December 27, 2020

A RTP não é uma estação pública? Pode reservar o direito de admissão? E deve?




Soubemos ontem que Vitorino Silva, um dos 7 cidadãos que recolheu assinaturas suficientes para se candidatar à Presidência da República, ficará de fora dos debates televisivos organizados pela RTP, SIC e TVI, que dividiram entre si os frente-a-frente entre os outros seis ainda antes de saberem quem efetivamente cumpria os mínimos para se candidatar.
Lemos no DN: "O argumento das televisões é que, como os frente-a-frente terão lugar antes do período oficial de campanha (que começa a 11 de janeiro e terminará a 22, sendo as eleições a 24), é possível ter critérios editoriais que não impliquem tratamento absolutamente igualitário entre todas as candidaturas."
Permitam-nos a tradução: as televisões entendem que a obrigação legal de tratar de forma igual as candidaturas não se aplica no período pré-eleitoral e, como tal, tomaram a decisão consciente de tratá-las de forma desigual.
Ficamos a saber, desde logo, que para a RTP, a SIC e a TVI, o tratamento igual das candidaturas não é uma obrigação moral, do campo da ética: é algo que só faz sentido se a lei mandar; quando se encontram buracos, arranjam-se "critérios editoriais" para encaixar ou excluir quem quiserem.
E que critérios editoriais são estes? O seguinte: "só estarão nos frente a frente os candidatos que, de uma forma ou de outra, têm alguma espécie de correspondência com os partidos parlamentares".
Este é um critério singular, porque permite excluir apenas um dos candidatos, Vitorino Silva. E não deixa de ser estranho, porque é também um critério que poderia ter excluído Sampaio da Nóvoa em 2016 (só apoiado oficialmente pelo Livre pré-parlamentar e pelo MRPP, e que obteve mais de um milhão de votos) ou Fernando Nobre em 2012 (mais de meio milhão de votos).
Mas Vitorino Silva, sabemos bem, não é reitor nem presidente da AMI. É, ainda assim, candidato à Presidência da República: e isso devia bastar. Só quem nunca recolheu assinaturas pode ignorar a dificuldade do processo. Em tempo de pandemia, então, é um feito hercúleo. Que um cidadão não apoiado por partidos parlamentares o tenha conseguido é meritório, por si só, de nota e atenção.
Vitorino Silva não é, independentemente da opinião de cada um, um candidato qualquer: em 2016, em 10 candidatos, obteve 152 mil votos, quase tantos como o candidato apoiado pelo PCP e como a ex-ministra Maria de Belém.
Os votos somados do CHEGA e da Iniciativa Liberal, nas últimas legislativas, ficam aquém do número de pessoas que votaram em Vitorino Silva nas últimas presidenciais. Claramente, não é a falta de relevância eleitoral da candidatura que dita a sua exclusão: é a falta de oportunidade ("já estavam marcados pá"), a falta de pedigree ("mas alguém quer ver o Tino de Rans a debater?") e a falta de vergonha e sentimento de impunidade de quem dispõe a belprazer do poder que tem para dar e tirar mediatismo.
É lamentável perceber que a cobertura igualitária das várias candidaturas é vista como um obstáculo a contornar pelas grandes televisões portuguesas. É uma vergonha ver um cidadão - que é Vitorino, mas que podia ser qualquer um de nós - a ser encostado, literalmente, por aquilo a que só se pode chamar um cartel: um acordo entre entidades concorrentes para distribuírem entre si os debates televisivos entre uns candidatos, enquanto excluem outros, com base em critérios editoriais pré-acordados e francamente frágeis.
É triste pensar que num caso que merecia a atenção da ERC, da CNE e da Autoridade da Concorrência, teremos muito provavelmente o silêncio das três. Os debates com Tino de Rans passarão apenas em canais por cabo (para onde já tinha sido relegado, maioritariamente, Tiago Mayan), com menos audiência e sem o peso mediático que a RTP, a SIC e a TVI têm.
Hoje é Vitorino Silva a ser considerado editorialmente irrelevante por não ter o respaldo de um grande partido. Amanhã serão outros. Uma vergonha e uma prepotência. O povo é sereno, mas não é estúpido: isto precisava mesmo de ser dito.
PS: Entretanto, Tiago Girão, diretor de informação do Porto Canal, anunciou no Twitter que estava disponível para receber todos os debates não realizados nas outras estações. Era este papel que se exigia à RTP, enquanto estação pública.

Os truques da imprensa portuguesa




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