December 13, 2020

Acerca da entrevista de José Rodrigues dos Santos sobre a polémica em volta do seu livro




Começo já por fazer aqui um aviso prévio:  não li o livro de José Rodrigues dos Santos. Não leio os livros dele. Quando ele publicou o primeiro, 'O Codex' (acho que se chama assim) naquela altura em que toda a gente tinha um livro no prelo a imitar o Código da Vinci, como fez muito sucesso, folheei-o (acho que foi esse) numa livraria e li o primeiro capítulo assim na diagonal mais páginas aqui e ali. Achei pretensioso. No meio de um romance tinhas páginas inteiras a discutir as fontes do material que usava. 
Epá, achei horrível: uma pessoa quando lê um romance não quer ser interrompida pelo autor com demonstrações de erudição como se estivesse a pedir desculpa de escrever romances e a querer mostrar que está acima disso. Achei secante e de mau gosto. Depois, passados uns anos, como ele tem muito sucesso de vendas, disse para mim, 'ok, vou dar o benefício da dúvida e pegar noutro livro dele para ver se aquilo de não gostar foi um exagero'. Não, não foi. Tive outra vez a mesma impressão, de modo que nunca li nenhum livro dele. Leio muito e hoje-em-dia dou a mim mesma o privilégio de não perder tempo com livros que não gosto logo ali à primeira página.

Portanto, este meu comentário tem que ver com esta entrevista - nem sequer li os artigos da Pimentel. Tenho visto isso nas redes sociais mas não li. E já agora também digo que não gosto nem desgosto de José Rodrigues dos Santos, não lhe tenho nenhum ódio como vejo muita gente ter-lhe. No entanto, dado que ele é um jornalista importante na nossa comunicação social e também dá aulas na universidade onde se formam mentes, apraz-me dizer alguma coisa sobre a defesa da sua posição aqui neste artigo de jornal.

1. O que me interessa não é o mito, mas a verdade sobre o que se passou. A literatura é sobre a verdade(...) Que José Rodrigues dos Santos pense e acredite que o seu livro reproduz aquele lugar com honestidade e que está a dizer a verdade sobre aquela realidade, para mim é chocante, quer dizer, que ele pense que está na posse da verdade e é um arauto da verdade. Eu não sou historiadora, nem tenho posse da verdade (estou cheia de dúvidas), mas não sou ignorante: comecei a ler sobre essa questão aos 13/14 - estava muito obcecada com a questão do mal e da sua origem. Desde então li centenas de livros e documentos: relatos de sobreviventes, as biografias dos nazis, documentos de estudo... ainda hoje compro e leio quando sai alguma coisa nova interessante para perceber. melhor o assunto No entanto, depois disto, não tenho a pretensão de ter 'descoberto' a verdade. Não penso sequer que exista, 'uma verdade' sobre o assunto e saber que um jornalista que escreve romances pensa ter desvelado o mito, como ele diz, e ter tido acesso à verdade, só isso já me assusta um bocadinho. Quem não tem dúvidas e se pensa detentor da verdade é um dogmático e um dogmático é um predicante, no mínimo e, um autoritário no máximo. Ainda, que ele pense que a literatura diz a verdade confirma a impressão que tive ao folhear os seus livros: aquilo não é bem literatura, é um pretenciosismo. A boa literatura sugere e deixa ao leitor o trabalho da interpretação; onde o autor quer mandar na interpretação do leitor, a literatura já se retirou e na melhor das hipóteses temos um documento histórico ou de interpretação da história, mas isso não é um romance.

2.  opiniões são livres, mas os factos sagrados. Cá está o termo 'sagrado' que lhe escapou da boca, por assim dizer: os factos como sabemos não são puros, são interpretados e as interpretações são feitas no quadro de sistemas de crenças, de valores, culturas, motivações, etc. Portanto, ele quer muito passar por ser um académico objectivo (o que dá cabo de um romance, mas isso é outra história) mas a sua posição é ingénua ao pensar que tem acesso aos factos puros. É ridículo da parte de um jornalista, um adulto educado, um professor universitário pensar que tem uma chave de acesso ao facto puro.  

3. Os 'factos' de que fala Rodrigues dos Santos também os conheço, mas lá está: os factos têm de ser interpretados. Por exemplo, as incongruências de que fala:

- Heinrich Himmler, sentiu-se indisposto quando pela primeira vez viu judeus serem mortos e foi o maior responsável pelo extermínio de judeus. Não há aqui nenhuma incongruência. Vamos ser claros: o indivíduo era um filho da puta da pior espécie que queria que os judeus desaparecessem, mas não queria estar perto, nem ver o trabalho sujo a ser feito. Ele até se queixa, sabemo-lo, e pede que os seus esquadrões de morte tenham folgas especiais porque, coitadinhos, ficavam deprimidos depois de matar muitos judeus. Onde é que há aqui incongruência? São uns filhos da puta completamente imorais que põem o cerne do mal, não em si mesmo e nos seus crimes, mas nas vítimas. É claro que se sentem mal: se fossem a um matadouro ver como se matam os animais também se sentiam mal. Não há aqui nenhuma incongruência, o que há é falta de inteligência na apreciação dos factos.

- "A mesma incongruência com que Johann Schwarzhuber, o comandante de Birkenau responsável pela morte de mais de um milhão de pessoas, se tenha queixado junto da sua chefia a dizer que não se alistou nas SS para matar judeus." Onde é que há aqui incongruência? A besta vai queixar-se, não de os judeus estarem a ser mortos, mas do trabalho ser secante, difícil de fazer, incomodativo, ter que estar de serviço num matadouro de carne humana. Mais uma vez, não há aqui nenhuma incongruência, o que há é falta de inteligência na apreciação dos factos.

- "E a mesma incongruência com que se constata que a maior parte dos autores materiais do Holocausto não eram psicopatas sádicos, mas pessoas como nós, capazes de empatia e com perfeita noção de que estavam a fazer o mal." Mais uma vez, não há aqui nenhuma incongruência, o que há é falta de inteligência na apreciação dos factos.
Vejamos: é evidente que estes nazis eram seres humanos e tal como todos nós têm músculos e ossos e carne e neurónios, etc. E filhos com quem brincavam. Não eram monstros mitológicos. Foram seres humanos como nós. Isso é diferente de dizer que 'são pessoas como nós'. 
Quer dizer, aqueles inspectores que assassinaram à pancada um homem no aeroporto de Lisboa sem mais nem ontem, são seres humanos como nós, não são monstros, mas não são pessoas como nós, porque nós, pelos menos a maioria de nós, quero crer, não faríamos tal acto. São pessoas com tendências criminosas, assassinas e sem consciência moral - eles sabem que estão a fazer um mal legal, e por isso tentam esconder, mas falta-lhes a consciência moral autónoma, aquela que nos faz ter repugnância moral (antes da física) por um acto desses. 
Quem leu muito sobre o tema do Holocausto, nomeadamente os relatos dos sobreviventes, sabe que há muitos graus de crime dentro daqueles campos. Não são todos iguais: há os que vão mais longe do que as ordens exigem, e são sádicos a tratar os prisioneiros com excesso de crueldade e grandes requintes de malvadez, há os outros que mandam os próprios judeus fazer o trabalho sujo e trabalham para cumprir as quotas, como se diz hoje, há os que se apiedam dos prisioneiros e tentam mitigar de alguma maneira o horror que ali se passa, há os que têm dias... não são todos iguais.
Se nós pensarmos no Daesh, por exemplo, há os que correram riscos para ir para a Síria e outros sítios porque queriam decapitar pessoas e o fazem com requintes de malvadez, há os que foram para lá para violar mulheres e há os que lá estavam sem convicção mas com medo de ir contra as ordens. Não há só um tipo de carrascos e esses criminosos que vão para lá para torturar, decapitar, violar, etc, são seres humanos como nós mas não são pessoas como nós. Nós não íamos para lá para cometer aqueles crimes.
Há uma diferença entre ser-se um animal biológico humano e ser-se pessoa. O conceito de pessoa é filosófico, não meramente biológico.

Saber o porquê de os seres humanos, mesmo quando não têm, aparentemente, tendências assassinas, se acomodarem e tornarem-se cúmplices de crimes e muitos passarem a cometê-los e interiorizarem isso como se fosse normal, essa é a grande questão que todos gostávamos de ver respondida, porque somos todos seres humanos e não sabemos se algum dia, estando na situação de ter que tomar uma posição, faríamos o correcto. Agora, a partir do momento em qua alguém começa a matar outras pessoas sem ser por defesa, esse alguém, embora continue a ser um ser humano como nós, já não é uma pessoa como nós.

Que o José Rodrigues dos Santos pense ter a verdade sobre este assunto tão complexo e difícil de apreender, que não perceba que os factos não são puros, mas se interpretam, qua a realidade tem muitas camadas, que o ser-se um ser biológico não é igual a ser-se pessoa, que saber-se que se está a infringir as normas é diferente de ter consciência moral e que acreditar ser detentor da verdade não é o mesmo que sê-lo, é confrangedor, mas reforça a minha opinião quanto ao interesse dos seus romances para uma pessoa como eu que já leu muita literatura boa, já leu muito documento e pensa nos assuntos.



Auschwitz, literatura e verdade

José Rodrigues dos Santos

A bússola que me orientou ao escrever sobre Auschwitz foi o esforço de reproduzir aquele lugar com honestidade. O que me interessa não é o mito, mas a verdade sobre o que se passou. A literatura é sobre a verdade e bem pode a polícia do pensamento fazer o bullying e a intimidação que quiser, não aceito adulterá-la em função de dogmas, de tabus e de ideias feitas.

Sempre me guiei pelo princípio profissional de que as opiniões são livres, mas os factos sagrados. Nos últimos dias vi-me alvo de uma campanha de ódio nas redes sociais com base numa adulteração caluniosa das minhas palavras numa entrevista à RTP sobre os meus romances O Mágico de Auschwitz e O Manuscrito de Birkenau.
(...)
A presença simultânea de ambas é porém relevante porque acentua a incongruência daquele lugar. A mesma incongruência que faz com que Heinrich Himmler, o maior responsável pelo extermínio depois de Hitler, se tenha sentido indisposto quando pela primeira vez viu judeus serem mortos. A mesma incongruência com que Johann Schwarzhuber, o comandante de Birkenau responsável pela morte de mais de um milhão de pessoas, se tenha queixado junto da sua chefia a dizer que não se alistou nas SS para matar judeus. E a mesma incongruência com que se constata que a maior parte dos autores materiais do Holocausto não eram psicopatas sádicos, mas pessoas como nós, capazes de empatia e com perfeita noção de que estavam a fazer o mal.


6 comments:

  1. Um romance é uma história, muitas vezes baseada na vida real, mas não deixa de ser uma história. A História é que lida com os factos concretos e tenta interpretá-los. Há ali uma grande confusão na cabeça dele!

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  2. ele faz lembrar a personagem do filme de ontem - aquele que escreve policiais em 3 meses que se vendem como pães quentes mas que tudo o que queria era ser considerado um autor sério :)

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  3. Mas,neste caso, ele está convencido de que é um escritor sério!!!

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  4. pois ahah é que o outro do filme não tem dúvidas que escreve livros giros para ganhar dinheiro. mais nada. Não está auto-iludido

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  5. A História é uma interpretação de factos, ou seja, nem ela nos conta a verdade.

    O Rodrigues dos Santos é um jornalista e escritor. Apenas e só . E nós somos leitores em sentido lato e também nos colocamos num pedestal, frequentemente, quando fazemos a exegese do alheio. E temos o topete se achar que escrevemos bem, o que também é sinónimo de arrogância, pois não é necessariamente verdade.

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  6. eu não me coloco num pedestal, mas cada um sabe de si... um chef cozinheiro por acaso não tem paladar? Quando prova comida não sabe distinguir a bem confeccionada da outra? E não tem sentido crítico para a sua? Uma costureira não sabe ver quando as costuras de um fato estão mal feitas? Eu sou professora de filosofia. A minha vida é avaliar o discurso pensado e escrito; para além disso, sou uma grande leitora de bons livros e boa literatura, de modo que sei avaliar um má escrita e sei que escrevo bem, tanto do ponto de vista interno, da coerência do pensamento (já li muita filosofia), como no uso da língua. Não sou pretensiosa a escrever e isto não tem nada que ver com arrogância. Não sou hipócrita de fingir falsa modéstia e aquilo em que não acredito e não sou. Quanto ao José Rodrigues dos Santos, eu não disse que ele escreve mau português: o que disse é que escreve com pretenciosismo de erudição e que pensa mal e faltam-lhe leituras de Filosofia.
    Não sou arrogante: relativamente ao penso e escrevo, ofereço sempre justificação. Não faço afirmações infundadas e faço-as publicamente, com o meu nome próprio lá em baixo de modo que sujeito-me à crítica dos outros. E faço-o sozinha. E não tenho grupos, nem jornais, nem ninguém atrás de mim a proteger. Sou eu. Também tenho coragem, portanto.

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