October 08, 2020

Livros gratuitos - Platão, Fédon


Jacques-Louis David, A Morte de Sócrates - o momento em que Sócrates toma a taça de veneno, a mão a apontar para cima, representado o céu (esta pintura é de 1787, os gregos não tinham esta noção de céu e inferno) para onde ele pensa ir. Ao fundo vêem-se a mulher (Xantipa) e os filhos a irem embora e vários dos discípulos choram.

 









FÉDON 

(os brasileiros traduzem por Fedão; Críton, por Critão, Cebes por Cebete ) 


O Fédon é um diálogo de Platão acerca da filosofia, (do sentido) da vida e da imortalidade da alma. Passa-se na cela onde Sócrates está preso há um mês, desde que foi condenado à morte por 'ofender os deuses' com os seus discursos racionais e de 'desviar a juventude' [do ensino sofista]. O julgamento de Sócrates com o texto da acusação e da defesa é a Apologia de Sócrates, também escrita por Platão, o seu maior e mais importante discípulo.

O Fédon passa-se no último dia de vida de Sócrates e descreve ao pormenor quem estava com ele na cela (Platão diz-nos que não estava lá nesse dia), do que falaram -de filosofia- e o que se passou até que morreu.

O diálogo passa-se quase todo entre Sócrates (como na maioria de livros de Platão, Sócrates é o principal interlocutor), Cebes (que nesta tradução aparece Cebete...) e Símias, sendo estes dois da escola pitagórica, não por acaso, mas porque Platão considerava que de entre todas as escolas, os pitagóricos, pelo seu domínio da matemática que ele considerava ser fundamental no caminho em direcção à verdade, eram os representantes da forma mais avançada de conhecimento.

Este diálogo foi uma das pedras fundamentais da cultura greco-cristã ocidental. É um diálogo interessantíssimo. Resolvi pô-lo aqui (aos pedaços) com comentários, na medida em que for tendo tempo, para quem nunca leu uma obra filosófica inteira e tenha curiosidade e interesse.

Na verdade hoje fui ao diálogo à procura duma passagem em que se fala das causas da misantropia e da misologia. Isto a propósito de haver pessoas que nem com um desenho percebem e eu me dar conta de todo o problema ter a ver com as causas da misantropia de que fala Sócrates aqui neste diálogo (e também de eu ser anormal) e que têm a ver com idealizar pessoas e criar expectativas mal ajuizadas adaptadas aos seus sentimentos e depois a realidade ser um grande choque. Como diz aqui Sócrates, a culpa é de quem cria as ilusões - as pessoas, na maioria dos casos, não são capazes de mudanças internas, só externas, de assumir erros e por isso também de verdade. Perferem até perder tudo que resolver as situações se implicam revisão interna. O que tem tudo a ver com este diálogo: a questão do lugar da verdade na vida, a questão do propósito da vida e de nós mesmos nela. 

Enfim, como a filosofia, ademais, é uma excelente maneira de pôr a cabeça no lugar e como há muitos anos que não leio o Fédon, aqui vai. 

Dei esta obra durante muitos anos no 12º ano. Era uma das obras que escolhia justamente por ser uma obra determinante do pensamento ocidental. Está toda assim:

Edição da Lisboa Editora - tradução de Maria Tereza Schiappa de Azevedo


O princípio do diálogo é uma contextualização: Platão conta quem estava lá nesse dia, qual o estado de espírito de Sócrates, etc.

Sócrates morreu em 399 AEC., em Atenas, de onde era natural.

O texto da obra vai a azul. Os comentários a preto, entre parênteses rectos.

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Versão eletrônica do diálogo platônico “Fedão”
Tradução: Carlos Alberto Nunes
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia) Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/

A distribuição desse arquivo (e de outros baseados nele) é livre, desde que se dê os créditos da digitalização aos membros do grupo Acrópolis e se cite o endereço da homepage do grupo no corpo do texto do arquivo em questão, tal como está acima.


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FEDÃO

I – Estiveste tu mesmo, Fedão, junto de Sócrates no dia em que ele tomou veneno na prisão, ou ouviste de alguém?

[Sócrates foi condenado à morte por envenenamento. Cicuta foi o veneno que o matou]

Fedão – Não, eu mesmo, Equécrates.

Equécrates – Então, que disse o homem antes de morrer? E como foi a sua morte? Gostaria de saber tudo o que se passou. Recentemente, nenhum cidadão de Fliunte tem ido a Atenas, e há muito não nos vêm de lá forasteiros capazes de dar-nos informações seguras, salvo dizerem que morreu depois de tomar o veneno. Quanto ao mais, nada informam de particular.

Fedão – E também não ouviste contar como foi o julgamento?

Equécrates – Ouvimos, sim; alguém nos falou nisso. Surpreendeu- nos, justamente ter sido bem antes o julgamento e ele só vir a morrer muito depois. Que aconteceu, Fedão?

Fedão – Foi tudo obra do acaso, Equécrates, o que se passou com ele. Precisamente na véspera do julgamento coroaram a popa do navio que os Atenienses enviam a Delo.

[Sócrates foi condenado na véspera de uma celebração que implicava enviar um navio a dar a volta às ilhas o que levava um mês. Durante essa celebração eram proibidas execuções, de modo que ele ficou a aguardar a sentença um mês, na cadeia. Durante esse mês passaram-se vários diálogos que Platão conta e outras peripécias como os amigos prepararem-lhe a fuga para o exílio e ele recusar-se por não querer desobedecer à lei e pensar que 'mais vale sofrer uma injustiça que cometê-la', como nos diz Platão no diálogo, 'Górgias']

Equécrates – Que é isso?

Fedão – Segundo os Atenienses, é o navio em que outrora Teseu levou para Creta as duas septenas [sete pares] de jovens, moços e moças, que ele salvou, salvando-se também. Nessa ocasião, segundo contam, prometeram a Apolo enviar anualmente uma deputação a Delo, no caso de se salvarem, e até hoje todos os anos vão em romaria à divindade. Desde o início dos preparativos da viagem, determina a lei que se proceda à purificação [quer dizer, sem mortos] do burgo, não sendo permitido executar ninguém por crime público antes de chegar a Delo o navio e retornar de lá. Por vezes esse prazo fica muito dilatado, quando os ventos são adversos. O início da peregrinação é contado a partir do momento em que o sacerdote de Apolo coroa a popa do navio, o que se deu, conforme disse, na véspera do julgamento. Esse o motivo de ter estado Sócrates tanto tempo na prisão, desde o julgamento até à morte.

II – Equécrates – E as condições em que morreu, Fedão? Quais foram suas palavras? Como se houve em tudo? Quais dos seus familiares se encontravam ao seu lado? Ou as autoridades não permitiram que entrassem, vindo ele a morrer privado de assistência dos amigos?

Fedão – De forma alguma; vários estiveram presentes; em grande número, mesmo.

Equécrates – Então, procura contar-nos com a maior exatidão possível como tudo se passou, no caso de dispores de folga.

Fedão – Disponho, sim, e vou tentar expor-vos o que se deu. Para mim, nada é tão agradável como recordar-me de Sócrates, ou seja quando falo nele, ou quando ouço alguém falar a seu respeito.

Equécrates – Pois podes ter a certeza, Fedão, de que teus ouvintes estão nessas mesmas condições. Esforça-te, portanto, para contar o caso com todas as minúcias.

Fedão – Era por demais estranho o que eu sentia junto dele. Não podia lastimá-lo, como o faria perto de um ente querido no transe derradeiro. O homem me parecia felicíssimo, [ao contrário dos discípulos que estão desesperados e tristes, Sócrates está feliz, o que mais adiante é explicado] Equécrates, tanto nos gestos como nas palavras, reflexo exato da intrepidez e da nobreza com que se despedia da vida. Minha impressão naquele instante foi que sua passagem para o Hades [reino dos mortos] não se dava sem disposição divina, e que, uma vez lá chegando, sentir-se-ia tão venturoso com os que mais o foram. [Platão a fazer o elogio do mestre] Por isso mesmo, não me dominou nenhum sentimento de piedade, o que seria natural na presença de um moribundo. Também não me sentia alegre, como costumava ficar em nossa práticas sobre filosofia. Sim, porque toda nossa conversa girou em torno de temas filosóficos. Era um estado difícil de definir, misto insólito de alegria e tristeza, por lembrar-me de que ele iria morrer dentro de pouco. As mais pessoas presentes se encontravam em condições quase idênticas, umas rindo, outras chorando, principalmente Apolodoro. Conheces o homem e sabes como ele é.

Equécrates – Sem dúvida.

Fedão – Pois desse jeito se comportou o tempo todo. Eu também, fiquei muito abalado, a mesma coisa passando-se com os outros.

Equécrates – E quem se achava lá, Fedão?

Fedão – Além do mencionado Apolodoro, seus conterrâneos Critobulo e o pai, Hermógenes, Epígenes, Ésquines e Antístenes. Ctesipo de Peânia também esteve presente, Menéxeno e mais alguns da mesma região. Se não me engano, Platão se achava doente. [Platão informa-nos que não estava presente]

Equécrates – E havia também estrangeiros?

Fedão – Sim, os Tebanos Símias, Cebete e Fedondes; e de Mégara, Euclides e Térpsio. 

[Símias e Cebetes, os dois pitagóricos interlocutores de Sócrates neste diálogo. Platão pensaria serem quem melhor estaria posicionado para continuar o seu pensamento, dado os conhecimentos de matemática que prosseguiam e que em seu entender eram os que melhor serviam o progresso de um pensamento racional. Mais tarde, no renascimento, os filósofos que apostavam na matemática para a ciência afirmavam-se e eram classificados como, platónicos, por oposição aos aristotélicos] 

Equécrates – Nesse caso, Aristipo e Cleômbroto também estiveram com ele? Fedão – Não; falaram que se encontravam em Egina.

Equécrates – Havia mais alguém?

Fedão – Creio que eram só esses.

Equécrates – E depois? Quais foram os discursos a que te referiste?

III – Fedão – Vou esforçar-me para contar tudo do começo. Tal como na véspera, todos os dias visitávamos Sócrates, e desde a manhãzinha íamos encontrar-nos no tribunal em que se deu o julgamento. Fica perto da cadeia. Ali esperávamos conversando até que a cadeia abrisse, pois não costumam abri-la muito cedo. Porém logo que isso se dava, corríamos para junto de Sócrates e quase sempre passávamos com ele o dia todo. Nessa manhã reunimo-nos mais cedo, porque na tarde anterior, ao nos retirarmos da prisão, soubemos que o navio chegara de Delo. Por isso, combinamos encontrar-nos o mais cedo possível no lugar habitual. Ao chegarmos, o porteiro que costumava receber-nos veio ao nosso encontro para dizer que esperássemos fora e não entrássemos sem que ele nos avisasse. Neste momento, nos disse, os Onze estão tirando os ferros de Sócrates e lhe comunicam que hoje ele terá de morrer. Depois de algum tempo, voltou para dizer que entrássemos. Ao penetrarmos no recinto, encontramos Sócrates, que acabava de ser aliviado dos ferros, e Xantipa – conhece-la decerto – com o filho pequeno, sentada junto do marido. Ao ver-nos, começou Xantipa a lastimar-se e clamar como de hábito nas mulheres,
dizendo: Pela última vez, Sócrates, teus amigos conversarão contigo, e tu com eles. Virando-se para Critão, Sócrates lhe disse: Critão, leva-a para casa. A isso, alguns dos homens de Critão a retiraram, não cessando ela de gritar e debater-se. Sócrates, de seu lado, sentado no catre, dobrou a perna sobre a coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao mesmo tempo que dizia: Como é extraordinário, senhores, o que os homens denominam prazer, e como se associa admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu contrário. Não gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança um deles, de regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois, estivessem ligados pela cabeça. Quer parecer-me, continuou, que se Esopo houvesse feito essa observação, não deixaria de compor uma fábula: Resolvendo Zeus pôr termo as suas dissensões contínuas, e não o conseguindo, uniu-os pela extremidade. Por isso, sempre que alguém alcança um deles, o outro lhe vem no rastro. Meu caso é parecido: após o incômodo da perna causada pelos ferros, segue-se-lhe o prazer.

[1ª questão interessante: como é que o conhecimento de umas coisas provém do conhecimento dos seus contrários: neste caso, o prazer e o sofrimento]

continua...


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