Hoje vi este filme perturbador. Spoiler alert: quem não viu o filme e quer ver, não leia.
Uma rapariga, lojista, casa com um indivíduo duma família muito rica de empresários. O indivíduo casa com ela por ela ser bastante bonita, mas não lhe liga nenhuma enquanto pessoa. Acha que a comprou, por ela ser uma pessoa humilde e que por isso tem direitos sobre o corpo dela. Ela, que é tímida e tem muita falta de auto-estima e uma certa dismorfia, gosta mesmo dele, acha que teve sorte em conhecê-lo e quer muito agradar e fazê-lo feliz. Tenta agradar à família dele, que pensa ser de pessoas superiores, mas a família também só a vê um corpo bonito que há-de gerar bébés empresários.
A mãe, que já aceitou a sua condição de invisível, conta-lhe com orgulho que sofreu 36 horas de trabalho de parto quando o filho nasceu e o marido acrescenta, a rir, que ele depois não lhe ligava nenhuma e preferia a cauda do gato.
Passa o tempo sozinha, numa casa grande, isolada. Tem imensas regras sobre o que pode fazer e o que não pode fazer. Fica grávida e a partir daí perde ainda mais o controlo do próprio corpo. Já só lhe falam desse assunto e para saber como está a cuidar do corpo. Enfim, a rapariga começa a engolir objectos depois de saber que está grávida: berlindes, alfinetes, baterias, pedras, terra, uma chave de parafusos. É a única maneira que tem de sentir que o corpo é seu e que o controlo do corpo lhe pertence a si e não aos outros. Se o quiser danificar, danifica.
Acha-se uma freak por razões que só percebemos no fim do filme, quando ela vai enfrentar o pai, um violador, que violou a mãe e lhe diz que tem medo de ser culpada da infelicidade da mãe, por ter sido gerada duma violação, e de não valer nada... de ser igual a ele.
A família contrata um tipo com ar de Mossad para a vigiar em casa o tempo todo, de modo que perde até a relativa autonomia que tinha em casa. No entanto é esse tipo quem acaba por ajudá-la. É um tipo que veio da guerra da Síria e reconhece trauma quando o vê.
Ela acaba por fugir, vai ter com uma médica a quem pede medicamentos para abortar, o que faz, porque não tem condições para ter um filho, mas acima de tudo porque quer recuperar o controlo do seu próprio corpo. Quer que o corpo lhe pertença e não sentir-se uma alienígena no próprio corpo.
A última cena do filme passa-se numa casa-de-banho de um centro comercial, onde ela aborta e onde ficamos a ver durante os créditos, mulheres de todos os tamanhos, idades, raças e figuras, a entrar e sair da casa-de-banho.
O filme é sobre isso: como a sociedade controla, vigia, determina o que deve ser o corpo das mulheres e como devem usá-lo e o estrago que isso lhes faz, física e psicologicamente, porque as mulheres são pessoas, não são corpos incubadores ou objectos de desejo do outro.
O filme é muito bom. O cenário da casa dos sogros, tudo branco e simétrico. Sem cor nenhuma, sem vida, uma coisa mesmo artificial. O filme tem muitas subtilezas significantes. Como o dia em que ela se arrasta para debaixo de um sofá para se esconder do mundo e porque se sente como o pó que anda debaixo dos móveis e o sírio em vez de a tirar vai para debaixo do sofá fazer-lhe companhia e é a única vez que baixa a guarda e adormece. Essa cena é muito poderosa e linda.
A actriz, que não conhecia, é excelente. O filme é muito bom.
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