Perfeito, falou Símias, pois então vou dizer-te quais são as minhas dúvidas, para depois Cebete indicar os pontos de tua exposição com que ele não concorda. Sobre esses assunto, Sócrates, creio estar de acordo contigo, que nesta vida não é possível saber a este respeito algo definitivo. Mas também será prova de fraqueza deixar de analisar por todos os modos o que foi dito, e abandonar o assunto enquanto não sentirmos cansaço. Neste passo vemo-nos ante o dilema: aprender e descobrir de que se trata, ou, no caso de não ser isso possível, adotar a melhor opinião e a mais difícil de contestar, e nela instalando-nos à guisa de jangada, procurar fazer a travessia da vida, na hipótese de não conseguir isso mesmo com maior facilidade e menos perigo numa embarcação mais firme, ou seja, com alguma palavra divina. [não havendo possibilidade de certeza definitiva, procura-se a hipóteses mais forte; o que não se faz é abandonar a questão pois então fica-se à mercê do erro ou do relativismo sofista] Assim, não ficarei acanhado agora de interrogar-te, já que tu próprio mo aconselhas, nem precisarei censurar-me de futuro por não te haver dito hoje o que pensava. O facto, Sócrates, é que quando reflito no que disseste, ou seja comigo mesmo ou na companhia deste aqui, tenho a impressão de que nem tudo ficou bem fundamentado.
XXXVI – Sócrates respondeu: Talvez, companheiro, estejas com a razão; porém explica o que não te parece bem fundamentado.
É que seria possível alegar a mesma coisa, continuou, a respeito da harmonia [música] e da lira
com suas cordas, a saber: que a harmonia é algo invisível, incorpóreo e sumamente belo
numa lira bem afinada, e que esta, por sua vez, é corpo, com também o são as cordas,
coisas materiais, compostas, terrenas e de natureza morta. Ora, no caso de alguém quebrar a
lira e cortar ou arrebentar as cordas, alguém poderia argumentar como o fizeste: dizer que aquela harmonia ainda vive, pois não foi destruída; pois não é possível
subsistir a lira depois de se partirem as cordas, e as próprias cordas, todas elas de natureza
morta, e desaparecer a harmonia, da mesma natureza e da família do divino e do imortal, que assim viria a ser destruída até mesmo antes do que é perecível. [os elementos materiais da lira ainda existiriam, embora partidos e já a música teria desaparecido] Não, prosseguiria essa
pessoa; necessariamente a harmonia terá de continuar em qualquer parte, por ser forçoso
que a madeira apodreça primeiro, e as cordas, antes de acontecer àquela alguma coisa. A
esses respeito, Sócrates, creio que tu mesmo já consideraste que a noção da alma admitida
por nós é mais ou menos a seguinte: Da mesma foram que temos o corpo distendido e
coeso pelo calor e o frio, o seco e o húmido, e tudo o mais do mesmo gênero, viria a ser a nossa alma a mistura e a harmonia de todos esses elementos, quando combinados em justa
proporção. [os pitagóricos vêem a alma como uma combinação -um composto- harmónica dos elementos corporais, mas Platão vê a alma como um elemento simples e não composto, logo, não corruptível] Ora, se nossa alma for uma espécie de harmonia, é evidente que, ao ficar
relaxado o corpo, ou distendido em excesso, por doenças e outras perturbações,
forçosamente a alma fenecerá logo, mesmo com a sua natureza divina, tal como se dá com
as outras harmonias, tanto as resultantes de sons como das demais obras dos artista; ao
passo que os despojos do corpo perduram por muito tempo, até que o fogo os destrua ou
venham a apodrecer. Vê, portanto, o que devemos opor a esses argumentos, no caso de
alguém nos vir dizer que a alma, por ser a mistura dos elementos do corpo, é a primeira a
fenecer naquilo que chamamos morte.
XXXVII – Sócrates se conservou durante algum tempo com o olhar parado, como era seu costume; depois falou, sorrindo: A objeção de Símias, declarou, é procedente. Se algum de vós estiver em melhores condições do que eu, por que não lhe responde? O argumento dele é muito feliz. Porém antes de formular qualquer resposta, sou de parecer que devemos primeiro ouvir o que tem Cebete a opor à nossa tese, pois assim ganharemos tempo para refletir no que será preciso dizer. E depois de ouvir a ambos, dar-lhes-emos nossa aprovação, se nos parecerem bem afinados os argumentos; caso contrário; dizendo logo o que te deixa atrapalhado.
Vou dizer, respondeu Cebete. A meu parecer, o nosso argumento não saiu do lugar e continua como alvo das mesmas objeções de antes. Que nossa alma já existisse antes de assumir esta forma, é proposição que não me repugna aceitar, por engenhosa e – salvo imodéstia de minha parte – suficientemente demonstrada. Porém que subsista algures depois de estarmos mortos, com isso é que não posso concordar. Não aceito, também o reparo de Símias, quando afirma que a alma não é mais forte nem mais durável do que o corpo, pois sob ambos os aspectos ela se distingue imensamente dele. Por que então, lhe diria o argumento, ainda te mostras incrédulo, se estás vendo que depois da morte do homem sua porção mais fraca ainda subsiste? Não te parece que a porção mais durável terá forçosamente de sobreviver igual tempo? Vê agora se o que digo contém alguma substância. Para maior comodidade vou socorrer-me, como o fez Símias, de uma imagem. Para mim, falar desse jeito é o mesmo que fazer as seguintes considerações a respeito de um velho tecelão que acabasse de morrer: o homem não está morto, continua vivo em alguma parte e para prova dessa afirmação, apresenta-se a roupa que ele então trazia no corpo, tecida por ele mesmo, conservada e sem ter ainda perecido. E se alguém se mostrasse incrédulo, poderia perguntar o que é por natureza mais durável, imaginaria ter demonstrado que com maioria de razões o homem terá de estar bem, visto não haver perecido o que por natureza é menos durável. Porém a meu ver, Símias, a realidade, é muito diferente. Presta atenção ao seguinte: não há quem não veja quanto é fraco semelhante argumento. Havendo gasto muitas roupas por ele próprio tecidas, o nosso homem morreu, de fato, depois de todas, e não foram poucas, porém antes da última, segundo penso; [portanto, assim como o homem gasta muitas roupas até morrer mas a última que veste sobrevive-lhe, também a alma gasta muitos corpos nas reencarnações, mas o último, sobrevive-lhe] mas nem por isso o homem é inferior ou mais fraco do que a roupa. Essa imagem, quero crer, se aplica tanto à alma como ao corpo, e quem argumentasse desse modo com relação ao corpo, falaria com muito mais propriedade, a saber: que a alma é mais durável e o corpo mais fraco e transitório, pois fora acertado acrescentar que cada alma consome vários corpos, principalmente quando vive muitos anos. Forçoso será, por conseguinte, que, no instante de morrer, ainda esteja a alma com a última vestimenta por ela feita, só vindo a morrer antes da última. Desaparecida a alma, mostra, de pronto, o corpo sua fraqueza natural e se desmancha pela putrefação. Por isso mesmo, com base nesses argumentos não podemos confiar que nossa alma subsista algures depois da morte. E se alguém concedesse ao expositor de tua proposição mais ainda do que fazes e lhe desse de barato não apenas que nossas almas existem antes do tempo do nascimento, sendo que nada impede, até mesmo depois de nossa morte, existirem algumas e continuarem a existir, e muitas vezes renascerem e tornarem a morrer, por serem de natureza bastante forte para suportar esses nascimentos sucessivos: se lhe concedêssemos esse ponto, de todo o jeito ele se recusaria a admitir que a alma não se esgota nesses nascimentos sucessivos, para acabar numa dessas últimas mortes, por desaparecer de todo. Dessa morte última, poderia acrescentar, e dessa decomposição do corpo que leva para a alma a destruição, ninguém pode ter conhecimento, por não estar em nós experimentá-la. [a alma vai-se desgastando nas fricções com o corpo como consequência das sucessivas reencarnações] Se as coisas se passam mesmo dessa forma, por força terá de ser irracional a confiança de qualquer pessoa diante da morte, a menos que esse alguém pudesse demonstrar que a alma é absolutamente imortal e imperecível. Sendo isso impossível, não há como evitar que o moribundo receie de que no instante em que sua alma se desaparecer do corpo, venha a desaparecer de todo.
XXXVIII – Ao ouvi-los falar dessa maneira, todos nós nos sentimos desagradavelmente impressionados, conforme depois confessamos a nós mesmos; firmemente convencidos como ficáramos, ante os argumentos anteriores, as palavras de agora como que nos deixavam inquietos e nos levavam outra vez a duvidar, tanto com relação ao que já fora dito como ao que ainda restava por dizer. Ou éramos maus juízes ou o assunto não admitia prova.
Equécrates [outro pitagórico]– Pelos deuses, Fedão! Compreendo o que se passou convosco, pois agora mesmo, perguntei-me em que argumento poderemos confiar daqui por diante, se o que Sócrates acabou de desenvolver, tão convincente, perdeu de todo o crédito? É maravilhosa a atração que sobre mim sempre exerceu, e ainda exerce, a doutrina de que nossa alma é uma espécie de harmonia. O que acabaste de expor me fez lembrar que até ao presente eu a aceitava. Mas agora necessito de novos argumentos para convencer-me de que a alma não morre juntamente com o corpo. Dize logo, por Zeus, de que modo Sócrates prosseguiu na sua argumentação? Porventura revelou desânimo, como disseste ter acontecido com todos vós, ou, pelo contrário, defendeu a sua opinião com a serenidade habitual? Foi completa ou falha nalgum ponto sua defesa? Conta-nos tudo com a maior exatidão possível. [Platão, subtilmente, revela os perigos do cepticismo sofista na razão que não empreendeu um processo gnoseológico dialéctico e se embaralha logo com qualquer objecção ou contra-argumento e fica sempre convencida da última tese que ouve]
Fedão – Em verdade, Equécrates, por mais que antes eu tivesse admirado Sócrates, nunca me senti tão arrebatado naquele instante. Não é de espantar que um homem do seu estofo pudesse sair-se bem em semelhante conjuntura. Mas o que nele, primeiro de tudo, me admirou ao extremo foi a maneira delicada, cordial e deferente com o que acolheu as objeções dos moços; depois, a sagacidade com que observou o efeito de suas palavras sobre nós e, por último, como soube curar-nos: de fugitivos e derrotados, fez-nos voltar e exortou-nos a segui-lo, para considerarmos junto o argumento.
Equécrates – De que modo?
Fedão – Vou te dizer como foi. Aconteceu que eu me achava, justamente à sua direita, num banquinho ao pé do catre, ficando ele num plano muito mais alto. Afagando- me a cabeça e abarcando com a mão os cabelos que me cobriam a nuca – pois sempre que se lhe oferecia ocasião graceja a respeito de minha cabeleira – me disse: Decerto é amanhã, Fedão, que vais pôr abaixo esta bela cabeleira?
[Platão trata-os um bocadinho como crianças, como se o pensamento pré-socrático fosse infantil diante da filosofia]
Penso que sim, Sócrates, respondi. Não, se aceitares um conselho, disse-me. Que devo, então, fazer? Perguntei.
Hoje mesmo, disse, cortarei a minha, como farás com a tua, se o nosso argumento vier a morrer e nos revelarmos incapazes de lhe dar lume e vida. De minha parte, se eu estivesse no teu lugar e o argumento me escorregasse por entre os dedos, faria um juramento à feição dos Argivos, de não deixar crescer os cabelos enquanto não vencesse em luta franca a proposição de Símias e Cebete.
Mas, como se costuma dizer, objetei-lhe, contra dois, nem Hércules aguenta.
Então, chama-me em teu auxílio, enquanto é dia; serei o teu Iolau. [Iolau era sobrinho de Hércules e um dos argonautas que ajudou Hércules nos seus trabalhos]
Bem, chamarei, lhe respondi; porém não na qualidade de Herácles: Iolau é que vai chamar Herácles em seu auxílio.
Tanto faz, me disse.
XXXIX – Inicialmente, precavemo-nos contra certo perigo.
Qual será? Perguntei.
Para não ficarmos misólogos, disse, como outros ficam misantropos. O que de pior pode acontecer a qualquer pessoa é tornar-se inimigo da palavra. A misologia e a misantropia têm a mesma origem. O ódio aos homens nasce do excesso de confiança sem razão de ser, quando consideramos alguém fiel, sincero e verdadeiro, e logo depois descobrimos que se trata de pessoa corrupta e desleal, e depois outra mais nas mesmas condições. Vindo isso a repetir-se várias vezes com o mesmo paciente, principalmente se se tratar de amigos íntimos e companheiros de alto crédito, depois de decepções seguidas, acaba essa pessoa por odiar os homens e acreditar que ninguém é sincero. Nunca observaste que é assim mesmo que as coisas se passam.
Sem dúvida, respondeu.
E não é isso vergonhoso? Continuou. Pois é claro que esse indivíduo procura o convívio com seus semelhantes sem conhecer devidamente a natureza humana, pois se dispusesse de alguma experiência nas suas relações com eles, teria compreendido como é realmente o mundo, isto é, que são poucos os indivíduos inteiramente bons ou maus de todo, e que a maioria constitui o meio-termo.
Como assim? Perguntou.
É o mesmo que acontece, prosseguiu, com as pessoas excessivamente baixas ou excessivamente altas. Julgas que pode haver nada mais raro do que encontrarmos um homem muito grande ou muito pequeno, ou um cão, ou seja o que for? O mesmo se diga do veloz e do lento, do feio e do belo, do branco e do preto. Ou não percebeste que em tudo isso os extremos são raros e pouco numerosos, e os da mediania, extremamente frequentes e em grande número?
[O método dos sofistas, a que Platão aqui se refere é o de pôr ao mesmo nível princípios e consequências e com isso gerar a controvérsia]
Perfeitamente, respondi.
E não te parece, continuou, que se se organizasse um concurso de maldade, os primeiros se apresentariam em número muito reduzido?
É muito provável, respondi.
Sim, muito provável, continuou. Porém não é sob esses aspecto que os argumentos se parecem com os homens. Neste passo não fiz senão seguir tua orientação. A semelhança consiste no seguinte: quando se admite a exatidão de um argumento, sem ser-se versado na arte da dialética, pode acontecer que logo depois ele nos pareça falso, às vezes com fundamento, outras vezes sem nenhum, e depois mais outro e mais outra da mesma natureza. Como sabes, é o que se verifica com os disputadores de razões contraditórias, [referência aos sofistas] que acabam por considerar-se os maiores sábios, por serem os únicos a reconhecer que nada há de são e firme, [cépticos e relativistas] nem nas coisas, nem no raciocínio, encontrando-se tudo, em verdade, em permanente agitação, tal como se dá com as águas do Euripo, sem permanecer nada, um só instante, no mesmo estado.
É muito certo o que dizes, observei.
E se, de facto, existe raciocínio verdadeiro e estável, capaz de ser compreendido, não seria de lastimar, Fedão, no caso de ouvir alguém esses argumentos que ora parecem verdadeiros ora falsos, em vez de inculpar-se ou à sua própria incapacidade, acabasse por irritar-se e comprazer-se em tirar de si a culpa para lançar no raciocínio, e passar, daí por diante, o resto da vida a odiá-lo e a depreciá-lo, com o que só alcançaria privar-se da verdade e do conhecimento das coisas?
[os misólogos, tal como os misantropos que se afastam dos homens por achar que nenhum é de confiança, afastam-se dos argumentos por acharem que são todos um engano, já que a cada argumentos parece ser possível contrapôr um contra-argumento. Sócrates diz que a culpa não é dos argumentos mas da razão que não foi treinada no método dialéctico da análise das hipóteses]
Por Zeus, lhe disse; seria, de fato grande lástima.
XL – Assim, continuou, de início precisamos acautelar-nos contra semelhante perigo; não permitamos o ingresso em nossa alma da idéia de que não há nada saudável em nosso raciocínio; digamos, isso sim, que nós é que ainda não estamos suficientemente sãos, mas que devemos esforçar-nos para alcançar esse desiderato, tu e os demais, por causa da vida que ainda tendes pela frente; eu, por motivo, justamente, da morte. Receio muito que, neste momento em que a morte é tudo, não me haja como filósofo ou amigo da sabedoria, como se dá com os indivíduos muito ignorantes. Estes tais, quando debatem algum tema, não se preocupam absolutamente de saber como são, de fato, as coisas a respeito de que tanto discutem, senão em deixar convencidos os circunstantes de suas próprias asserções. Nisso põem todo o empenho. Eu, também, num ponto apenas, agora, me diferencio deles: não me esforço por demonstrar aos presentes a verdade do que afirmo, a não ser como acessório, mas por convencer-me, tanto quanto possível, a mim mesmo.
[uma discussão como as dos sofistas faz-se para ver quem consegue convencer os outros, mas uma discussão filosófica, como esta, faz-se para compreender a natureza das coisas e chegar à verdade; assim, a linguagem, mal usada, é um instrumento de manipulação mas, bem usada, é um instrumento de verdade]
Meu cálculo, companheiro, é o seguinte; observa quanto o argumento é interesseiro: Se for verdade o que eu disse, só haverá vantagem em fortalecermos essa convicção; porém se nada mais houver depois da morte, pelo menos não importunarei os presentes com minhas lamentações no pouquinho de tempo que ainda me resta para viver. Aliás, esse estado de coisas não vai durar muito, o que seria mau; acabará dentro de pouco. Preparado desse modo, Símias e Cebete, continuou, é que aceito a discussão. Quanto a vós outros, se me aceitardes um conselho, concedei pouca atenção a Sócrates, porém muito mais a verdade; se vos parecer que há verdade no que eu digo, concordai comigo; caso contrário, resisti quanto puderdes, acautelando-vos para que no meu entusiasmo não venha a enganar-vos e a mim próprio e me retire como as abelhas, deixando em todos vós o aguilhão.
[deve atentar-se à verdade do argumento e não à autoridade do argumentador, que neste caso é Sócrates, pois o que confere veracidade a um argumento é a sua fundamentação e não a personalidade de quem argumenta, por maior autoridade que seja - a força da demonstração vem da razão e não da habilidade técnica]
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