December 05, 2020

Camus lost in translation

 



Lost in Translation: o que devia ser a primeira linha de “O estrangeiro”

por Ryan Bloom


Photograph by Henri Cartier-Bresson/Magnum.




Para o leitor americano moderno, poucas linhas na literatura francesa são tão famosas como a abertura de L’Étranger de Albert Camus: Aujourd’hui, maman est morte. Deixando de lado as questões tensas, a primeira frase de “O Estrangeiro” é tão elementar que mesmo um estudante com um conhecimento básico de francês poderia traduzi-la adequadamente. Então, por que é os profissionais continuam a errar?

Na primeira frase do romance, duas decisões de tradução subtis e aparentemente menores têm o poder de mudar a maneira como lemos tudo o que se segue. O que torna essas escolhas específicas, espinhosas, é que elas despertam um debate antigo na comunidade literária: se é necessário que um tradutor tenha algum tipo de afinidade especial com o autor de uma obra para produzir o melhor texto possível. 

Arthur Goldhammer, tradutor de um volume dos editoriais do Combat de Camus, chama de "absurdo" acreditar que "uma boa tradução requer algum tipo de simpatia mística entre autor e tradutor." Embora "místico" possa realmente ser um pouco exagerado, é difícil olhar para a famosa primeira frase de Camus - seja traduzida por Stuart Gilbert, Joseph Laredo, Kate Griffith, ou mesmo, em um grau menor, Matthew Ward - sem pensar que um pouco mais de entendimento entre autor e tradutor podia ter evitado que o texto fosse colorido de maneiras que Camus nunca pretendeu.

Stuart Gilbert, um estudioso britânico e amigo de James Joyce, foi a primeira pessoa a tentar  traduzir L’Étranger de Camus em inglês. Em 1946, Gilbert traduziu o título do livro como The Outsider e interpretou a primeira frase como "A mãe morreu hoje".  Simples, sucinto e incorreto. 

Em 1982, Joseph Laredo e Kate Griffith produziram novas traduções de L’Étranger, cada um optando pelo título de Gilbert, O Estranho, mas preservando a sua primeira linha. "A mãe morreu hoje" permaneceu e só em 1988 a frase viu uma única palavra ser alterada. Foi então que o tradutor e poeta americano Matthew Ward reverteu "Mãe" de volta para Maman. Uma palavra? Qual é o problema? 

Grande parte de como vemos e, em última análise, como vê o juiz Meursault, na obra, reside na nossa percepção do seu relacionamento com a sua mãe. Nós condenamo-lo ou o libertamo-lo com base, não no crime que ele comete, mas na nossa avaliação dele como pessoa. Ele ama a sua mãe? Ou ele é frio com ela, indiferente, até?

As primeiras impressões são importantes e, por quarenta e dois anos, a forma como os leitores americanos foram apresentados a Mersault foi por meio da formalidade destacada de sua declaração: “A mãe morreu hoje”. Há pouco calor, pouco vínculo ou proximidade ou amor em “Mãe”, que é um termo estático e arquetípico, não o tipo de coisa que usamos para viver, respirar, ser com quem temos relações íntimas. Fazer isso seria como chamar o cachorro da família de “Cachorro” ou o marido de “Marido”. A palavra nos força a ver Mersault como distante da mulher que o gerou. 

E se a frase de abertura fosse: “Mamãe morreu hoje”? Como teríamos visto Mersault então? Provavelmente, a nossa primeira impressão seria a de uma criança falando. Em vez de ficarmos desanimados, teríamos sentido pena ou simpatia. Mas isso também teria apresentado uma visão imprecisa de Mersault. A verdade é que nenhuma dessas traduções - “Mãe” ou “Mamãe” - é fiel ao original. A palavra francesa maman fica algures entre os dois extremos: não é nem a fria e distante "mãe" nem a excessivamente infantil "mamãe". Em inglês, "mãe" pode parecer o mais próximo e adequado para a frase de Camus, mas ainda há algo desagradável e abrupto sobre a palavra monossilábica; as duas sílabas maman têm um toque de suavidade e calor que se perde com a "mãe".

Então, como pode o tradutor da língua inglesa evitar influenciar desnecessariamente o leitor? Parece que Matthew Ward, o tradutor mais recente do romance, fez a única coisa lógica: nada. Ele deixou a palavra de Camus intacta, reproduzindo a famosa primeira frase, "Maman morreu hoje." Pode-se dizer que Ward apresenta um novo problema: agora, desde o início, o leitor americano se depara com um termo estrangeiro, com uma confusão que não existia antes. A tradução de Ward é inteligente, no entanto e três razões demonstram por que ela é a melhor solução. 

Primeiro, a palavra francesa maman é familiar o suficiente para um leitor de língua inglesa interpretar. Ao redor do mundo, conforme as crianças aprendem a formar palavras balbuciando, elas começam com os sons mais simples. Em muitas línguas, bilabiais como “m”, “p” e “b”, bem como a vogal baixa “a”, estão entre os mais fáceis de produzir. Como resultado, em inglês, descobrimos que as crianças inicialmente se referem à mãe como "maman". Mesmo num idioma aparentemente tão diferente como o chinês mandarim, encontramos māma; nas línguas do sul da Índia, temos amma, e em norueguês, italiano, sueco e islandês, bem como em muitas outras línguas, a palavra usada é “mamma”. A maman francesa é tão semelhante que o leitor da língua inglesa a compreenderá facilmente.

Com o passar dos anos, as novas gerações de leitores americanos, que muitas vezes encontram o livro de Camus pela primeira vez na faculdade, ficam cada vez mais afastadas do contexto histórico do romance. Utilizar a palavra original em francês na primeira frase, em vez de qualquer uma das opções em inglês, também serve para lembrar os leitores de que estão de facto entrando em um mundo diferente do seu. Embora essa dica possa não ser suficiente para informar ao leitor mais jovem que, por exemplo, a probabilidade de um francês na Argélia colonial ser condenado à pena de morte por matar um árabe armado era quase inexistente, pelo menos fornece uma alusão inicial a essas factos textuais. 

Finalmente e, talvez o mais importante, o leitor americano não abrigará noções preconcebidas da palavra maman. Entende-a com facilidade, mas não 'carregará bagagem', não plantará sementes indesejadas na nossa cabeça. A palavra não nos levará a ver Mersault como excessivamente frio e cruel, nem como excessivamente caloroso e amoroso. E embora parte da precisão da palavra seja de facto perdida para o leitor de língua inglesa, maman ainda nos dá um tom mais neutro para familiar do que "mãe", um tom que se aproxima mais do original de Camus.

Então, se Matthew Ward finalmente corrigiu o problema da 'mãe', onde é que ele e os outros tradutores erraram? Escrevendo a primeira frase de “The Stranger” no Guardian, Guy Dammann diz: “Algumas aberturas são tão prescientes que parecem abrir um buraco no resto do livro, a ressonância semântica recorrente com a persistência do primeiro tema em Quinta Sinfonia de Beethoven. ” 

A fluência linguística de qualquer bom tradutor diz-lhes que, sintaticamente, "Aujourd’hui, maman est morte" não é a frase em inglês mais fluida. Portanto, em vez da tradução mais literal, “Hoje, a mãe morreu”, obtemos “A mãe morreu hoje”, que é a tradução mais suave e natural. Mas a questão é: ao mudar a sintaxe da frase, também estamos a mudar a sua lógica, o seu significado mais profundo "místico"? 

A resposta é um oui retumbante! 

Traduzir a frase como "A mãe morreu hoje" negligencia completamente uma ordem específica de ideias que oferecem uma visão sobre a psique interior de Mersault. Ao longo do romance, o leitor percebe que Mersault é um personagem que, antes de mais nada, vive o momento. Ele não habita conscientemente no passado; ele não se preocupa com o futuro. O que importa é hoje. O factor mais importante do seu ser é agora. Não muito atrás, porém, está maman. Reflexo da vida de Camus, Mersault compartilha um relacionamento único com sua mãe, em parte devido à sua incapacidade de se comunicar (a própria mãe de Camus era analfabeta, parcialmente surda e tinha problemas para falar). Tanto Camus quanto Meursault anseiam por maman, por sua felicidade e amor, mas acham difícil expressar essas emoções. Em vez de distanciar mãe de filho, no entanto, essa tensão coloca  maman no centro da vida de seu filho. Quando o livro começa, a perda de Maman a coloca entre a capacidade de Mersault de viver para o hoje e o seu reconhecimento de um tempo em que não haverá mais um hoje.

Essa perda impulsiona a ação do romance, levando inexoravelmente ao fim, ao período final, aquilo que paira sobre tudo o mais: a morte. No início do livro, Camus relaciona a morte da mãe de Mersault com o sol opressor e sempre presente, de modo que, quando chegamos à cena climática da praia, vemos o simbolismo: sol é igual a perda da mãe, o sol faz Mersault puxar o gatilho. Caso não entendamos, porém, Camus deixa a conexão explícita, escrevendo: “Era o mesmo sol do dia em que enterrei maman e, como então, a minha testa estava doendo especialmente, todas as veias pulsando juntas sob a pele.” À medida que o gatilho cede, o mesmo acontece hoje, o início - com a perda de maman - sucumbe à morte, o fim. 

A ordem das palavras na primeira frase de Camus não é acidental: o dia de hoje é interrompido pela morte de maman. A frase, a que ainda não vimos corretamente traduzida numa tradução em inglês de "L’Étranger", deveria ser: "Hoje, maman morreu."

(tradução minha)

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