December 17, 2020

Dedicado a um amigo que faz hoje anos




... e que não vejo há uns bons anos mas que sei anda por aí porque vejo-o de vez em quando muito ao longe.
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UMA CRIATURA


Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.



Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.



Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.



Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta de colibri, como gosta de verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.



Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme.



Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.



Pois essa criatura está em toda a obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as suas forças dobra.



Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.



Assis, Machado de, 1839-1908

O Almada & outros poemas / Machado de Assis – São Paulo

Globo, 1997, - (obras completas de Machado de Assis) p.126.


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