[três virtudes que conduzem à sabedoria]
E a virtude denominada coragem, Símias, prosseguiu, não assenta maravilhosamente bem nos indivíduos com essa disposição?
Sem dúvida, respondeu.
E a temperança, o que todo o mundo chama temperança: não deixar-se dominar pelos apetites, porém desprezá-los e revelar moderação, não será qualidade apenas das pessoas que em grau eminentíssimo desdenham do corpo e vivem para a Filosofia?
Necessariamente, foi a resposta.
Se considerares, prosseguiu, nos outros homens a coragem e a temperança, hás de achá-las mais do que absurdas.
Como assim, Sócrates?
Ignoras porventura -disse-, que na opinião de toda a gente a morte se inclui entre os denominados males?
Sei disso, respondeu.
E não é pelo medo de um mal ainda maior que enfrentam a morte esses indivíduos corajosos, quando a enfrentam. [antecipando um argumento de atribuir coragem aos suicidas - falsa coragem assente no receio da morte]
Certo.
Logo, é por medo e temor que os homens são corajosos, com exceção dos filósofos, muito embora se nos afigure paradoxal ser alguém corajoso por temor e pusilanimidade.
Perfeitamente.
E com os moderados desse tipo, não se passará a mesma coisa, isto é, serem moderados por algum desregramento? E conquanto asseveremos não ser isso possível, é o que se dá, realmente, com a temperança balofa dessa gente. De medo, apenas, de se privarem de certos prazeres por eles cobiçados, quando se abstêm de alguns é porque outros o dominam. [privam-se de uns como uma espécie de comércio para alcançarem outros, logo é uma falsa virtude] E embora chamem intemperança o ser vencido pelos prazeres, o que se dá com todos é que o domínio sobre alguns prazeres se faz à custa de servirem a outros, [como os políticos que praticam a temperança uns meses antes das eleições...] o que vem a ser muito parecido com o que há pouco declarei, de ser, de algum modo, a intemperança que os deixa temperantes.
Parece que é assim mesmo.
Mas, meu bem aventurado Símias, essa não é a maneira de alcançar a virtude, trocar uns prazeres por outros, tristezas, ou temores por temores de outras espécie, como trocamos em miúdos moeda de maior valor. Só há uma moeda verdadeira, pela qual tudo isso deva ser trocado: a sabedoria. E só por troca com ela, ou com ela mesma, é que em verdade se compra ou se vende tudo isto: coragem, temperança e justiça, numa palavra, a verdadeira virtude, a par da sabedoria, pouco importando que se lhe associem ou dela se afastem prazeres ou temores e tudo o mais da mesma natureza. [não são as circunstâncias mas a razão quem deve comandar as decisões] Separadas da sabedoria e permutadas entre si, todas elas não são mais do que sombra [aparência] de virtude, servis em toda a linha e sem nada possuírem de verdadeiro, nem são.
A verdade em si consiste, precisamente, na purificação de tudo isso, não passando a temperança, a justiça, a coragem e a própria sabedoria de uma espécie de purificação. É muito provável que os instituidores de nossos mistérios não fossem falhos de merecimento e que desde sempre nos quisessem dar a entender por meio de sua linguagem obscura que a pessoa não iniciada nem purificada, ao chegar ao Hades vai para um lamaçal, ao passo que o iniciado e puro, ao chegar lá passa a morar com os deuses. Porque, como dizem os que tratam dos mistérios: muitos são os portadores de tirso, [uma espécie de cajados de erva-doce usados nos rituais a Baco] porém pouquíssimos os verdadeiros Bacantes [os Bancantes passavam por uma catarse dionísica]. E no meu modo de entender, são estes, apenas, os que se ocuparam com a filosofia, em sua verdadeira acepção, no número dos quais procurei incluir-me, esforçando-me nesse sentido, por todos os modos, a vida inteira e na medida do possível sem nada negligenciar.
Se trabalhei como seria preciso e tirei disso algum proveito, é o que com segurança ficaremos sabendo no instante de lá chegarmos, se deus quiser, e dentro de pouco tempo, segundo creio. Eis aí, Símias e Cebete, a minha defesa, a razão de apartar-me de vocês sem revoltar-me, por estar convencido de que tanto lá como aqui encontrarei companheiros e mestres excelentes. O vulgo não me dará crédito; porém se a minha defesa vos pareceu mais convincente do que aos meus juízes atenienses, é tudo o que posso desejar.
XIV – Depois de haver Sócrates assim falado Cebete tomou a palavra e disse: Sócrates, ta tua argumentação pareceu-me boa, mas no que toca à alma, julgo que os teus pontos de vista estão longe de suscitar a adesão das pessoas. [que é o objectivo da dialéctica filosófica] Dificilmente os homens poderão acreditar que, uma vez separada do corpo, venha a alma a subsistir em alguma parte em vez de destruir-se e desaparecer no mesmo dia em que o homem fenece.
No próprio instante em que ela sai do corpo e dele sai, dispersa-se como sopro ou fumaça, evola-se, deixando, em consequência de existir em qualquer parte. Porque, se ela se recolhesse algures a si mesma, livre dos males que há pouco enumeraste, haveria grande e doce esperança de ser verdade, Sócrates, tudo o que disseste. Mas o facto é que se faz mister de não pequeno poder de persuasão e de muitos argumentos para demonstrar que a alma subsista depois da morte do homem e que conserva o uso de faculdades e pensamento.
Tens razão, Cebete, respondeu Sócrates. Mas que podemos fazer? Não queres examinar mais de espaço essa questão, para ver se as coisas, realmente, se passam desse modo?
(continua)
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