IV – Nesta altura, falou Cebete: Por Zeus, Sócrates, disse, foi bom que mo lembrasses. Diversas pessoas já me têm falado a respeito dos poemas que escreveste, aproveitando as fábulas de Esopo, e do hino em louvor de Apolo. Anteontem mesmo, o poeta Eveno me interpelou sobre a razão de compores verso desde que te encontras aqui, o que antes nunca fizeras. Se te importa deixar-me em condições de responder a Eveno quando ele voltar a falar-me a esse respeito – e tenho certeza de que o fará – instrui-me sobre o que deverei dizer-lhe.
Então diz-lhe a verdade, Cebete, replicou: que não me movia o desejo de fazer-lhe concorrência nem aos seus poemas, quando compus os meus, o que, aliás, não seria fácil, mas apenas rastrear o significado de uns sonhos e cumprir, assim, minha obrigação, no sentido de saber se era essa a modalidade de música que me recomendavam com insistência. É o seguinte: muitas e muitas vezes em minha vida me visitava um sonho, sob formas diferentes, porém dizendo sempre a mesma coisa: Sócrates, compõe segundo a arte das Musas e a executa. Até agora eu estava convencido de ser justamente o que eu fizera a vida toda e que o sonho me insinuava e estimulava como costumamos estimular os corredores: desse mesmo modo, o sonho me exortava a prosseguir a minha prática habitual, visto ser a Filosofia a música mais nobre e a ela eu dedicar-me. Agora, porém, depois do julgamento e por haver o festival do deus adiado minha morte, perguntei a mim mesmo se a música que com tanta insistência o sonho me mandava compor não seria essa espécie popular, tendo concluído que o que importava não era desobedecer ao sonho, porém fazer o que ele me ordenava. Seria mais seguro cumprir essa obrigação antes de partir, e compor poemas em obediência ao sonho. Assim, comecei por escrever um hino em louvor à divindade cuja festa então se celebrava. Depois da divindade, considerando que quem quiser ser poeta de verdade terá de compor mitos e não palavras, [a arte é ficção e a filosofia é argumentação] por saber-me incapaz de criar no domínio da mitologia, recorri às fabulas de Esopo que eu sabia de cor e tinha mais à mão, havendo versificado as que me ocorreram primeiro.
V – Isso, Cebete, é o que deverás dizer a Eveno. Apresenta-lhe, também, saudações de minha parte, acrescentando que, se ele for sábio, deverá seguir-me quanto antes. Parto, ao que parece, hoje mesmo; assim os determinam os Atenienses.
[Platão introduz aqui o tema da morte como algo que o filósofo deseja]
Símias exclamou: Que conselho, Sócrates, mandas dar a Eveno! Tenho estado bastantes vezes com o homem, e por tudo o que sei dele, não terá grande desejo de aceitar- te a indicação. [o homem comum tem medo da morte e vê-a como um mal, mas o filósofo deseja a morte]
Como assim? Perguntou; Eveno não é filósofo?
Penso que é, retrucou Símias.
Nesse caso, terá de aceitá-la, tanto Eveno como quem quer que se aplique dignamente a esse estudo. O que é preciso é não empregar violência contra si próprio. Dizem que isso não é permitido. [o suicídio é proibido pela religião e, aliás, o desejo da morte só vem após se ter percorrido o caminho da filosofia. Portanto, não é um desejo contra a vida mas o objectivo de uma vida]
Assim falando, sentou-se e apoiou no chão os pés, permanecendo nessa posição, daí por diante, durante todo o tempo da conversa. [apoiou os pés no chão é uma indicação de ter os pés assentes na terra]
Nessa altura Cebete o interpelou: Por que disseste, Sócrates, que não é permitido a ninguém empregar violência contra si próprio, se, ao mesmo tempo, afirmas que o filósofo deseja ir após de quem morre?
Como, Cebete, nunca ouvistes nada a esse respeito, tu e Símias, quando convivestes com Filolau? [era, na época, o chefe da escola pitagórica que acreditava na transmigração das almas, isto é, que após a morte, a alma se separava do corpo e entrava em outro corpo]
Ouvi, Sócrates, porém muito pela rama.
Sobre isso eu também só posso falar de ouvir; porém nada me impede de comunicar- vos o que sei. Talvez, mesmo, seja a quem se encontra no ponto de imigrar para o outro mundo que compete investigar acerca dessa viagem e dizer como será preciso imaginá-la. Que melhor coisa se poderá fazer para passar o tempo até sol baixar? [aqui Platão expressa o tema da conversa: a morte e o seu significado, ou melhor, a vida e o seu significado filosófico]
VI – Qual o motivo, então, Sócrates, de dizerem que a ninguém é permitido suicidar- se? De facto, sobre o que me perguntaste, ouvi Filolau afirmar, quando esteve entre nós, e também outras pessoas, que não devemos fazer isso. Porém nunca ouvi de ninguém maiores particularidades.
Então, o que importa é não desanimares, disse; é possível que ainda venhas a ouvi- las. Talvez te pareça estranho que entre todos os casos seja este o único simples e que não comporte como os demais, decisões arbitrárias, segundo as circunstâncias, a saber: que é melhor estar morto do que vivo. E havendo pessoas para quem a morte, de fato, é preferível, não saberás dar a razão de ser vedado aos homens procurarem para si mesmos semelhante benefício, mas precisarem esperar por benfeitor estranho.
Itto Zeus, disses Cebete em seu dialeto, esboçando um sorriso: Deus o saberá.
Aparentemente, continuou Sócrates, isso carece de lógica; mas o facto é que tem a sua razão de ser. Aquilo dos mistérios [órficos], de que nós, homens, nos encontramos numa espécie de cárcere que nos é vedado abrir para escapar, afigura-me de peso e anda fácil de entender. Uma coisa, pelo menos, Cebete, me parece bem enunciada: que os deuses são nossos guardiães, e nós, homens, pertença deles. Aceitas esse ponto?
Perfeitamente, respondeu Cebete.
Tu também, continuou, na hipótese de algum dos teus escravos pôr termo à vida, sem que lhe houvesses dado a entender que estavas de acordo em que se matasse, não te aborrecerias com ele, e se fosse possível, não o punirias? [portanto, os deuses são nossos senhores como nós somos senhores dos escravos]
Sem dúvida, respondeu.
Por conseguinte, não acho absurdo ninguém poder matar-se sem que a divindade o coloque nessa contingência, como é o meu caso agora.
VII – Essa parte, observou Cebete, também me parece razoável. Porém o que afirmaste antes, sobre a disposição do filósofo para morrer, é um verdadeiro contra-senso, Sócrates, se estiver certo o que dissemos há pouco, que o deus cuida de nós e que somos propriedade dele. Como explicar que os mais sensatos não se aflijam com a ideia de abandonar um posto onde tinham a guiá-los os melhores guias que há - os deuses, é o que não chego a compreender. Pois ninguém ousará dizer que saberá cuidar melhor de si mesmo, uma vez em liberdade. Um indivíduo insensato poderia raciocinar dessa maneira, por achar bom fugir do amo, sem considerar que não se deve fugir do bem, mas ficar junto dele o maior tempo possível. Foge por carecer de senso. O indivíduo inteligente, pelo contrário, só deseja continuar junto de quem lhe seja superior. Por isso, Sócrates, o certo é, precisamente, o oposto do que foi dito há pouco: aos sábios é que fica bem insurgir-se contra a ideia da morte, e aos insensatos, exultar ante essa perspectiva.
Ao ouvi-lo assim falar, quis parecer-me que Sócrates se alegrava com a agudeza de Cebete; depois, voltando-se para nosso lado, falou: Cebete anda sempre à cata de argumentos, sem aceitar de pronto a opinião dos outros.
Ao que Símias observou: Porém quer parecer-me, Sócrates, que há bastante senso nas palavras de Cebete. Não se compreende, de facto, que indivíduos verdadeiramente sábios fujam de amos melhores do que eles e se alegrem com essa liberdade. A meu ver, o argumento de Cebete vai dirigido contra ti, por aceitares com ligeireza a ideia de deixar-nos a nós e também aos amos cuja superioridade és o primeiro a proclamar.
Tens razão, observou. Pelo que vejo, sois de parecer que preciso defender-me dessa acusação, como o fiz no tribunal.
Perfeitamente, respondeu Símias.
VIII – Pois que seja, disse. Vejamos se diante de vós outros minha defesa saíra mais convincente do que a feita na frente dos juízes. O fato, Símias e Cebete, prosseguiu, é que se eu não acreditasse [Platão faz notar que acerca do que se passa depois da morte não há certezas, só crenças], primeiro, que vou para junto de outros deuses, sábios e bons, e, depois, para o lugar de homens falecidos muito melhores do que os daqui, cometeria uma grande erro por não me insurgir contra a morte. [Sócrates acredita que forçou o seu próprio destino] Porém podes fiar que espero juntar-me a homens de bem. Sobre esse ponto não me manifesto com muita segurança; mas no que entende com minha transferência para junto de deuses que são excelentes amos: se há o que eu defenda com convicção é precisamente isso. Esse motivo de não me revoltar com a ideia da morte. Pelo contrário, tenho esperança de que alguma coisa há para os mortos, e, de acordo com antiga tradição, muito melhor para os bons, do que para os maus.
[nesta obra, Platão quer mostrar a razoabilidade da crença na imortalidade da alma e com isso combater o materialismo e cepticismo da época que foi de grandes transformações como foi aquela - a época de Pitágoras e de Heraclito e de Parménides e dos atomistas e dos sofistas e da democracia e por aí fora]
Como assim, Sócrates, perguntou Símias; com semelhante convicção queres deixar- nos sem no-la dar a conhecer? Eu, pelo menos, acho que se trata de algo de grande relevância para nós todos. Ao mesmo tempo, com isso farás a tu a defesa, se com o que disseres conseguires convencer-nos. [a filosofia é um combate racional entre argumentos -uma dialéctica- cujo valor é inter-subjectivo, díriamos hoje]
É o que vou tentar, continuou; porém primeiro vejamos o que o nosso Critão há tanto tempo quer dizer-me.
Trata-se apenas do seguinte, Sócrates, falou Critão: é que há muito vem insistido comigo, a pessoa encarregada de dar-te o veneno, para avisar-te de que deves conversar o menos possível. Conversa muito animada esquenta, é o que ele afirma, e isso prejudica a ação da droga. Já tem acontecido ser preciso tomar duas ou três doses a quem se comporta desse jeito.
Sócrates: Manda-o passear! disse. E que prepare dose dupla, e até tripla, se for preciso.
Eu já sabia mais ou menos o que irias responder, observou Critão; mas o homem não me dava sossego.
Deixa-o, disse. E agora, juízes, pretendo expor-vos as razões [fala, não da crença em si mesma mas das razões que a sustentam] de estar convencido de que o indivíduo que se dedicou a vida inteira à Filosofia, terá de mostrar-se confiante na hora da morte, pela esperança de vir a participar, depois de morto, dos mais valiosos bens. Como poderá ser dessa maneira, Símias e Cebete, é o que tentarei explicar-vos. [é aqui que Platão os indica como os interlocutores de Sócrates]
(continua)
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