos com o “futuro dos amanhãs que cantam” ou pura e simplesmente por pragmatismo e atração pelo poder. Foi assim com a maior parte dos ex-MES, ex-MRPP e ex-UDP que, paulatinamente, foram abandonando o fervor leninista ou maoista e ocupando cargos na alta administração pública ou nos órgãos políticos socialistas. Mas nem por isso abandonaram os seus ídolos de outrora. Salgado Zenha, ex-candidato à Presidência da República, ex-presidente do grupo parlamentar socialista, antigo opositor de Mário Soares no Secretariado, era agora também advogado de defesa dasFP-25 de Abril.
François Mitterrand interpelava Mário Soares sobre Otelo, chamando-lhe (pasme-se) o “Sakharov Português”. Os outrora cantores de intervenção, repetiam concertos em homenagem a Otelo e “aos presos políticos”. Mário Soares sentia-se legitimado para resolver politicamente um tema que era da justiça.
Perante os media, Otelo, já depois de a organização ter entregue algumas armas, junto com a assinatura de um documento em que renunciava à violência armada, contrariava os factos provados em tribunal, não mostrava arrependimento e ensaiava uma narrativa que iria afinando ao longo do tempo. Ele era o Óscar – uma das componentes do Projecto Global —, mas nada tinha a ver com as FP-25 de Abril, a componente político-militar do mesmo.
Entretanto, as pressões e sugestões do Presidente da República para com a Assembleia da República sucediam-se, culminando com a aprovação de uma proposta de indulto, em 1991, que, de forma a conseguir o consenso, tornou-se tão descafeinada como ineficaz. Isto não agradou à esquerda nem à Presidência. Por isso, Mário Soares iniciou um processo de indultos presidenciais ad hominem, válidos apenas para crimes dos quais os réus tinham sido já acusados ou julgados. De fora ficavam outros crimes e processos a decorrer em tribunal e dos quais não tinha sido lavrada ainda qualquer acusação.
Ao mesmo tempo, nas eleições legislativas de Outubro de 1995, a direita perde a maioria: PSD e CDS juntos não somavam mais do que 103 deputados e a esquerda, PS e PCP, tinham agora a maioria capaz de fazer aprovar a lei, independentemente da vontade da direita. Agora era possível aprovar a lei da amnistia sem a prudência e unanimidade inicialmente pedidas por Mário Soares. A lei, por ironia, apelava na sua redação à generosidade das vítimas – as tais que até aí nunca tinham sido lembradas, referidas ou acarinhadas.
A lei da amnistia era, pois, um favor feito a Otelo Saraiva de Carvalho, com o propósito de branquear todo o seu ignóbil comportamento, bem como da organização que liderou entre 1980 e 1987. Otelo era apenas uma marca ou um logotipo, não representava nada, nem ninguém, nem sequer um grupo político relevante, mas antes alguém que, em plena democracia, acreditava que a vida humana poderia ser sacrificada aos fins políticos pela via violência armada. A Assembleia da República, num acto magnânimo mas não unânime, preparava-se agora para perdoar quem nunca se arrependeu, ser humanista apenas para quem matou, mostrando-se indiferente ao sofrimento das vítimas. E assim foi a amnistia aprovada por 123 votos a favor, 94 contra e 3 abstenções, estes últimos, deputados independentes, ex-democratas-cristãos, eleitos nas listas do PS.
Alguns dos beneficiados eram agora amnistiados pela segunda vez depois de já terem sido indultados no final dos anos 70 como membros da PRP/BR. Ainda assim, surpreendentemente ou talvez não, a amnistia também não agradou aos ex-terroristas, que logo vieram exigir que esta fosse alargada aos crimes de sangue, uma vez que sem a componente política, branqueada na amnistia, estes seriam julgados como crimes de delito comum. Aqui, ainda que algumas vozes se tenham levantado na Assembleia da República para alargar o âmbito, na verdade já não havia contexto político que permitisse tal ousadia.
Junto com a amnistia, e depois de muitos protestos no Parlamento com o CDS a ameaçar abandonar o plenário caso o PS não quisesse também aprovar uma indemnização à família das vítimas, foi aprovado um conjunto de valores, considerados já na altura irrisórios, a atribuir às famílias das vítimas. O Estado desembolsou, em 2001, um total de 31.925 contos (cerca de 215 mil euros actualizados), de indemnizações aos familiares das vítimas de treze atentados cometidos pelas FP-25 de Abril, o que corresponde, hoje, em euros, a pouco mais do que 16 mil euros por cada uma das vitimas assassinadas. Eduardo Cabrita, na altura secretário de Estado da Justiça, dizia que eram “as quantias possíveis”, atendendo ao tempo decorrido e ao facto de vivermos num país em que as indemnizações nunca são muito generosas. O mesmo Eduardo Cabrita, em 2021, já ministro da Administração Interna, não hesitou em pagar 712 mil euros à família de Ihor Homeniuk (cidadão ucraniano barbaramente assassinado nas instalações do SEF). Desta vez, o peso na consciência, o sentimento de culpa ou, quem sabe, um mais apurado sentido de justiça, justificou que a indemnização paga fosse hoje 43 vezes superior à das vitimas de terrorismo das FP-25 de Abril.
Depois da amnistia aprovada, os membros das FP-25 de Abril, incluindo Otelo, ainda seriam julgados no início do século XXI pelos crimes de sangue que não tinham sido amnistiados. Mas nessa altura os tribunais já não conseguiam provar quem tinham matado quem, nem quem tinha ordenado os homicídios e assaltos em concreto. Ainda assim, o tribunal entendeu de forma bastante assertiva que todos aqueles réus tinham actuado de forma concertada e organizada na criação do Projecto Global, que visava a tomada de poder e a subversão do funcionamento das instituições do Estado, prevendo o recurso à violência armada, incluindo a intimidação, rapto ou eliminação física de pessoas.
A sentença foi também clara quanto à estrutura e organização do Projecto Global/FP-25 de Abril, com várias componentes:
* Político-legal: Frente de Unidade Popular-FUP;
* Civil armada: ECA/FP25A, responsável pelas acções armadas e violentas, designadamente assaltos, execução de atentados, raptos e assassinatos;
* Quartéis: dirigida por Otelo Saraiva de Carvalho, tinha como objectivo a criação de uma estrutura paralela de reacção dentro do exército português;
*Óscar: personalizada em Otelo Saraiva de Carvalho, visava através da sua notoriedade atrair elementos da sociedade civil para engrossar as fileiras da organização, em cada uma das suas componentes.
E a história acabaria assim: dezenas de criminosos ilibados pelo Estado de crimes concretos, e dezenas de vítimas e suas famílias ignoradas pelo mesmo Estado. Um Estado cuja consciência foi limpa com uma singela indemnização.
Nota pessoal
Para quem não sabe, a semelhança de apelidos com Gaspar Castelo-Branco não é uma coincidência, é um orgulho. Lembro-me da primeira vez que dei uma entrevista. Teria cerca de 20 anos e quis partilhar a perspectiva das vítimas das FP-25 de Abril. Lembro-me de quanto isso me custou e da violência que representou para a minha família. Lembro-me da mãe do bebé Dionísio, que rompeu num pranto quando foi entrevistada pela Rádio Renascença, mais de 10 anos depois de este ter sido morto à bomba, com apenas 4 meses. É uma recordação permanente, sempre que por ali passo, em São Manços. Lembro-me da mulher do agente Álvaro Militão, grávida de cinco meses aquando do crime, que além do marido perdeu também o filho, que nunca chegou a nascer. Lembro-me do Luís, filho do administrador da Fábrica de Loiças de Sacavém, assassinado à porta de sua casa em Almada, com quem me cruzei profissionalmente e de quem me tornei amigo, mas com quem nunca falei sobre este tema, porque a dor é privada e não gostamos de a partilhar. Foram anos, décadas, até que cada um de nós conseguisse abordar o tema, sem uma tensão ou emoção descontroladas, sem ficar várias noites sem dormir.
Isto porque a dor das vítimas não se esgotou no momento da morte do seu ente querido, mas pelo contrário foi alimentada pela revolta crescente que foram sentindo, na injustiça, o ostracismo ou o silêncio ostensivo a que foram votadas, de factos que se iam acumulando: um julgamento que nunca foi terminado, uma amnistia que branqueou os criminosos, um jornalismo displicente que não hesitava em promover Otelo Saraiva de Carvalho a herói da liberdade, anualmente, no mês de Abril. Fazê-lo não foi apenas um jornalismo insensível, sem isenção e sem rigor. Fazê-lo desta forma foi o que permitiu que hoje, passados 41 anos sobre a formação dos primeiros atentados e 25 anos depois da amnistia, o País não saiba quem foi esta gente e os crimes que praticaram. Se a violência política contra uma ditadura tem óbvias atenuantes, a violência política contra a democracia só pode ter agravantes.
Por isso me obriguei, passados 25 anos sobre a amnistia, a escrever este pequeno ensaio. Não foi, no entanto, um texto fácil de escrever. Por um lado, havia que garantir a fidelidade dos factos, limitada pela reduzida dimensão do ensaio, quase incompatível com a complexidade política e jurídica do tema. Esta é agravada pela abundância de fontes, desde as sentenças dos tribunais, os vários artigos e entrevistas dos intervenientes, do “Expresso” ou do “Diário de Noticias” aos extintos “O Semanário”, “O Jornal” e “O Diário Popular”, aos noticiários da RTP, etc. Meios de várias sensibilidades políticas, mas que nem por isso deixaram de relatar factos objectivos. Por outro lado, havia uma sensibilidade pessoal, expressa em dor e revolta, que tive como objectivo expurgar do ensaio, sem que com isso perdesse a minha visão critica. Espero tê-lo conseguido.
Infelizmente, tudo o que se escreveu até à data foi pouco e muito parcial: primeiro pelos advogados de defesa, depois nas biografias de alguns dos acusados, logo nos anos a seguir ao julgamento, ou o contraditório feito por mim, uns anos mais tarde, em blogues ou em jornais, tarefa que assumi com sacrifício e determinação. Sem falsas modéstias, acredito que contribuí para ajudar a equilibrar o prato da balança, mas não o suficiente. A bem da verdade, seria útil que passados todos estes anos fosse possível que alguém independente, descomprometido, pudesse explicar de A a Z o que aconteceu neste período negro da nossa democracia. Para bem do rigor histórico e pela defesa da liberdade e da democracia. Porque a história não se apaga, nem se reescreve, goste-se ou não dela.
Dedicado ao meu Pai, pela sua coragem, justiça e sentido de dever.
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