January 18, 2021

Leituras pela manhã - acerca da felicidade

 


Porque é que a nossa busca pela felicidade pode ser falhada

By Nat Rutherford



Martha Nussbaum, uma proeminente filósofa da ética, afirma que as sociedades modernas encaram a felicidade como 'um sentimento de contentamento ou prazer, e uma visão que faz da felicidade o bem supremo, por definição, uma visão que dá valor supremo a estados psicológicos'. 

Os livros de auto-ajuda e a "psicologia positiva" prometem desbloquear esse estado psicológico ou disposição feliz. Mas os filósofos tendem a ser cépticos em relação a esta visão da felicidade porque os nossos estados de ânimo são fugazes e as suas causas muito incertas. Em vez disso, fazem uma pergunta relacionada, mas mais ampla: o que é a boa vida?

Uma resposta seria uma vida passada a fazer coisas que agradam e trazem prazer. Uma vida passada a experimentar o prazer seria, de certa forma, uma boa vida.

Mas a maximização do prazer não é a única opção. Toda a vida humana, mesmo a mais afortunada, está repleta de dor. Perdas dolorosas, desilusões dolorosas, a dor física de lesões ou doenças e a dor mental do tédio, solidão ou tristeza duradouros. A dor é uma consequência inevitável de se estar vivo.

Para o antigo filósofo grego Epicuro uma boa vida era aquela em que a dor seria minimizada. A ausência de dor concede-nos tranquilidade de espírito, ou ataraxia. Esta noção tem algo em comum com a nossa compreensão moderna da felicidade. Estar "em paz consigo mesmo" marca a pessoa feliz e distingue-a do infeliz e ninguém imaginaria que uma vida cheia de dor pudesse ser uma boa vida. Mas será que a minimização da dor é realmente a essência da felicidade?

E se viver uma boa vida aumentar a dor que sentimos? Estudos têm demonstrado que ter laços amorosos correlaciona-se com a felicidade, mas sabemos por experiência que o amor é também causa de dor. E se a dor for necessária e mesmo desejável? A dor da morte de pais, filhos, parceiros ou amigos pode ser evitada se nos deixarmos de se preocupar com essas pessoas ou se as extrairmos completamente da nossa vida. Mas uma vida sem apego amoroso é deficiente de várias maneiras importantes, mesmo que nos possa libertar da dor de perder aqueles que amamos. Todas as coisas boas da vida implicam sofrimento. Escrever um romance, correr uma maratona, ou dar à luz, tudo é causa de sofrimento, em busca do resultado final, a alegria.

O sofrimento pode tornar a ataraxia mais apelativa. Aceitar o sofrimento como inevitável, enquanto se tenta minimizar os seus danos, é a única forma de viver. Também se pode utilizar a minimização da dor como guia para a acção. Se o processo de escrever um romance lhe causar mais dor do que o prazer que antecipa de o terminar, então não o escreva. Mas se alguma dor agora evitará dor maior mais tarde - a dor de deixar de fumar para evitar a dor do cancro, por exemplo - então essa dor pode ser benéfica. A felicidade epicureana é uma questão de ser um bom contabilista e de minimizar a dor da forma mais eficiente possível.

Mas, esta visão contabilista da felicidade é demasiado simplista para reflectir a realidade. Nietzsche, em A Genealogia da Moral, viu que não suportamos a dor apenas como um meio de alcançar maior prazer porque "o homem...não repudia o sofrimento como tal; ele deseja-o, ele até o procura, desde que lhe seja mostrado um significado para ele, um propósito no sofrimento". Na opinião de Nietzsche, a dor não é aliviada pelo prazer, mas sim pelo significado. Ele não sabia se poderíamos encontrar significado suficiente para que o sofrimento valesse a pena, mas a sua percepção aponta a falha na visão de Epicuro sobre o que é a boa vida.

Uma vida de dor significativa poderia ser mais valiosa do que uma vida de prazer sem sentido. Como se não fosse suficientemente difícil perceber o que é a felicidade, precisamos agora de perceber o que é também uma vida com sentido.

Mas se colocarmos de lado a complicada questão de saber o que torna a vida significativa, ainda podemos ver que a ideia moderna da felicidade como summum bonum - ou bem mais elevado do qual todos os outros bens fluem - está errada.

O filósofo americano Nozick fez uma experiência para mostrar esse seu ponto de vista. Nozick pede-nos que imaginemos uma "máquina que pudesse dar a experiência que se desejasse". A máquina permitia experimentar a felicidade de satisfazer todos os desejos. Poderia ser um grande poeta, tornar-se o maior inventor alguma vez conhecido, viajar pelo Universo numa nave espacial com o seu próprio design, ou tornar-se um cozinheiro muito apreciado num restaurante local. A condição é que a pessoa estaria inconsciente, num tanque de suporte de vida e como a máquina faz acreditar que a simulação é real, a escolha seria definitiva.

Quem entraria na máquina, sabendo das condições? Nozick diz que não o faria porque queremos realmente fazer certas coisas e ser certo tipo de pessoas e não apenas ter experiências agradáveis. Esta situação hipotética pode parecer frívola, mas se estamos dispostos a sacrificar o prazer sem limites por um significado real, então a felicidade não é o bem mais elevado. Mas se Nozick estiver certo, então os 81% dos americanos inquiridos que escolheram a felicidade como o supremo bem em vez de grandes realizações, estão errados e estudos têm demonstrado que as pessoas optariam, na sua maioria, por não entrar na máquina.

A máquina de Nozick tinha como objectivo refutar a afirmação essencial do utilitarismo de que "a felicidade é a única coisa desejável, como fim". Em 1826 John Stuart Mill, ficou atolado na infelicidade. Na sua autobiografia, Mill descreve aquilo que agora reconhecemos como anedonia depressiva: "Eu estava num estado apático, insusceptível de desfrutar prazer ou excitação agradável; um desses estados de ânimo quando o que é prazer noutras alturas, se torna insípido ou indiferente".

Mill estava incapaz de sentir prazer na vida. Isto seria mau para a maioria das pessoas, mas para Mill apontava para algo ainda mais preocupante. Tinha-lhe sido ensinado desde o nascimento que o fim último da vida é maximizar o prazer da humanidade e minimizar a sua dor. O pai de Mill era um seguidor do filósofo utilitarista Bentham e tinha criado o seu filho de acordo com a opinião deste. Bentham foi mais longe que Epicuro, fazendo da felicidade o último apelo de uma vida individual e o último apelo da moralidade. Para Bentham, todas as questões morais, políticas e pessoais podem ser resolvidas por um princípio simples - "a maior felicidade para o maior número". Mas se esse era o único princípio a viver, como poderia Mill justificar a sua própria existência, desprovida de felicidade?".

Através da sua depressão, Mill percebeu que o princípio utilitário de Bentham, que elevava o prazer ao bem supremo, era uma "filosofia suína", adequada apenas para os porcos. Insatisfação, infelicidade e dor fazem parte da condição humana e por isso "é melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito", de acordo com Mill. Ele continuou a acreditar que a felicidade era profundamente importante, mas percebeu que tomar como objectivo a felicidade raramente nos conduzirá a ela.

Em vez disso, Mill pensou que se deveria apontar para outros bens e a felicidade poderia ser um subproduto. Mas isto também sugere que uma boa vida pode ser uma vida infeliz. O que o Mill reconheceu foi o que Aristóteles tinha argumentado dois milénios antes - o prazer passageiro da felicidade é secundário a viver uma boa vida, ou de alcançar o que Aristóteles chamou de 'eudaimonia'.

A eudaimonia é um conceito difícil de traduzir para os nossos conceitos contemporâneos. Alguns, como a filósofa Julia Annas, traduzem-na directamente como "felicidade", enquanto outros estudiosos preferem "o florescimento humano". Qualquer que seja a tradução, ela marca um contraste distinto com a nossa concepção moderna de felicidade.

A visão de Aristóteles sobre o florescimento é complexa porque incorpora satisfação individual, virtude moral, excelência, boa sorte e compromisso político. Ao contrário da visão contabilística da dor de Epicuro ou da visão "suína" do prazer de Bentham, a ideia de Aristóteles de florescer é tão confusa como os humanos que descreve.

Tal como a nossa concepção moderna da felicidade, a eudaimonia é o propósito último da vida. Mas ao contrário da felicidade, a eudaimonia é realizada através de hábitos e acções, não através de estados mentais. A felicidade não é algo que se experimenta ou se obtém, é algo que se faz.

Na sua Ética a Nicómaco, Aristóteles escreve: "Como não é uma andorinha ou um belo dia que faz uma primavera, não é um dia ou um curto período de tempo que faz um homem abençoado e feliz". Por outras palavras, florescer é o empreendimento de uma vida, porque é algo que se deve cultivar diariamente através das suas acções. Tal como os utilitários, Aristóteles argumentou que a felicidade e a virtude estavam indissoluvelmente ligadas.

Para Aristóteles, a virtude é uma característica que atinge uma posição média ou intermédia entre os extremos. Por exemplo, entre os extremos da cobardia e da imprudência encontra-se a bravura; entre os extremos da avaro e do perdulário encontra-se a generosidade. Agir para manter um equilíbrio entre os extremos é uma acção virtuosa. Mas onde os utilitários reduziram a moralidade à felicidade, Aristóteles sustentou que a virtude é necessária, mas não suficiente para a eudaimonia. Não podemos florescer sem virtudes, mas ser virtuoso não é um atalho para a eudaimonia. Pelo contrário, a acção virtuosa é em si mesma uma parte da eudaimonia.

Aristóteles argumentou que as questões sobre o que faz alguém feliz e o que faz alguém ser uma boa pessoa não são separadas. A relação entre bondade ética e viver uma boa vida era a questão determinante da filosofia antiga. E ainda hoje é a nossa pergunta.

Para Aristóteles, florescemos através do exercício das nossas capacidades humanas únicas de pensar e raciocinar. Mas pensar e raciocinar são actividades tanto sociais como individuais: "os homens não são indivíduos isolados, e a excelência humana não pode ser praticada por eremitas". Se o florescimento requer outros, o mesmo acontece com a felicidade. A felicidade não é tanto um estado emocional como é a excelência das relações que cultivamos com outras pessoas.

Mas mesmo isso não pode garantir o florescimento. Aristóteles reconheceu que a nossa felicidade é refém da sorte. Acontecimentos fora do controlo de qualquer indivíduo - guerra, amor não correspondido, pobreza e pandemias globais - tornarão muitas vezes impossível o florescimento (e a felicidade que vem com ele).

Esta ideia de sorte ligada à moral não prejudica a prossecução da eudaimonia, mesmo quando a frustra. A felicidade não é um estado mental que pode ser permanentemente conquistado, mas sim uma prática que vamos afiando, imperfeitamente, em circunstâncias que apenas em parte controlamos.

Reconhecer isto não garantirá uma boa vida, mas dissipará a esperança ilusória de contentamento permanente. Ao compreender mal a felicidade, a concepção moderna aumenta a probabilidade de desapontamento. Nenhuma vida que valha a pena viver deve satisfazer o padrão estabelecido por Epicuro ou as visões utilitárias da felicidade, pelo que os seus aderentes modernos estão destinados a desiludir-se com as nódoas da vida humana. Em vez disso, podemos abraçar, com Aristóteles essas nódoas e florescer apesar delas.

(excerto grande do artigo - tradução minha)

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