Eu, pelo menos, respondeu Cebete, ouvirei de muito bom grado o que disseres a esse respeito.
Estou certo de que desta vez, continuou Sócrates, quem nos ouvir, a menos que seja algum comediógrafo, [referência a Aristófanes que lhe chamava, "aquele mendigo palrador" - Sócrates era pobre] não poderá dizer que só digo baboseiras e nunca me ocupo com coisa de interesse. Se estiveres de acordo, investigaremos esse ponto.
[1ª prova da imortalidade da alma, chamada a 'prova dos contrários']
XV- Estudemo-lo, pois, sob o seguinte aspecto: se as almas dos mortos se encontram ou não se encontram no Hades? Conforme antiga tradição, [a dos pitagóricos que acreditam na metempsicose] que ora me ocorre, as almas lá existentes foram daqui mesmo e para cá deverão voltar, renascendo os mortos. A ser assim, e se os vivos renascem dos mortos, que pensar senão que as nossas almas ali se encontravam? Pois não poderiam renascer se não existissem, [previamente] vindo a ser essa, justamente a prova decisiva, no caso de ser possível deixar manifesto que os vivos de outra parte não procedem, senão dos mortos. Se isso não for verdade, teremos de procurar outro argumento. [ele tem que provar que os vivos provêm dos mortos]
Isso mesmo, disse Cebete.
Para deixar a questão mais fácil de entender, observou, não te limites a considerá-la com relação aos homens, porém estende-a ao conjunto dos animais e das plantas, numa palavra, a tudo o que nasce, a fim de vermos se cada coisa não se origina exclusivamente do seu contrário, onde quer que se verifique essa relação, tal como no caso do belo, que tem como contrário o feio, no do justo e do injusto e em mil outros exemplos que se poderiam enumerar. Investiguemos, então, se é forçoso que tudo o que tenha algum contrário de nada mais possa originar-se a não ser desse mesmo contrário. Por exemplo: para ficar grande alguma coisa, é preciso que antes fosse pequena, sem o que não poderia aumentar. [as coisas estão sujeitas ao devir e à transformação]
Certo.
E para diminuir, não é preciso ser maior, para depois vir a ficar mais pequeno?
- Exatamente, respondeu.
Assim, do mais forte nasce o mais fraco e do moroso, o rápido.
Sem dúvida.
E então? Se alguma coisa piora, é porque antes era melhor, como terá sido antes injusta para poder tornar-se justa?
Como não?
E agora? Não é próprio dessa oposição universal haver dois processos de nascimento: o que vai de um contrário para o outro, e o de sentido inverso: deste último para aquele? [todo o acto de geração se processa de contrários para contrários] Entre a coisa maior e a menor há crescimento e diminuição, razão por que dizemos que uma delas cresce e a outra diminui.
[portanto, há aqui dois processos: um processo de crescimento e um processo de diminuição]
É certo, respondeu.
Vale o mesmo para a combinação e a decomposição, o resfriamento e o aquecimento, e para as demais oposições do mesmo tipo. E embora nem sempre tenhamos para todas elas designação apropriada, é forçoso nesses casos ser idêntico o processo, de forma que cada coisa cresce à custa de outra, sendo recíproca a geração entre elas.
Sem dúvida, observou.
XVI – E então? Prosseguiu: viver não comporta um contrário, tal como se dá com a vigília e o sono?
Perfeitamente, respondeu.
Qual é?
Estar morto, foi a resposta.
Sendo assim, cada um desses estados provém do outro, visto serem contrários, havendo entre ambos um processo recíproco de geração.
Como não?
Vou falar de um dos pares de contrários a que me referi há pouco, disse Sócrates, e de suas respectivas gerações; tu te manifestarás a respeito do outro. Denomino o primeiro, vigília e sono; da vigília nasce o sono, e vice-versa: do sono, a vigília, tendo um dos processos o nome de acordar e o outro o de dormir. Isso te basta, perguntou, ou não?
Perfeitamente.
É tua agora a vez, prosseguiu, de falar a respeito da vida e da morte. Não disseste que estar vivo é o contrário de estar morto?
Disse.
E que um é gerado do outro?
- Também disse.
Que é, então, o que provém do vivo?
- O morto, respondeu.
E do morto, o que se origina?
Será forçoso convir que é o vivo.
Sendo assim, Cebete, do que está morto provêm os homens e tudo o que tem vida?
É evidente, respondeu.
Logo, continuou, nossas almas estão no Hades.
Parece que sim.
E desses dois processos correlativos, um não nos é manifesto? Pois o acto de morrer é bem visível, não é isso mesmo?
Sem dúvida, respondeu.
Que faremos, então? Continuou; não atribuiremos a esse processo de geração o seu contrário, ou admitiremos que nesse ponto a natureza é manca? [quer dizer, se todas as coisas mostram ser um estado a que chegaram por mudança iniciadas no seu contrário, com que lógica se defende que no caso da vida e da morte esse processo não se passa?] Não será preciso aceitarmos um processo gerador oposto ao de morrer?
Sem dúvida nenhuma, respondeu.
Qual?
Reviver.
Logo, continuou, se o reviver é um facto, terá de ser uma geração no sentido dos mortos para os vivos: a revivescência.
Perfeitamente.
Desse modo, ficamos também de acordo que tanto os vivos provêm dos mortos como os mortos dos vivos. Sendo assim, quer parecer-me que apresentamos um argumento bastante forte para afirmar que as almas dos mortos terão necessariamente de estar em alguma parte, de onde voltam a viver. [pois de outro modo, como explicar a existência de vivos? Vinham de onde?]
A meu parecer, Sócrates, replicou, é a conclusão forçosa de tudo o que admitimos até aqui.
XVII – Observa também, Cebete, continuou, que não chegamos a esse acordo aereamente, segundo me parece. Porque se um desses processos não fosse compensado pelo seu contrário, girando, por assim dizer, em círculo, mas sempre se fizesse a geração em linha reta, de um dos contrários para o seu oposto, sem nunca voltar desta para aquele, nem andar em sentido inverso: fica sabendo que tudo acabaria numa forma única e ficaria num só estado, cessando, por isso mesmo, a geração.
[se os vivos não viessem dos mortos, e as coisas chegassem a um fim definitivo, iam morrendo uma a uma, todas as coisas, até desaparecerem e mais nada haver, de modo que é este processo de reviver que compensa as que morrem]
Como assim? Perguntou.
Não é difícil, continuou, compreender o sentido de minhas palavras. No caso, por exemplo, de existir o sono, porém sem haver o correspondente despertar do que estiver dormindo, bem sabes que acabaria por transformar em banalidade a fábula de Eudimião, [era um pastor que se apaixonou por Selene e foi castigado a dormir eternamente] a qual não seria percebida em parte alguma, porque tudo o mais ficaria como ele, num sono universal. E se todas as coisas se misturassem, [morressem, tranformando-se em pó sendo esse o fim do processo] sem virem a separar-se, dentro de pouco tempo seria um facto aquilo de Anaxógaras: a confusão geral. [gravei uma explicação desta frase acerca de Anaxágoras]
A mesma coisa se daria, amigo Cebete, se viesse a perecer quanto participa da vida, e, depois de morto, se conservasse sempre no mesmo estado, sem nunca renascer; não seria inevitável vir tudo a ficar morto e nada mais viver? Se o que é vivo provém de algo diferente da morte e acaba por morrer, como evitar que tudo acabe por desaparecer na morte?
Não há meio, Sócrates, respondeu Cebete, segundo penso; quer parecer-me que te assiste toda a razão.
A mim também, Cebete, continuou, se me afigura muito certo, não havendo possibilidade de engano da nossa parte, pois ficamos de acordo nesse ponto. Sim, o reviver é um facto, os vivos provêm dos mortos, as almas dos mortos existem, sendo melhor a sorte das boas e pior a das más.
[fim da 1ª prova]
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