October 18, 2020

É preciso fazermos-nos objectos de outros sujeitos. Uma ilustradora mostra um caminho

 


Esta mão de orangotango, podia ser humana. A dificuldade de imaginarmo-nos como natureza é que nos trouxe aqui. A ilustradora georgiana, Ana Miminoshvili, desenha uma natureza antropomórfica que nos olha e interroga. É uma excelente maneira de introduzir as crianças na natureza e habituá-las a verem-se como objectos de outros sujeitos observantes em vez de sujeitos dominantes. 

Os antigos, ainda agora a reler Platão o vejo, viam um parentesco entre todos os seres da natureza, de tal maneira que uma pessoa, ao morrer, podia encarnar num qualquer animal. Os deuses transformavam-se e transformavam outros em animais, plantas e até em matéria inorgânica, o que mostra uma visão inclusiva do Ser. Essa visão perdeu-se.

Nós, humanos, somos agora um tumor da natureza. Num corpo saudável, as células saudáveis estão contidas dentro dos seus limites bem definidos, não os ultrapassam e não incomodam as vizinhas, nem lhes sabotam o trabalho ou impedem a vida. As células tumorais, pelo contrário, saem dos seus limites naturais, com uma espécie de patas alongadas (daí o nome de cancer) e começam a invadir as vizinhas, matando tudo. Quando são muito agressivas e afoitas até usam as estradas de sangue para saltar para países mais longínquos que são outros orgãos e começar aí outra colónia de destruição.

Se imaginarmos a totalidade da vida como uma enorme árvore com milhões de ramos, cada um com milhões de outros ramos e em todos eles folhas, botões, flores e frutos diferentes, nós humanos somos uma dessas ramificações que floresceu de um determinado modo. Se fossemos saudáveis, continuávamos a crescer nesse ramo sem incomodar o resto da árvore, mas não somos. Somos um tumor. Até aquela qualidade -a inteligência- que devia servir de macrófago, isto é, de célula destruidora de destruidores, dadas as suas vantagens naturais, se transformou, tal como nos tumores num inimigo interior que se vira contra a própria árvore que a sustém, numa desorientação irracional. E já invadimos e apodrecemos ramos inteiros até à morte. Como estamos numa ponta da árvore, nesta analogia, quando apodrecermos o tronco e as raízes, desaparecemos com eles. Tal como o tumor que vai destruindo até à sua própria destruição, que acontece com a morte do hospedeiro. 

Ora, os cancros têm ligação com comportamentos negativos, nossos ou dos nossos antepassados. No caso do poder destruidor do homem o comportamento negativo é a competição agressiva. Uma competição, não de superação mas de aniquilamento do outro que nos é injectada desde a nascença como um veneno para o qual não há antídoto. É só vermos a linguagem dos governantes: ser o melhor, destruir os outros, ter mais dinheiro que todos, ser uma super-potência, etc.

Portanto, somos hóspedes e estamos a matar o hospedeiro. 

É necessário vermo-nos na natureza como uma extremidade duma grande árvore que já estremece. Isso tem que fazer-se desde a infância, já que os nossos governantes, os homens das armas e os grandes milionários e bilionários, têm mostrado ser completamente incapazes de fazer uma revisão racional, encarar a sua responsabilidade e dar passos concretos para uma mudança de crescimento em vez de morte.

Esta ilustradora mostra um caminho. É isso que vejo nestas ilustrações.


A mão de um jovem orangotango. Fotografia de Jessie Williams (2017)






Ilustrações de Ana Miminoshvili de Tbilisi, Georgia.













4 comments:

  1. Concordo com o que dizes mas, gostaria de chamar a atenção para o facto de que as crianças, mesmo quando bem ensinadas na infância, acabam por tergiversar (!!) em contacto com outras.
    Vou dar-te um exemplo: há muitos anos tive uma colega cujo neto foi educado no respeito pela natureza e pelos materiais naturais. O miúdo era pequeno e só tinha brinquedos de madeira. Um dia, perto do Natal, o puto saiu-se com esta: "O que eu mais queria era ter brinquedos como os dos meus amigos da escola" .E que brinquedos eram esses? O Super-homem, metralhadoras e coisas do género. O miúdo queria ter as mesmas coisas que os outros tinham para ser aceite no grupo! Isto é complicado!
    Agora, tu podes dizer : Se educarmos o grupo todos podem ter comportamentos mais sustentáveis." De acordo, mas, à medida que forem crescendo vão mudando a sua forma de estar. É difícil manter a coerência quando os estímulos exteriores os puxam para outros caminhos. Não quer dizer que não seja possível? Há, até, muitos exemplos disso, mas a ganância natural do indivíduo acaba por o estragar....

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  2. Já agora, as ilustrações são lindas! Aqueles olhinhos são uma delícia.
    E a foto da mão é fantástica!Darwin ia adorar!

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  3. Mas a educação, como muito bem sabes, é um esforço de persistência e paciência baseado na esperança e na confiança - como desbravar mato: é preciso um esforço constante para não deixar as ervas daninhas taparem caminhos abertos.
    A psicologia mostra que é possível mudar atitudes e mentalidades, mesmo que no início seja uma só pessoa a insistir: com persistência, coerência e determinação, ganha-se credibilidade e aos poucos vai-se ganhando outros e alargando o círculo dos resistentes. Na verdade, a educação já fez parte deste trabalho e os miúdos que apanhamos na escola têm uma consciência dos problemas ambientais que nós não tínhamos na idade deles. Portanto, é uma questão de insistir e ter esperança que, quando chegarem à idade de influenciar, aprovem outras políticas menos destrutivas. O que me parece é que não se pode desistir e dar espaço ao cancro de crescer, mesmo não sabendo se o que fazemos resulta. Não se pode desistir dos caminhos que salvam e persistir em caminhos que levam a parte nenhuma, como dizia Heidegger.

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